Me
cansei de todas as coisas que diziam sobre nós, me cansei de todas as coisas
que inventaram sobre nós. Nunca fui
herói, mas também jamais fui um vilão. Tentei ser apenas uma daquelas pessoas
das quais a humanidade se lembra depois de muito tempo, não sei se fui bem
sucedido. Mas, afinal, quem é bem sucedido nesse mundo? Penso nisso enquanto
ando pela Rua da Consolação num fim de tarde frio de Outono com o céu
alaranjado, à minha frente o esplendor intelectual da Biblioteca Mário de Andrade.
Acendo um cigarro e fico ali, do outro lado da rua olhando para o prédio,
pensando na infinidade de livros que descansam dentre suas paredes, corredores
e prateleiras. Nunca achei o povo dessa cidade um público leitor, mas isso
jamais me incomodou.
Parada
num ponto de ônibus próximo ao local onde eu estava parado, uma mulher de mais
ou menos vinte e quatro anos, cabelos louros e um corpo escultural, aquele tipo
de pessoa que parece ter saído de um filme hollywoodiano. Eu a olho com
segundas intenções, ela logo percebe e disfarça um sorriso de satisfação por
estar sendo observada. Eu jogo o cigarro na calçada e piso nele, me aproximo
dela e pergunto se ela tem cigarro. Ela ri diante da minha tentativa estúpida
de puxar assunto e tira da bolsa um maço dos meus preferidos, acende com o
cigarro já em minha boca mesmo contra o vento frio. Tem vinte e cinco anos (um
a mais do que imaginei) e trabalha numa agência de câmbio ali perto. Mora na
região da Aclimação e vem todos os dias ao centro para o trabalho. Pergunto-lhe
se gosta de livros.
-Gosto.
– ela responde com uma voz doce.
-Tem
um título ou autor preferidos? – tive medo da resposta.
-Não
sei... Talvez Machado de Assis. – me surpreendi, decidi que precisava parar de
julgar as mulheres por sua aparência. Precisava me ver livre desse machismo o
mais rápido possível, nunca consegui de forma completa.
-Dom
Casmurro?
-Memórias
Póstumas! – mais uma vez surpreso. Não seria ela uma fã de Capitu? – Meu ônibus
está vindo, acho que te vejo aqui amanhã no mesmo horário? – Aquilo era um
convite? Decidi que sim.
-Com
certeza.
Não
descobri seu nome aquele dia, não poderia deixar de perguntar na próxima tarde.
Aliás, o sol já tinha sumido, decidi que era hora de voltar para casa e me
render ao livro que estava lendo: Assim
Falou Zaratustra.
Na
tarde seguinte não perdi muito tempo olhando para a Biblioteca e apenas me
aproximei dela que estava fumando, eu levava dois cafés com leite para viagem
nas mãos, um pra mim e um pra ela. Acontece que ela não tomava café, pois
deixava os dentes amarelados, lembro de ter me sentido muito incomodado com
aquilo e fiquei completamente encanado que meus dentes estavam amarelados e
esse havia sido o verdadeiro motivo de seu comentário.
-Não
sei seu nome ainda. – disse eu com um sorriso fechado.
-E
precisa?
-Você
não quer dizer seu nome?
-Por
que dizer os nossos nomes? Isso já é metade das nossas verdadeiras identidades.
-Então
vamos inventar pseudônimos.
-Assim
como Fernando Pessoa?
-Exatamente.
O meu vai ser Friederich. – ela riu imediatamente imaginando a referência.
-Você
não tem aquele bigode horrível!
-Mas
sou tão bonito quanto ele! – eu respondi bem humorado achando graça em me
chamar Friederich.
-Bem,
então eu serei Lou. – dessa vez eu ri.
-A
história dos dois não acabou muito bem...
-Isso
não quer dizer nada. Meu ônibus, até amanhã?
-Até
amanhã.
Lou,
minha querida Lou. Foi esse o pensamento que me tomou assim que ela subiu naquele
ônibus elétrico e mais uma vez o crepúsculo havia terminado. Deveria chamá-la
para tomar alguma coisa amanhã, afinal era sexta-feira.
-O
que você faz? – disse Lou entre um gole e outro de cerveja no Bar Brahma.
-Sou
professor de Literatura! – eu disse um pouco mais alto do que gostaria.
-Ah!
Agora suas referências fazem sentido, senhor Nietzsche! – eu ri mais alto do
que normalmente, ela sorriu quase que de forma espontânea.
-Mas
não sou um daqueles caras que respiram livros...
-Pois
deveria! Os livros são muito mais interessantes que a vida real na maioria das
vezes.
-Agora
eu acho que tudo está muito mais interessante que um livro. – respondi arriscando
todas as minhas chances. Lou olhou um instante para mim, percebi que seu rosto
corou um pouco.
-Verdade,
mas é um momento raro.
-Um
brinde aos raros momentos! – disse eu levantando o copo, brindamos.
A
levei para casa naquela noite e demos nosso primeiro beijo, a beijei no carro
em frente ao pequeno prédio no qual ela vivia na Rua Topázio.
-Não
mereço um nome? – perguntei eu.
-Pra
quê um nome? – ela disse meio bêbada. – Acho que as coisas estão muito bem
enquanto estamos sendo Lou e Friederich.
-De
fato, mas...
-Boa
noite, professor. – disse ela me dando um beijo na boca e saindo do carro. Eu
sorri e dei um tapinha no volante antes de sair.
Durante
todo aquele fim de semana não consegui me controlar em absolutamente nada, não
terminava meu Zaratustra por nada, me
sentia o próprio Zaratustra falando comigo mesmo e procurando a mim mesmo. Me
sentia também o oposto do Zaratustra, me sentia o próprio Nietzsche angustiado
por Lou. Não via a hora da segunda-feira chegar e eu ficava fumando um cigarro
atrás do outro, minhas aulas pareciam não passar, estavam chatas para mim,
imaginava para os pobres coitados obrigados a me ouvir falando sobre livros que
não os interessava em absolutamente nada.
A
segunda-feira ao entardecer finalmente chegou em frente à Mario de Andrade, ali
nos cumprimentamos com um selinho e ela sorriu e disse:
-Luiza.
Eu
sorri de volta e declarei:
-Fernando.
Isso
aconteceu faz muito tempo, tempo de mais para que eu possa me lembrar de todos
os detalhes, mas de algo me lembro com tanta vivacidade que meu coração chega a
machucar: o amor que sentimos um pelo outro. Sentimos esse amor até o final,
passamos para nossos filhos e hoje para nossos netos. Luiza, minha querida Lou,
não está mais aqui, ela não faz mais parte desse mundo. Mas faz parte de todos
os livros que tenho, de todas as batidas de meu coração e de cada suspiro que
dou. Espero morrer como ela morreu, deitado, dormindo, tranquilamente. Espero que
ela possa vir me buscar e que me leve para junto de si e que lá possamos ficar
juntos para sempre, até que, mais uma vez, possamos voltar e como um eterno
retorno, viver tudo de novo, como vivemos, todos os detalhes, cada instante. Eu
espero.
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