segunda-feira, 4 de maio de 2015

"Heróis"


Dedicado a todos aqueles que lerem e que, em algum momento, se identificarem com algo.

Havia uma música tocando no rádio enquanto Lucas dirigia, ele batucava conforme a batida com os dedos no volante, lá fora havia um vento forte que parecia soprar com a canção. Em sua cabeça explodia uma infinidade de pensamentos, coisas que ele não pensava com tanta frequência, mas que estavam ali naquele momento. As possibilidades de felicidade que haviam em sua direção na Rodovia Castello Branco que, para ele, deveria se chamar Rodovia Carlos Marighela, já havia passado da hora de mudar seu nome. Ele não conseguia visualizar nenhum carro no horizonte, nem à sua frente e nem atrás, o mundo era só dele naquele momento e nada mais importava.

“We could be heroes/Just for one Day”

Sua mania de herói não sumira, desde pequeno. Ele queria salvar as pessoas e as coisas, ele queria que todos fossem salvos, salvos de seus medos, de suas ansiedades. Ele não desejava aquela incerteza que ele mesmo criava para mais ninguém, enfrentar aqui lhe parecia uma coisa sobre-humana, o próprio não sabia como havia superado tudo aquilo. Talvez sua força de vontade, talvez seus amigos, talvez sua família, os livros, quem sabe. Ou se não, as músicas que ele ouvia.  Uma placa sinalizava uma lanchonete ou restaurante a 1 km. Ele resolveu parar, deu a seta e entrou no retorno indicado. O lugar era antigo, um ou dois caminhões estavam parados na frente, uma caminhonete antiga de um verde enferrujado da Chevrolet compartilhava o pequeno estacionamento com aqueles dois monstros. Ele parou ao lado do segundo caminhão, desligou o rádio, o carro e desceu.

Entrou na lanchonete que curiosamente tocava a mesma música que ele estava ouvindo no carro. Era como se a infinidade que ele sentia não quisesse sair dele nunca mais. A lanchonete carecia de uma iluminação um pouco melhor, ele pensou. Mas era a iluminação perfeita para se pensar ou para se ler um livro. Ele sentou-se no balcão e logo um homem velho, com algumas tatuagens já desbotadas nos braços, uma corrente de ouro e um dente faltando veio atendê-lo.

-O que? – disse ele com uma voz cansada e velha, porém decidida.
-Um café com leite, fazendo o favor. – ele respondeu tentando não ser simpático.

O homem pegou um copo da pia, Lucas desconfiou que ele não estivesse tão limpo, colocou uma dose de café e mais um pouco de leite, jogou no balcão e anotou num pedaço de papel o preço colocando ao lado e saiu. Lucas riu pensando como aquilo lhe parecia uma cena de um livro beatnick escrito talvez por Jack Kerouac. Para sua surpresa, enquanto olhava ao redor se deparou com um rapaz moreno, alto e com uma aparência que misturava, certamente, um índio e um português. Ele estava jogado numa das mesas que tinham como assento um sofá que outrora fora vermelho, com as molas aparecendo. Ele lia um livro que Lucas logo identificou como On The Road, do próprio Kerouac que ele acabara de pensar. Ele riu mais alto do que pretendia. O rapaz pareceu notar e o cumprimentou balançando a cabeça. Lucas ficou sem graça, mas cumprimentou de volta. O rapaz continuou olhando e acenou mais uma vez com a cabeça como quem dissesse “vem cá”. Pelo menos foi o que Lucas entendeu, e assim o fez. Pegou seu modesto copo semi-sujo de café com leite e sentou no sofá à frente do rapaz.

-Gosta de Kerouac? – perguntou ele com uma voz grossa e profunda.
-Gosto, acho On The Road um dos livros mais libertadores que existem.
-Qual sua passagem preferida?
Lucas não precisou pensar para responder.
-Quando ele fala de pessoas loucas, pessoas que queimam como velas romanas. E elas brilham no céu como fogos de artifício.

O rapaz sorriu, marcou a página do livro e o fechou colocando-o sobre a mesa, ao mesmo tempo que ergueu a mão para cumprimentá-lo.

-Prazer, meu nome é Guilherme.
-Prazer Guilherme, me chamo Lucas.
-Vem de onde e vai pra onde, Lucas?
-Venho de São Paulo, estou dirigindo só... E você?
-O mesmo. Precisava sair daquela selva de pedras?
-Exatamente. Não estava mais aguentando aquilo tudo.
-Temos mais alguma coisa em comum então. – Guilherme deu uma risada que encheu a lanchonete vazia e escura. Lucas gargalhou em seguida sem saber exatamente do que estava rindo, mas achando engraçado de qualquer maneira.
-Quantos anos você tem, Guilherme?
-A idade que eu sentir que tenho no momento. – Aquela deveria ser a resposta mais influenciada por um livro que se estava lendo naquele momento, mas Lucas achou ela a mais genial de todas. Ia de encontro com as milhares de coisas que vinha pensando no caminho. – E você cowboy paulista?
-Como não sou esse espírito tão absurdamente livre como você, diria que estou com meus vinte e três.
-Meu RG diz que tenho um ano a mais que você. – respondeu ele, aquele sorriso não deixava seu rosto, Lucas começou a desconfiar por que.
-E seu espírito? – Foi a pergunta mais genial que já haviam feito à Guilherme, pelo menos ele pensou isso naquele momento.
-Meu espírito ainda é uma criança aventureira, que quer sair por aí brincando de descobrir o mundo.

Lucas deu o último gole no café com leite.

-Você curte só a literatura gringa? – perguntou ele agora também formando um sorriso em seu rosto.
-De jeito nenhum. Os brasileiros destroem qualquer americano na literatura. Quem é Fitzgerald ao lado de Amado?
-Quem é o Grande Gatsby ao lado de Pedro Bala? – respondeu Lucas sorrindo ainda mais. Os dois riram.
-Nenhum animal de contos de fadas é tão humano quanto a Cadela Baleia. – disse Guilherme se divertindo com aquilo.
-Baleia é o animal mais humano de todos, aliás, ela é o ser humano em pessoa. Um velho e bom selvagem... – Lucas pensou que estava indo meio longe com as referências, mas imaginou errado.
-O pequeno Lucas entende de Rousseau também? – perguntou Guilherme.
-Me impressiona o espírito livre entender de Monsieur Jean-Jacques...
-Jean-Paul também. – ele riu mais uma vez. – O que te cansou em São Paulo?
-Tudo... Os carros, as luzes, os prédios, as pessoas, a política... O ritmo. – Lucas pareceu titubear um pouco quando citou o último. – E você?
-Acho que mais a loucura.
-Qual tipo de loucura? – Lucas sabia.
-A loucura no geral, das pessoas. Elas invadem...
-Invadem a gente. – Lucas completou meio sério.
-Isso mesmo. Meio doido, não? – perguntou Guilherme parecendo meio sombrio, mas ainda mantendo o sorriso.
-“Nós somos todos loucos aqui”... – disse Lucas com mais uma referência.
-Espera, eu sei essa... Mas tá meio longe... Eu li faz tempo. Ou será que assisti?
-Talvez ambos.
-Ah! – ele estalou os dedos alto. – Alice no País das Maravilhas!
-Exatamente.
-Qual seu verdadeiro problema, cowboy paulista? – perguntou Guilherme finalmente.
-Qual o motivo do seu sorriso constante, espírito livre?

Os dois riram baixinho e se entreolharam. Lucas percebeu naquele momento que os olhos de Guilherme eram castanhos, mas tinham alguns pequenos riscos que davam um tom esverdeado, enquanto que os seus eram exatamente o contrário. Ele achou aquilo curioso. Ambos ficaram em silêncio por alguns instantes, só ouviam o velho atendente lavando a louça da maneira mais rápida e simples que podia. Os dois caminhoneiros já haviam saído, Lucas olhou pela janela e viu o último deles saindo. O sol estava se pondo entre as nuvens cinzas que cobriam o céu, ele percebia que a temperatura estava caindo ainda mais.

-Qual seu livro preferido? – Guilherme quebrou o silêncio.
-Capitães da Areia, pelo menos por agora. E o seu?
-On The Road, pelo menos agora. Por que esse é o seu?
-Gosto de como o Jorge Amado expressa a realidade nele, é uma realidade muito próxima a nossa hoje, mesmo que seja um pouco diferente. Além do que, acho que retrata bem o ser humano. Acho o Pedro Bala e o Professor dois dos personagens mais fantásticos da Literatura Universal. Por que o seu preferido é On The Road?
-Acho que é o que eu mais quero: estar na estrada o tempo todo, experimentar o mundo, as coisas novas. Mas aquela cidade prende.
-Prende, massacra. É bem cruel.
Um queria a liberdade, o outro esperava pela mudança. Eles eram iguais, ao mesmo tempo em que eram completamente opostos. Um se sentia como o vento e o outro como a terra, mas no final das contas, todos os dois são parte da natureza.
-Não tem nada que te prenda a São Paulo? – perguntou Lucas.
-Não, não tenho mais. – respondeu Guilherme e pela primeira vez durante toda a conversa, seu sorriso vacilou. – O que te prende?
-Coisas de mais, família e amigos, coisas que ficam mal resolvidas com o passar do tempo, a própria cidade. O que você tinha e não tem mais?
-Família, amigos. Das coisas mal resolvidas eu estou fugindo, e consegui quebrar os grilhões que me prendiam àquele lugar. Pelo menos eu espero que tenha conseguido.
-Pra onde você está indo na real? – Lucas queria realmente saber mais sobre ele.
-Acho que pro Nordeste, onde o sol brilha. Quem sabe a Bahia? Posso virar um Capitão da Areia por lá. – ele riu.
-Paulistanos nunca serão Pedro Bala! – disse Lucas se divertindo com aquilo. – Mas me manda um postal, de qualquer maneira.
-Quem sabe?

Mais uns instantes de silêncio, daqueles bem desconfortáveis. Guilherme pensava como aquilo ali era curioso e tentava entender como se fosse um sinal, como se aquilo pudesse lhe dizer algo.

-Você acredita em Deus, Guilherme?
-Acho que não. E você?
-Sou um rapaz cristão! – ele riu. – Mentira... Acho que acredito em alguma coisa, mas não sei bem no que. Um tipo de energia cósmica talvez.
-Acredito na energia das pessoas e o que cada um faz com elas.
-É uma boa teoria também. O difícil é controlar essa energia.
-Sim, com certeza. – ele sorriu mais forte.
-Seu sorriso... Você não está muito feliz, está? – Lucas disse aquilo e pareceu que estava tirando um peso enorme de suas costas. Como se sua vida dependesse daquela pergunta e, consequentemente, daquela resposta.
-Você entende disso? – respondeu Guilherme sem vacilar com o sorriso mesmo diante da pergunta.
-Entendo bastante.
-Quando se está feliz de verdade? – aquela retórica toda irritaria Lucas em qualquer outro momento, ele gostava de respostas, gostava de sim ou não, e não era um fã de talvez, mas ali ele estava se divertindo.
-Não se chega lá, eu acho. Pelo menos eu nunca cheguei.
-Qual a sua história, Lucas? – e ali, parecia que a pergunta e a resposta determinariam todo o resto da vida de Guilherme dali por diante.
-Minha história? Eu nasci de uma família católica, parte do interior de São Paulo, parte do interior de Minas Gerais, descendentes de índios, portugueses, italianos e espanhóis, cresci em São Paulo, tive o coração quebrado algumas vezes no decorrer dos meus tenros vinte e três anos, tenho ensino superior e um diploma que não me vale de quase nada.
-Perguntei a sua história de verdade. – e os dois riram.
-Passei algum tempo no hospital... Tinha ansiedade e depressão. E você?
-O que causou sua depressão? – perguntou Guilherme ignorando a pergunta de Lucas.
-A ansiedade. – ele respondeu sorrindo.
-Fora isso.

Lucas parou por um instante. Os médicos sempre deram essa causa aos seus problemas psicológicos, tudo era causado pela ansiedade, mas ele não sabia muito bem o que causava a ansiedade, afinal de contas. Não precisou pensar muito, logo a resposta veio à ele como se fosse algo muito natural.

-A cidade, parece.
-Ela realmente massacra.
-Acho que chega num ponto que não temos muito o que fazer em relação à isso.
-Podemos fugir.
-Sua vez, Guilherme.
-Tudo bem, justo, justo. Eu sempre tive uma vida meio difícil, meu pai batia na minha mãe, ele era alcoólatra, até o dia em que os dois acabaram se matando numa briga em casa, eles se esfaquearam e eu tive que me virar sozinho. Tinha treze anos. Desde então, eu vivo a vida como posso. Não tem muito o que se fazer em relação a isso.
-Não sei se aguentaria essa pressão toda. – disse Lucas parecendo ainda mais pensativo que o normal.
-Aguentaria sim, com certeza. Você só parece frágil, mas dá pra ver que é bem forte, muito mais o que realmente aparenta. E se não for, acaba sendo uma hora ou outra.

Lucas olhou pela janela e percebeu que os postes de luz já estavam acesos, Guilherme pareceu perceber a mesma coisa. Os dois se levantaram juntos respirando fundo, Lucas pagou o café com leite ao velho atendente que tentou um sorriso com o dente banguela, não foi muito bem sucedido. Os dois saíram da lanchonete, Guilherme abriu a porta da velha caminhonete, enquanto Lucas foi até seu Gol.

-Boa sorte no caminho da liberdade, Espírito Livre. – disse Lucas apertando a mão de Guilherme.
-Boa sorte com as questões da mudança, Cowboy Paulista.

Os dois sorriram, cada um entrou em seu carro, Guilherme foi o primeiro a sair. Lucas ficou uns segundos parado e pensando. Ligou o rádio e pensou que aquela música o estava seguindo, não importa onde fosse.



Lucas dirigiu de volta para São Paulo, durante todo o caminho não conseguia parar de pensar na conversa com Guilherme, tudo parecia ter sido surreal, algo que jamais aconteceria na vida real. Sua cabeça trabalhava mais, muito mais do que quando chegara àquela lanchonete na beira da estrada e vira o rapaz lendo On The Road. De uma coisa ele sabia com toda a certeza: aquele encontro não havia sido por acaso. Talvez eles nunca mais fossem se ver, talvez eles se encontrassem de novo. Quem sabe quando Lucas resolvesse visitar Salvador ele não veria Guilherme andando como um personagem de Jorge Amado, tendo abandonado seu lado beatnick. Ou talvez, eles se encontrariam de novo em alguma estação lotada de metrô em São Paulo, porque Guilherme não encontrou a liberdade que estava procurando e voltou para os grilhões da cidade. Lucas desejou que não, desejou que ele o encontrasse numa praia baiana, com um sol quente sobre a pele, e que eles pudessem conversar mais uma vez. Tudo dependia da história, do destino, da liberdade de Guilherme e da mudança de Lucas.

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