domingo, 31 de maio de 2015

Até Aqui





“De tudo que está escrito, amo apenas aquilo que alguém escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue e experimentarás que sangue é espírito”. (Nietzsche. Assim Falou Zaratustra, p.58).

Até aqui, os últimos seis meses foram de pura reflexão, um caminho pra encontrar a mim mesmo em meio tantos sentimentos confusos, pensamentos escondidos, coisas que eu não conseguia entender como haviam me afetado. Eu havia me perdido quase que completamente, me doado inteiramente aos outros, esquecido de doar-me a mim mesmo. De repente, me encontrei parado no frio e na chuva completamente nu. Já não podia mais esperar que viessem me resgatar, o resgate tinha de ser meu.

Debaixo, de um lugar escuro, o qual não desejo a absolutamente ninguém, comecei a subir,subir. No meio encontrava coisas antigas: pessoas, imagens, sons, cheiros, gostos, toques, sentimentos. Reconhecia-me em todos eles, me reencontrava em cada um deles. Perdia o fôlego por cada um deles. Tive que enfrentar demôniosque há muito deixara guardados no meu peito. Como se estivessem num baú enterrado numa praia deserta, eu jogara o mapa fora e só poderia reencontrá-los no momento certo, no momento em que eles precisassem ser reencontrados.

Aí está a grande tirada do passado, ele não existe mais, ao mesmo tempo em que é completamente presente em cada um de nós. Ele vive para sempre, fica escondido num bar esfumaçado com luzes vermelhas, tocando músicas antigas de alegria e de tristeza, num palco improvisado, artistas cantam e declamam textos antigos que você não quer mais ler. Interpretam cenas reais que transformaram sua vida completamente. Pessoas mudam nossas vidas, nossas escolhas mudam nossas próprias vidas e nada podemos fazer em relação a isso. Somos completamente impotentes diante da grandiosidade da história e de sua construção monumental e faraônica.

Sangue é espírito, como disse Nietzsche. É preciso dar o sangue em tudo aquilo que se faz, pois assim conheceremos quem realmente somos, aí entenderemos nossos próprios espíritos que ficam enclausurados por leis e construções sociais que parecem não nos deixar livres jamais. Somos vivência completa e absoluta de todas as coisas pelas quais passamos. O meu encontrar-me foi isso: Foi uma reflexão das coisas pelas quais passei e minhas escolhas diante desses fatos, escolhas todas que me levaram até o ponto em que não podia mais me aguentar sobre meus dois pés, tive que cair, levantar, reaprender o ato repetitivo e mecânico que é o andar. Caminho, caminho. Mas preciso saber qual meu destino, quais os motivos de estar caminhando em direção à algo que ainda não compreendo por completo. Encontrar o lugar para onde ir, se é que ele existe. O lugar existencial, o lugar político, o lugar em que se pode amar.

Há revoltas em mim que só eu posso compreender, ninguém mais conseguiria, sou julgado por muitas delas: chamado de extremista, de comunista (qual é ainda o grande tabu com essa palavra?), de inconsequente. Mas posso ser julgado por fazer tudo aquiloque quero fazer? Fazer todas as coisas que senti que deveria fazer? Onde eu poderia mudar? Talvez em outro mundo. Aliás, mudei sim. Não mudei pelos outros, mudei por mim. Por me manter, por não mais me machucar. Essas histórias de outra cidade são todas as histórias que fazem parte de um coração muito selvagem, muito impulsivo, muito leonino, muito sonhador. Esse coração que por vezes ainda sente medo, muito medo, chega perto de reabrir a porta daquele lugar escuro, mas que logo supera o medo, ou seja, tem coragem.

Não mais quero ser o que não sou, não mais quero esconder o que sou. Não mais quero que pensem que sou algo que não sou e que jamais serei e, acima de tudo, não mais admitirei que me digam o que posso ou não posso fazer, ou que digam que sou algo fora da natureza, fora do real. Sou real de mais, alguém que não é real, não sente tudo o que sinto, tudo o que me devora por dentro e por fora. Não se sente sufocado pelo sistema instituído, não se angustia pelos largados dasperiferias e das escolas públicas, não se doa de sangue ao que faz. Nada pode se reduzir ao que acham que sou. Sou isso. Sou todas essas histórias e também as são meus amigos, minha família, meus amores e desamores. Somos juntos uma cidade e a cidade, que machuca, que suprime, que massacra, deve ser vencida, deve haver resistência pois nós somos os que nela mandam, ela jamais poderia mandar em nós. Não falhemos com nossas cidades, não sejamos nossas cidades, sejamos tudo aquilo que as constroem.


Daqui por diante, o resgate continua, pois ele não tem um fim, mas o novo se inicia. O novo porque não há mais qualquer lugar habitável para mim naquele quarto escuro, o meu castelo nas nuvens já não está mais sob o domínio do dragão, mas ainda deve ser protegido constantemente, sem descanso, com os espelhos, espadas e escudos que disponho, são essas as minhas proteções. 

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