Espero que nossa Cidade não esmague os
apaixonados.
Os
dois se olharam de uma forma um pouco mais demorada que o normal, ele passou o
dedo indicador nos lábios dela, os olhos verdes dos dois pareciam lançar raios
fulminantes um ao outro. Entre os dois, apenas os lençóis brancos, mais nada
existia ali além daquilo e da pálida luz da manhã de inverno entrando
timidamente pela persiana. Não havia nenhuma música tocando de fato, mas havia
uma melodia que os envolvia de uma forma gostosa e nova. Eles nunca tinham
ouvido aquela melodia antes. Duas velas, uma de cada lado, agora apagadas e não
havia sono, apesar de não terem dormido em momento nenhum.
Ela
fechou os olhos para se lembrar da noite passada. A conversa jogada fora
enquanto ele dirigia, um café à meia-noite enquanto a lua refletia o colar de
prata que ele usava discretamente no pescoço. Depois, o silêncio que também é
música envolvia os dois, os beijos eram trocados e eram doces, doces como se
nada tivesse aquele sabor, nenhum chocolate ou mel no mundo se parecia com
aquele gosto, era completamente único. Não havia absolutamente nada além
daquilo, nada.
Ele
se levantou sorrindo e foi até a cozinha, alguns minutos depois ela sentiu o
cheiro do café e da torrada. Colocou a camisa que ele usara na noite passada,
agora tudo ao redor dela tinha aquele cheiro amadeirado que arrepiava cada pelo
de seu corpo. Ela foi até a cozinha, ele estava sorrindo com a mesa pronta
esperando por ela. Os dois se sentaram e jogaram mais conversa fora, entre
alguns beijos que vinham naturalmente, tão natural quanto o respirar.
Tudo
parecia muito novo para ele, a melodia que ele ouvia e nunca havia ouvido antes
ficou na cabeça durante todo aquele dia enquanto trabalhava. O sono ainda não
vinha tamanha era a excitação. Fechou os olhos por um instante e pediu que
aquilo não passasse, desejou que eles ficassem para sempre do jeito que estavam
naquele dia. Ele esqueceu de todos os conselhos dos amigos, esqueceu de não se
apaixonar. Levou um susto, pensou nisso pela primeira vez, no estar apaixonado.
Aquilo o assustava de uma forma meio louca, será que o amor assustava?
Ela
tentava se concentrar no trabalho em vão, olhava o celular o tempo todo, nada. Será
que ele não cumpriria sua palavra? Quando chegou a hora do almoço o telefone
vibrou e havia uma notificação, o trabalho não rendeu mais pelo resto da tarde.
Iriam jantar àquela noite mais uma vez, provavelmente iriam apenas dormir
depois, afinal todos precisavam dormir. Ela se esqueceu dos conselhos das
amigas, espere para não fazer nada que pudesse se arrepender, esqueceu de não
se apaixonar. Ela levou um susto, pensou nisso pela centésima vez, e se
assustou com medo de que aquilo pudesse terminar como nas outras vezes. Será que
o amor assusta?
Aquela
noite foi tão incrível quanto a outra e os dois conversaram por horas, mais um
café a meia-noite. Agora a conversa era sobre as possibilidades, todas as que
se apresentavam e se abriam diante deles. O novo mundo que os esperava, ele
queria mostrar pra ela e ela pra ele. Nada no mundo parecia mais certo do que
aquelas horas que eles passavam juntos. Há possibilidades no amor, é isso que a
maioria das pessoas não percebem, tudo pode ser nada, nada pode ser tudo e o
todo pode ser a coisa mais maravilhosa que existe.
Ele explicou
para ela que Platão dizia que o amor tinha seus altos e baixos, como se fosse a
batida de um coração, ele buscava sempre algo novo, não podia parar, se
parasse, morria. Ela ficou completamente fascinada por aquilo, já conhecia a
teoria, mas não se lembrava mais. Ela se perguntou: quanto tempo até morrer?
Três
semanas se passaram e eles continuavam a se ver sempre que podiam, um pouco da
realidade já caíra sobre os dois, mas eles não deixaram se abater. Havia a
falta de tempo de ambos os lados, precisavam sobreviver, precisavam se
alimentar. Mas os cafés à meia-noite tornaram-se cada vez mais comuns, as noites
mal dormidas acabaram virando costume. Eram os minutos roubados que contavam. Havia
uma festa, os dois foram juntos. Ele a apresentou aos amigos como sua “namorada”,
ela se perguntou o que aquilo significava, mas logo que os dois começaram a
dançar, tudo desapareceu e era como se estivessem dançando num globo de neve
sozinhos.
Anos
se passaram, o peso da cidade não os venceu. Eles continuaram sempre dançando
num globo de neve, os cafés à meia-noite foram constantes, tudo o que ficou
entre os dois foram os lençóis brancos – às vezes um dos dois filhos que
tiveram juntos com medo do monstro embaixo da cama -, quando ele se cansou de
dirigir, ela sempre pegou o volante. A melodia sem som continuou tocando ao
redor deles e os embalando para sempre. Semana passada ele morreu, aos oitenta
anos, morreu deitado em sua cama, à meia-noite, um café ao lado, ela olhando
para ele com lágrimas nos olhos e toda aquela história se repetindo em sua
cabeça, ela usava uma camisa dele, os dois pares de olhos verdes ainda eram
intensos como aos vinte e cinco anos, entre eles só havia os lençóis brancos e
nada mais.
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