quarta-feira, 13 de maio de 2015

Coração (Heróis II)

Aos que procuram.

Só se conseguia ouvir as respirações profundas, os gemidos, quase não se via nada no quarto escuto. Ali apenas uma fraca luz vinda de fora, aquela noite não tinha lua. Um deles parou ofegante, sorriu por um instante e voltou a beijá-lo.

Eles haviam se encontrado um ano antes numa lanchonete à beira da estrada, haviam tido uma das melhores conversas de suas vidas. Aquilo havia mudado completamente o curso da história. Guilherme mudara o curso de sua viagem, a Bahia teria que ficar para outra hora. Enquanto ele dirigia sua velha caminhonete, pensava no que estava perdendo, aquela ligação ele nunca mais encontraria. Lucas tentou tirar sua mente daquele encontro e voltou para São Paulo, durante um ano inteiro ele se tratou, tratou de sua ansiedade, lutou contra a depressão que batia sempre em sua porta. Guilherme o procurou. Por um ano ele tentou encontrá-lo. Fosse nas redes sociais, fosse nas ruas amontoadas de gente.

Uma noite, desanimado e desencantado, com a certeza de que nunca mais veria Lucas, se enfiou em um boteco qualquer na Augusta. Sentou-se no balcão e pediu uma cerveja, ficou ali observando o movimento, a cabeça longe, muito longe. Parecia que ele não estava mais ali, Salvador voltou à sua mente. Talvez fosse o momento de retomar a ideia, voltar ao desapego, sair daquela cidade outra vez. Fugir de tudo, nada mais o prendia ali. De repente, o tempo parou. Sorrindo de uma forma encantadora, Lucas passou pela calçada apinhada de gente que bebia, ria e conversava. O coração de Guilherme acelerou, ele saiu correndo sem pagar a cerveja. Ficou dois segundos parado procurando, viu que ele estava atravessando a rua, se meteu entre os carros que buzinaram para ele. Lucas e os amigos viraram para ver o que estava acontecendo na rua. Lucas podia jurar que seu coração parou de bater por alguns segundos, ele ficou branco e começou a suar imediatamente apesar do vento frio, Guilherme parou na sua frente. Os dois sorriram.

-Salvador mudou de lugar? – perguntou Lucas sorrindo.

-Não, Salvador continua lá. Eu que nunca cheguei. – disse Guilherme meio sem graça reparando que os amigos de Lucas olhavam para aquilo sem entender nada.

-Por quê?

-Lembra que eu disse que estava deixando São Paulo porque...

-Nada mais te prendia aqui. Sim.

-Pois é, achei alguma coisa que me prendeu de novo.

Lucas ficou vermelho, sabia que não era por causa do vento frio. Ele abaixou a cabeça e mordeu o lábio inferior.

-Lucas, você não vai apresentar o moço? – perguntou um rapaz com a voz anasalada e o cabelo pintado de branco.

-Esse é o Guilherme... A gente se conheceu faz um tempo. Por aí. Guilherme, esses são meus amigos...

-Quer tomar uma cerveja? – ele interrompeu correndo o risco de ser um pouco grosseiro – Na verdade, acho que não paguei a que eu estava tomando ali.

-É que eu estou com eles... Nós íamos dançar e... – ele pensou melhor – Tudo bem. Gente, eu ligo pra vocês mais tarde, ok?

Os três rapazes que estavam com ele pareceram ficar meio aborrecidos mas concordaram sem dizer mais nada. Lucas e Guilherme voltaram ao bar onde a cerveja não tinha sido paga e continuava no balcão vazio, aparentemente ninguém percebera.

-O que houve? – perguntou Lucas parecendo genuinamente curioso.

-Já te disse, achei alguma coisa que me prendesse aqui.

-O que?

-Uma pessoa.

-Arrumou uma namorada? – perguntou Lucas com seu coração batendo forte como um tambor no peito, ficou com medo que Guilherme pudesse ouvir.

-Acho que não... – Guilherme desviou o olhar.

-Qual seu livro preferido agora? – perguntou Lucas sorrindo.

-Continua sendo On The Road e o seu?

-Acho que A Mulher Desiludida.

-Simone de Beauvoir? – aquele sorriso que há um ano Guilherme não tirava do rosto reapareceu.

-Isso mesmo. Já leu?

-Li sim... Achei angustiante no mínimo.

-O existencialismo é angústia pura, né?

O garçom colocou mais uma cerveja ali e um copo na frente de Lucas que pegou e se serviu.

-Como anda sua ansiedade? – perguntou Guilherme.

-Bem, eu to bem melhor. Bem melhor mesmo! Nem parece que continuo vivendo aqui. – Lucas riu tomando um gole de cerveja.

-Que ótimo! Fico feliz em saber.

-Coincidência a gente se encontrar, né?

-Você acredita em coincidências?

-Às vezes... A vida é meio contingente, não acha?

-Pra algumas coisas. Acho que pra outras é mais uma questão de... Destino? – Guilherme pareceu meio inseguro daquela palavra.

-Destino? Forte... Não sei. Talvez. Mas em que tipo de situação?

-Amor.

Lucas ficou vermelho e dessa vez não tinha a desculpa do vento já que estavam em um ambiente interno.

-Desculpa... – Guilherme ficou automaticamente sem graça.

-Não! Tudo bem... Tá tudo bem. Eu... Eu só fiquei surpreso. Não achei que você se sentisse assim.

-Eu percebi no momento que comecei a dirigir, me arrependi de não ter pego seu telefone, e-mail, nome completo. Qualquer coisa. Achei que nunca mais fosse te encontrar... Fiquei o ano inteiro te procurando.

-Sério? – Lucas pareceu surpreso.

-Sério... Louco, né?

-Um pouco... Mas nem tanto.

Guilherme suspirou um instante. E tomou coragem:

-Quer ir pro meu apartamento? É aqui perto... É bem pequeno e simples, mas...

-Quero. Vamos.


Os dois caminharam até o pequeno apartamento na Bela Vista, subiram juntos e como se aquilo estivesse guardado por todo aquele ano, se beijaram. Os dois começaram a tirar as roupas e caíram juntos na cama. Não sentiam mais frio. Só se conseguia ouvir as respirações profundas, os gemidos, quase não se via nada no quarto escuto. Ali apenas uma fraca luz vinda de fora, aquela noite não tinha lua. Um deles parou ofegante, sorriu por um instante e voltou a beijá-lo. O prazer foi quase que incomensurável, Lucas pensou que aquilo era o que chamavam de fazer amor, ele nunca o tinha feito. Guilherme pensou a mesma coisa. É raro. Quando dois universos tão distantes e tão próximos ao mesmo tempo acabam se cruzando e se unem, tornam-se um só. Como se fosse algo completamente natural. Ambos os corações martelavam como tambores indígenas que indicavam uma guerra se aproximando. Não existia mundo fora daquele quarto, fora daquela cama. Tudo se resumia às duas peles e aos pelos que se embaraçavam, a saliva que era trocada, ao suor que se misturava. Um ano buscando o outro, um ano reencontrando a si mesmo, aparentemente nem tudo é contingente. Às vezes, em alguns assuntos, a vida acaba sendo diferente. Tudo no mundo tem seu próprio tempo.

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