“De
tudo que está escrito, amo apenas aquilo que alguém escreve com o próprio
sangue. Escreve com sangue e experimentarás que sangue é espírito”. (Nietzsche.
Assim Falou Zaratustra, p.58).
Até
aqui, os últimos seis meses foram de pura reflexão, um caminho pra encontrar a
mim mesmo em meio tantos sentimentos confusos, pensamentos escondidos, coisas
que eu não conseguia entender como haviam me afetado. Eu havia me perdido quase
que completamente, me doado inteiramente aos outros, esquecido de doar-me a mim
mesmo. De repente, me encontrei parado no frio e na chuva completamente nu. Já não
podia mais esperar que viessem me resgatar, o resgate tinha de ser meu.
Debaixo,
de um lugar escuro, o qual não desejo a absolutamente ninguém, comecei a subir,subir. No meio encontrava coisas antigas: pessoas, imagens, sons, cheiros,
gostos, toques, sentimentos. Reconhecia-me em todos eles, me reencontrava em
cada um deles. Perdia o fôlego por cada um deles. Tive que enfrentar demôniosque há muito deixara guardados no meu peito. Como se estivessem num baú
enterrado numa praia deserta, eu jogara o mapa fora e só poderia reencontrá-los
no momento certo, no momento em que eles precisassem ser reencontrados.
Aí está
a grande tirada do passado, ele não existe mais, ao mesmo tempo em que é
completamente presente em cada um de nós. Ele vive para sempre, fica escondido
num bar esfumaçado com luzes vermelhas, tocando músicas antigas de alegria e de
tristeza, num palco improvisado, artistas cantam e declamam textos antigos que
você não quer mais ler. Interpretam cenas reais que transformaram sua vida
completamente. Pessoas mudam nossas vidas, nossas escolhas mudam nossas
próprias vidas e nada podemos fazer em relação a isso. Somos completamente
impotentes diante da grandiosidade da história e de sua construção monumental e
faraônica.
Sangue
é espírito, como disse Nietzsche. É preciso dar o sangue em tudo aquilo que se faz, pois assim conheceremos quem realmente somos, aí entenderemos nossos
próprios espíritos que ficam enclausurados por leis e construções sociais que
parecem não nos deixar livres jamais. Somos vivência completa e absoluta de
todas as coisas pelas quais passamos. O meu encontrar-me foi isso: Foi uma
reflexão das coisas pelas quais passei e minhas escolhas diante desses fatos,
escolhas todas que me levaram até o ponto em que não podia mais me aguentar
sobre meus dois pés, tive que cair, levantar, reaprender o ato repetitivo e mecânico
que é o andar. Caminho, caminho. Mas preciso saber qual meu destino, quais os
motivos de estar caminhando em direção à algo que ainda não compreendo por
completo. Encontrar o lugar para onde ir, se é que ele existe. O lugar
existencial, o lugar político, o lugar em que se pode amar.
Há revoltas
em mim que só eu posso compreender, ninguém mais conseguiria, sou julgado por
muitas delas: chamado de extremista, de comunista (qual é ainda o grande tabu com
essa palavra?), de inconsequente. Mas posso ser julgado por fazer tudo aquiloque quero fazer? Fazer todas as coisas que senti que deveria fazer? Onde eu
poderia mudar? Talvez em outro mundo. Aliás, mudei sim. Não mudei pelos outros,
mudei por mim. Por me manter, por não mais me machucar. Essas histórias de outra
cidade são todas as histórias que fazem parte de um coração muito selvagem,
muito impulsivo, muito leonino, muito sonhador. Esse coração que por vezes
ainda sente medo, muito medo, chega perto de reabrir a porta daquele lugar
escuro, mas que logo supera o medo, ou seja, tem coragem.
Não mais
quero ser o que não sou, não mais quero esconder o que sou. Não mais quero que
pensem que sou algo que não sou e que jamais serei e, acima de tudo, não mais
admitirei que me digam o que posso ou não posso fazer, ou que digam que sou
algo fora da natureza, fora do real. Sou real de mais, alguém que não é real,
não sente tudo o que sinto, tudo o que me devora por dentro e por fora. Não se
sente sufocado pelo sistema instituído, não se angustia pelos largados dasperiferias e das escolas públicas, não se doa de sangue ao que faz. Nada pode se reduzir ao que acham que sou. Sou isso. Sou todas essas histórias e também as são
meus amigos, minha família, meus amores e desamores. Somos juntos uma cidade e
a cidade, que machuca, que suprime, que massacra, deve ser vencida, deve haver resistência
pois nós somos os que nela mandam, ela jamais poderia mandar em nós. Não falhemos
com nossas cidades, não sejamos nossas cidades, sejamos tudo aquilo que as constroem.
Daqui
por diante, o resgate continua, pois ele não tem um fim, mas o novo se inicia. O
novo porque não há mais qualquer lugar habitável para mim naquele quarto
escuro, o meu castelo nas nuvens já não está mais sob o domínio do dragão, mas
ainda deve ser protegido constantemente, sem descanso, com os espelhos, espadas
e escudos que disponho, são essas as minhas proteções.
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