quinta-feira, 28 de maio de 2015

Friederich & Lou





Me cansei de todas as coisas que diziam sobre nós, me cansei de todas as coisas que inventaram sobre nós. Nunca fui herói, mas também jamais fui um vilão. Tentei ser apenas uma daquelas pessoas das quais a humanidade se lembra depois de muito tempo, não sei se fui bem sucedido. Mas, afinal, quem é bem sucedido nesse mundo? Penso nisso enquanto ando pela Rua da Consolação num fim de tarde frio de Outono com o céu alaranjado, à minha frente o esplendor intelectual da Biblioteca Mário de Andrade. Acendo um cigarro e fico ali, do outro lado da rua olhando para o prédio, pensando na infinidade de livros que descansam dentre suas paredes, corredores e prateleiras. Nunca achei o povo dessa cidade um público leitor, mas isso jamais me incomodou.

Parada num ponto de ônibus próximo ao local onde eu estava parado, uma mulher de mais ou menos vinte e quatro anos, cabelos louros e um corpo escultural, aquele tipo de pessoa que parece ter saído de um filme hollywoodiano. Eu a olho com segundas intenções, ela logo percebe e disfarça um sorriso de satisfação por estar sendo observada. Eu jogo o cigarro na calçada e piso nele, me aproximo dela e pergunto se ela tem cigarro. Ela ri diante da minha tentativa estúpida de puxar assunto e tira da bolsa um maço dos meus preferidos, acende com o cigarro já em minha boca mesmo contra o vento frio. Tem vinte e cinco anos (um a mais do que imaginei) e trabalha numa agência de câmbio ali perto. Mora na região da Aclimação e vem todos os dias ao centro para o trabalho. Pergunto-lhe se gosta de livros.

-Gosto. – ela responde com uma voz doce.
-Tem um título ou autor preferidos? – tive medo da resposta.
-Não sei... Talvez Machado de Assis. – me surpreendi, decidi que precisava parar de julgar as mulheres por sua aparência. Precisava me ver livre desse machismo o mais rápido possível, nunca consegui de forma completa.
-Dom Casmurro?
-Memórias Póstumas! – mais uma vez surpreso. Não seria ela uma fã de Capitu? – Meu ônibus está vindo, acho que te vejo aqui amanhã no mesmo horário? – Aquilo era um convite? Decidi que sim.
-Com certeza.

Não descobri seu nome aquele dia, não poderia deixar de perguntar na próxima tarde. Aliás, o sol já tinha sumido, decidi que era hora de voltar para casa e me render ao livro que estava lendo: Assim Falou Zaratustra.

Na tarde seguinte não perdi muito tempo olhando para a Biblioteca e apenas me aproximei dela que estava fumando, eu levava dois cafés com leite para viagem nas mãos, um pra mim e um pra ela. Acontece que ela não tomava café, pois deixava os dentes amarelados, lembro de ter me sentido muito incomodado com aquilo e fiquei completamente encanado que meus dentes estavam amarelados e esse havia sido o verdadeiro motivo de seu comentário.

-Não sei seu nome ainda. – disse eu com um sorriso fechado.
-E precisa?
-Você não quer dizer seu nome?
-Por que dizer os nossos nomes? Isso já é metade das nossas verdadeiras identidades.
-Então vamos inventar pseudônimos.
-Assim como Fernando Pessoa?
-Exatamente. O meu vai ser Friederich. – ela riu imediatamente imaginando a referência.
-Você não tem aquele bigode horrível!
-Mas sou tão bonito quanto ele! – eu respondi bem humorado achando graça em me chamar Friederich.
-Bem, então eu serei Lou. – dessa vez eu ri.
-A história dos dois não acabou muito bem...
-Isso não quer dizer nada. Meu ônibus, até amanhã?
-Até amanhã.
Lou, minha querida Lou. Foi esse o pensamento que me tomou assim que ela subiu naquele ônibus elétrico e mais uma vez o crepúsculo havia terminado. Deveria chamá-la para tomar alguma coisa amanhã, afinal era sexta-feira.
-O que você faz? – disse Lou entre um gole e outro de cerveja no Bar Brahma.
-Sou professor de Literatura! – eu disse um pouco mais alto do que gostaria.
-Ah! Agora suas referências fazem sentido, senhor Nietzsche! – eu ri mais alto do que normalmente, ela sorriu quase que de forma espontânea.
-Mas não sou um daqueles caras que respiram livros...
-Pois deveria! Os livros são muito mais interessantes que a vida real na maioria das vezes.
-Agora eu acho que tudo está muito mais interessante que um livro. – respondi arriscando todas as minhas chances. Lou olhou um instante para mim, percebi que seu rosto corou um pouco.
-Verdade, mas é um momento raro.
-Um brinde aos raros momentos! – disse eu levantando o copo, brindamos.
A levei para casa naquela noite e demos nosso primeiro beijo, a beijei no carro em frente ao pequeno prédio no qual ela vivia na Rua Topázio.
-Não mereço um nome? – perguntei eu.
-Pra quê um nome? – ela disse meio bêbada. – Acho que as coisas estão muito bem enquanto estamos sendo Lou e Friederich.
-De fato, mas...
-Boa noite, professor. – disse ela me dando um beijo na boca e saindo do carro. Eu sorri e dei um tapinha no volante antes de sair.

Durante todo aquele fim de semana não consegui me controlar em absolutamente nada, não terminava meu Zaratustra por nada, me sentia o próprio Zaratustra falando comigo mesmo e procurando a mim mesmo. Me sentia também o oposto do Zaratustra, me sentia o próprio Nietzsche angustiado por Lou. Não via a hora da segunda-feira chegar e eu ficava fumando um cigarro atrás do outro, minhas aulas pareciam não passar, estavam chatas para mim, imaginava para os pobres coitados obrigados a me ouvir falando sobre livros que não os interessava em absolutamente nada.

A segunda-feira ao entardecer finalmente chegou em frente à Mario de Andrade, ali nos cumprimentamos com um selinho e ela sorriu e disse:

-Luiza.
Eu sorri de volta e declarei:
-Fernando.


Isso aconteceu faz muito tempo, tempo de mais para que eu possa me lembrar de todos os detalhes, mas de algo me lembro com tanta vivacidade que meu coração chega a machucar: o amor que sentimos um pelo outro. Sentimos esse amor até o final, passamos para nossos filhos e hoje para nossos netos. Luiza, minha querida Lou, não está mais aqui, ela não faz mais parte desse mundo. Mas faz parte de todos os livros que tenho, de todas as batidas de meu coração e de cada suspiro que dou. Espero morrer como ela morreu, deitado, dormindo, tranquilamente. Espero que ela possa vir me buscar e que me leve para junto de si e que lá possamos ficar juntos para sempre, até que, mais uma vez, possamos voltar e como um eterno retorno, viver tudo de novo, como vivemos, todos os detalhes, cada instante. Eu espero.

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