Dedicado a todos aqueles que lerem e
que, em algum momento, se identificarem com algo.
Havia
uma música tocando no rádio enquanto Lucas dirigia, ele batucava conforme a
batida com os dedos no volante, lá fora havia um vento forte que parecia soprar
com a canção. Em sua cabeça explodia uma infinidade de pensamentos, coisas que
ele não pensava com tanta frequência, mas que estavam ali naquele momento. As
possibilidades de felicidade que haviam em sua direção na Rodovia Castello
Branco que, para ele, deveria se chamar Rodovia Carlos Marighela, já havia
passado da hora de mudar seu nome. Ele não conseguia visualizar nenhum carro no
horizonte, nem à sua frente e nem atrás, o mundo era só dele naquele momento e
nada mais importava.
“We
could be heroes/Just for one Day”
Sua
mania de herói não sumira, desde pequeno. Ele queria salvar as pessoas e as
coisas, ele queria que todos fossem salvos, salvos de seus medos, de suas
ansiedades. Ele não desejava aquela incerteza que ele mesmo criava para mais
ninguém, enfrentar aqui lhe parecia uma coisa sobre-humana, o próprio não sabia
como havia superado tudo aquilo. Talvez sua força de vontade, talvez seus
amigos, talvez sua família, os livros, quem sabe. Ou se não, as músicas que ele
ouvia. Uma placa sinalizava uma
lanchonete ou restaurante a 1 km. Ele resolveu parar, deu a seta e entrou no
retorno indicado. O lugar era antigo, um ou dois caminhões estavam parados na
frente, uma caminhonete antiga de um verde enferrujado da Chevrolet
compartilhava o pequeno estacionamento com aqueles dois monstros. Ele parou ao
lado do segundo caminhão, desligou o rádio, o carro e desceu.
Entrou
na lanchonete que curiosamente tocava a mesma música que ele estava ouvindo no
carro. Era como se a infinidade que ele sentia não quisesse sair dele nunca
mais. A lanchonete carecia de uma iluminação um pouco melhor, ele pensou. Mas era
a iluminação perfeita para se pensar ou para se ler um livro. Ele sentou-se no
balcão e logo um homem velho, com algumas tatuagens já desbotadas nos braços,
uma corrente de ouro e um dente faltando veio atendê-lo.
-O
que? – disse ele com uma voz cansada e velha, porém decidida.
-Um
café com leite, fazendo o favor. – ele respondeu tentando não ser simpático.
O
homem pegou um copo da pia, Lucas desconfiou que ele não estivesse tão limpo,
colocou uma dose de café e mais um pouco de leite, jogou no balcão e anotou num
pedaço de papel o preço colocando ao lado e saiu. Lucas riu pensando como
aquilo lhe parecia uma cena de um livro beatnick
escrito talvez por Jack Kerouac. Para sua surpresa, enquanto olhava ao redor se
deparou com um rapaz moreno, alto e com uma aparência que misturava,
certamente, um índio e um português. Ele estava jogado numa das mesas que
tinham como assento um sofá que outrora fora vermelho, com as molas aparecendo.
Ele lia um livro que Lucas logo identificou como On The Road, do próprio Kerouac que ele acabara de pensar. Ele riu
mais alto do que pretendia. O rapaz pareceu notar e o cumprimentou balançando a
cabeça. Lucas ficou sem graça, mas cumprimentou de volta. O rapaz continuou
olhando e acenou mais uma vez com a cabeça como quem dissesse “vem cá”. Pelo
menos foi o que Lucas entendeu, e assim o fez. Pegou seu modesto copo semi-sujo
de café com leite e sentou no sofá à frente do rapaz.
-Gosta
de Kerouac? – perguntou ele com uma voz grossa e profunda.
-Gosto,
acho On The Road um dos livros mais
libertadores que existem.
-Qual
sua passagem preferida?
Lucas
não precisou pensar para responder.
-Quando
ele fala de pessoas loucas, pessoas que queimam como velas romanas. E elas
brilham no céu como fogos de artifício.
O
rapaz sorriu, marcou a página do livro e o fechou colocando-o sobre a mesa, ao
mesmo tempo que ergueu a mão para cumprimentá-lo.
-Prazer,
meu nome é Guilherme.
-Prazer
Guilherme, me chamo Lucas.
-Vem
de onde e vai pra onde, Lucas?
-Venho
de São Paulo, estou dirigindo só... E você?
-O
mesmo. Precisava sair daquela selva de pedras?
-Exatamente.
Não estava mais aguentando aquilo tudo.
-Temos
mais alguma coisa em comum então. – Guilherme deu uma risada que encheu a
lanchonete vazia e escura. Lucas gargalhou em seguida sem saber exatamente do
que estava rindo, mas achando engraçado de qualquer maneira.
-Quantos
anos você tem, Guilherme?
-A
idade que eu sentir que tenho no momento. – Aquela deveria ser a resposta mais influenciada
por um livro que se estava lendo naquele momento, mas Lucas achou ela a mais
genial de todas. Ia de encontro com as milhares de coisas que vinha pensando no
caminho. – E você cowboy paulista?
-Como
não sou esse espírito tão absurdamente livre como você, diria que estou com
meus vinte e três.
-Meu
RG diz que tenho um ano a mais que você. – respondeu ele, aquele sorriso não
deixava seu rosto, Lucas começou a desconfiar por que.
-E
seu espírito? – Foi a pergunta mais genial que já haviam feito à Guilherme,
pelo menos ele pensou isso naquele momento.
-Meu
espírito ainda é uma criança aventureira, que quer sair por aí brincando de
descobrir o mundo.
Lucas
deu o último gole no café com leite.
-Você
curte só a literatura gringa? – perguntou ele agora também formando um sorriso
em seu rosto.
-De
jeito nenhum. Os brasileiros destroem qualquer americano na literatura. Quem é
Fitzgerald ao lado de Amado?
-Quem
é o Grande Gatsby ao lado de Pedro Bala? – respondeu Lucas sorrindo ainda mais.
Os dois riram.
-Nenhum
animal de contos de fadas é tão humano quanto a Cadela Baleia. – disse Guilherme
se divertindo com aquilo.
-Baleia
é o animal mais humano de todos, aliás, ela é o ser humano em pessoa. Um velho
e bom selvagem... – Lucas pensou que estava indo meio longe com as referências,
mas imaginou errado.
-O
pequeno Lucas entende de Rousseau também? – perguntou Guilherme.
-Me
impressiona o espírito livre entender de Monsieur
Jean-Jacques...
-Jean-Paul
também. – ele riu mais uma vez. – O que te cansou em São Paulo?
-Tudo...
Os carros, as luzes, os prédios, as pessoas, a política... O ritmo. – Lucas pareceu
titubear um pouco quando citou o último. – E você?
-Acho
que mais a loucura.
-Qual
tipo de loucura? – Lucas sabia.
-A
loucura no geral, das pessoas. Elas invadem...
-Invadem
a gente. – Lucas completou meio sério.
-Isso
mesmo. Meio doido, não? – perguntou Guilherme parecendo meio sombrio, mas ainda
mantendo o sorriso.
-“Nós
somos todos loucos aqui”... – disse Lucas com mais uma referência.
-Espera,
eu sei essa... Mas tá meio longe... Eu li faz tempo. Ou será que assisti?
-Talvez
ambos.
-Ah!
– ele estalou os dedos alto. – Alice no
País das Maravilhas!
-Exatamente.
-Qual
seu verdadeiro problema, cowboy paulista? – perguntou Guilherme finalmente.
-Qual
o motivo do seu sorriso constante, espírito livre?
Os
dois riram baixinho e se entreolharam. Lucas percebeu naquele momento que os
olhos de Guilherme eram castanhos, mas tinham alguns pequenos riscos que davam
um tom esverdeado, enquanto que os seus eram exatamente o contrário. Ele achou
aquilo curioso. Ambos ficaram em silêncio por alguns instantes, só ouviam o
velho atendente lavando a louça da maneira mais rápida e simples que podia. Os dois
caminhoneiros já haviam saído, Lucas olhou pela janela e viu o último deles
saindo. O sol estava se pondo entre as nuvens cinzas que cobriam o céu, ele
percebia que a temperatura estava caindo ainda mais.
-Qual
seu livro preferido? – Guilherme quebrou o silêncio.
-Capitães da Areia, pelo menos por agora.
E o seu?
-On The Road, pelo menos agora. Por que
esse é o seu?
-Gosto
de como o Jorge Amado expressa a realidade nele, é uma realidade muito próxima
a nossa hoje, mesmo que seja um pouco diferente. Além do que, acho que retrata
bem o ser humano. Acho o Pedro Bala e o Professor dois dos personagens mais
fantásticos da Literatura Universal. Por que o seu preferido é On The Road?
-Acho
que é o que eu mais quero: estar na estrada o tempo todo, experimentar o mundo,
as coisas novas. Mas aquela cidade prende.
-Prende,
massacra. É bem cruel.
Um
queria a liberdade, o outro esperava pela mudança. Eles eram iguais, ao mesmo
tempo em que eram completamente opostos. Um se sentia como o vento e o outro
como a terra, mas no final das contas, todos os dois são parte da natureza.
-Não
tem nada que te prenda a São Paulo? – perguntou Lucas.
-Não,
não tenho mais. – respondeu Guilherme e pela primeira vez durante toda a
conversa, seu sorriso vacilou. – O que te prende?
-Coisas
de mais, família e amigos, coisas que ficam mal resolvidas com o passar do tempo,
a própria cidade. O que você tinha e não tem mais?
-Família,
amigos. Das coisas mal resolvidas eu estou fugindo, e consegui quebrar os
grilhões que me prendiam àquele lugar. Pelo menos eu espero que tenha
conseguido.
-Pra
onde você está indo na real? – Lucas queria realmente saber mais sobre ele.
-Acho
que pro Nordeste, onde o sol brilha. Quem sabe a Bahia? Posso virar um Capitão
da Areia por lá. – ele riu.
-Paulistanos
nunca serão Pedro Bala! – disse Lucas se divertindo com aquilo. – Mas me manda
um postal, de qualquer maneira.
-Quem
sabe?
Mais
uns instantes de silêncio, daqueles bem desconfortáveis. Guilherme pensava como
aquilo ali era curioso e tentava entender como se fosse um sinal, como se
aquilo pudesse lhe dizer algo.
-Você
acredita em Deus, Guilherme?
-Acho
que não. E você?
-Sou
um rapaz cristão! – ele riu. – Mentira... Acho que acredito em alguma coisa,
mas não sei bem no que. Um tipo de energia cósmica talvez.
-Acredito
na energia das pessoas e o que cada um faz com elas.
-É
uma boa teoria também. O difícil é controlar essa energia.
-Sim,
com certeza. – ele sorriu mais forte.
-Seu
sorriso... Você não está muito feliz, está? – Lucas disse aquilo e pareceu que
estava tirando um peso enorme de suas costas. Como se sua vida dependesse
daquela pergunta e, consequentemente, daquela resposta.
-Você
entende disso? – respondeu Guilherme sem vacilar com o sorriso mesmo diante da
pergunta.
-Entendo
bastante.
-Quando
se está feliz de verdade? – aquela retórica toda irritaria Lucas em qualquer
outro momento, ele gostava de respostas, gostava de sim ou não, e não era um fã
de talvez, mas ali ele estava se divertindo.
-Não
se chega lá, eu acho. Pelo menos eu nunca cheguei.
-Qual
a sua história, Lucas? – e ali, parecia que a pergunta e a resposta
determinariam todo o resto da vida de Guilherme dali por diante.
-Minha
história? Eu nasci de uma família católica, parte do interior de São Paulo,
parte do interior de Minas Gerais, descendentes de índios, portugueses,
italianos e espanhóis, cresci em São Paulo, tive o coração quebrado algumas
vezes no decorrer dos meus tenros vinte e três anos, tenho ensino superior e um
diploma que não me vale de quase nada.
-Perguntei
a sua história de verdade. – e os dois riram.
-Passei
algum tempo no hospital... Tinha ansiedade e depressão. E você?
-O
que causou sua depressão? – perguntou Guilherme ignorando a pergunta de Lucas.
-A
ansiedade. – ele respondeu sorrindo.
-Fora
isso.
Lucas
parou por um instante. Os médicos sempre deram essa causa aos seus problemas
psicológicos, tudo era causado pela ansiedade, mas ele não sabia muito bem o
que causava a ansiedade, afinal de contas. Não precisou pensar muito, logo a
resposta veio à ele como se fosse algo muito natural.
-A
cidade, parece.
-Ela
realmente massacra.
-Acho
que chega num ponto que não temos muito o que fazer em relação à isso.
-Podemos
fugir.
-Sua
vez, Guilherme.
-Tudo
bem, justo, justo. Eu sempre tive uma vida meio difícil, meu pai batia na minha
mãe, ele era alcoólatra, até o dia em que os dois acabaram se matando numa
briga em casa, eles se esfaquearam e eu tive que me virar sozinho. Tinha treze
anos. Desde então, eu vivo a vida como posso. Não tem muito o que se fazer em
relação a isso.
-Não
sei se aguentaria essa pressão toda. – disse Lucas parecendo ainda mais
pensativo que o normal.
-Aguentaria
sim, com certeza. Você só parece frágil, mas dá pra ver que é bem forte, muito
mais o que realmente aparenta. E se não for, acaba sendo uma hora ou outra.
Lucas
olhou pela janela e percebeu que os postes de luz já estavam acesos, Guilherme
pareceu perceber a mesma coisa. Os dois se levantaram juntos respirando fundo,
Lucas pagou o café com leite ao velho atendente que tentou um sorriso com o
dente banguela, não foi muito bem sucedido. Os dois saíram da lanchonete,
Guilherme abriu a porta da velha caminhonete, enquanto Lucas foi até seu Gol.
-Boa
sorte no caminho da liberdade, Espírito Livre. – disse Lucas apertando a mão de
Guilherme.
-Boa
sorte com as questões da mudança, Cowboy Paulista.
Os
dois sorriram, cada um entrou em seu carro, Guilherme foi o primeiro a sair.
Lucas ficou uns segundos parado e pensando. Ligou o rádio e pensou que aquela
música o estava seguindo, não importa onde fosse.
“Though
nothing, Will keep us together/We could steal time, just for one day/We can be
heroes, forever and ever/What’d you say?”.
Lucas
dirigiu de volta para São Paulo, durante todo o caminho não conseguia parar de
pensar na conversa com Guilherme, tudo parecia ter sido surreal, algo que
jamais aconteceria na vida real. Sua cabeça trabalhava mais, muito mais do que
quando chegara àquela lanchonete na beira da estrada e vira o rapaz lendo On The Road. De uma coisa ele sabia com
toda a certeza: aquele encontro não havia sido por acaso. Talvez eles nunca
mais fossem se ver, talvez eles se encontrassem de novo. Quem sabe quando Lucas
resolvesse visitar Salvador ele não veria Guilherme andando como um personagem
de Jorge Amado, tendo abandonado seu lado beatnick.
Ou talvez, eles se encontrariam de novo em alguma estação lotada de metrô em
São Paulo, porque Guilherme não encontrou a liberdade que estava procurando e
voltou para os grilhões da cidade. Lucas desejou que não, desejou que ele o
encontrasse numa praia baiana, com um sol quente sobre a pele, e que eles
pudessem conversar mais uma vez. Tudo dependia da história, do destino, da liberdade
de Guilherme e da mudança de Lucas.
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