Abril
de 2015.
A mim mesmo, por mudar.
A
sala tinha um cheiro doce, talvez de Dama da noite, todo decorado com estantes
cheias de livros, as lombadas variavam das mais clássicas até as mais modernas.
Uma tapeçaria que lembrava Rafael filmes em grandes mansões, todas vermelhas
com desenhos medievais. No centro havia um divã de couro, uma mesinha ao seu
lado e uma poltrona muito aconchegante onde estava sentada a psicóloga que ele
tanto se recusara a ir ver. Ninguém além dele mesmo o havia convencido a marcar
uma consulta. Ele ficou ali sentado no divã por uns instantes, os olhos verdes
da doutora o olhavam com uma paciência que ele jamais teria com qualquer
pessoa.
-E
então, Rafael... Me fale um pouco de você. – disse ela com um sorriso que
poderia acalmar a criança mais birrenta.
-Não
sei falar de mim, doutora.
-Parece
difícil, mas depois que você começa acaba ficando mais fácil.
-Mas
o que a senhora quer saber?
-O
que você quer me contar?
-Não
sei. O que é que um psicólogo tem que saber pra ajudar?
-Na
verdade, eu não preciso saber de muita coisa. Você precisa entender o que vai
te ajudar.
-Então
eu estou te pagando pra absolutamente nada? – Rafael parecia um pouco
desconfortável de mais com aquela ideia.
-Não,
você está me ajudando para que eu possa te mostrar um caminho por meio de
algumas questões.
-Então
me questiona.
-Como
é sua relação com seus pais?
-Boa...
Quero dizer, meus pais se separaram quando eu tinha sete anos, faz um ano e
pouco que meu pai mudou pra Alagoas, ele já se aposentou, tá morando de frente
pra praia. Acho que ele merece isso, minha mãe e minha irmão não gostaram muito
da ideia.
-Entendo.
E sua relação com sua irmã?
-É
normal, a gente já brigou muito, hoje nos damos muito bem.
-São
só vocês três então? Sua irmã é mais velha?
-Somos
nós três e nosso cachorro. Ela é mais velha que eu sim.
-E
como você lidou com a separação dos seus pais?
Ele
pensou por um minuto, as pessoas geralmente estranhavam aquela resposta.
-Eu
lidei muito bem. Prefiro eles separados...
-Por
quê?
-Eles
brigavam muito, depois que se separaram as brigas meio que acabaram. Pelo menos
diminuíram muito.
-E
você nunca quis que eles voltassem?
-Nunca...
Acho que por causa das brigas também. E eu fico imaginando como minha vida
seria se meu pai tivesse continuado em casa, acho que em alguns pontos teria
sido mais difícil pra mim.
-Por
exemplo?
-Por
exemplo assumir minha sexualidade.
-Você
é gay?
-Não
gosto de rótulos... Eu acho que isso tudo é uma grande construção, nós
performamos as coisas que aprendemos a ser.
A
psicóloga deu uma risada entendendo o que ele queria dizer:
-Teoria
de Gênero?
-Exato.
Judith Butler. Michel Foucault. Eu sou formado em filosofia...
-E
estuda isso? – ela sorriu.
-Sim...
É meu mestrado. Gênero em Educação.
-Por
que você estuda isso? E desde quando?
-Estudo
desde o segundo ano de faculdade... Acho que porque fala muito comigo.
-Você
sempre se sentiu confortável em ter sentimentos homoafetivos?
-Não,
nem sempre. Às vezes eu quis mudar isso em mim.
-E
você tentou?
-Tentei.
Consegui até... Mas tenho uma preferência.
-Por
que você tentou mudar?
-Pressão
social.
-Dos
amigos?
-Não,
meus amigos sempre me apoiaram muito. Foi mais quando comecei a dar aulas na
escola pública, senti que aquilo meio que ofendia alguns alunos, que eles ainda
entendiam aquilo como sendo algo errado, fora do padrão. Num primeiro momento
eu comecei a tentar negar isso, mas depois eu comecei a insistir com eles que,
na verdade, a homossexualidade, bissexualidade, enfim... Todas as formas de
desejo e amor são válidas.
-Funcionou?
-Funcionou,
pelo menos na maioria.
-Isso
é ótimo! – ela sorriu ainda mais.
-Acho
que sim. – ele sorriu de volta, estava mais confortável e já esticara as pernas
no Divã.
-Como
foi a aceitação da sua família?
-Minha
mãe aceitou muito bem, minha irmã também. Nunca disse ao meu pai, mas acho que
minha mãe disse. Ele finge que não sabe, eu finjo que não sou.
-Você
acha que sua mãe disse?
-Acho.
-Não
tem certeza?
-Não,
nunca quis ter, eu acho.
-Qual
o motivo?
-Meu
pai é Testemunha de Jeová, acho que tenho que respeitar isso. Foi uma escolha
dele. Ele sempre me respeitou e nunca me deixou faltar nada, se isso vai
machucá-lo em algum nível, eu prefiro evitar.
-Isso
está bem pra você?
-Está
sim. Não me incomodo.
-Que
bom. Você me parece bem resolvido com esse assunto.
-É,
eu pareço.
-Apenas
parece?
-Acho
que não sou tão bem resolvido, sou resolvido o máximo que posso ser. Ninguém é
tão bem resolvido com tantos discursos sociais que nos impõe certas regras. É
como Simone dizia...
-De
Beauvoir? – ela se mexeu um pouco na poltrona.
-Sim...
Ela dizia que “não se nasce mulher; Torna-se mulher”, eu acho que nos tornamos humanos
mesmo.
-Como
assim, Rafael? – ela parecia realmente interessada naquilo.
-Ora,
é a mesma coisa. Nós nascemos seres biologicamente humanos, mamíferos e tal,
mas são nossas escolhas e nossas oportunidades que nos tornam humanos ou não.
Tem muito homem por aí, mas alguns não são humanos.
-Você
é bem existencialista.
-Bastante,
mas num sentido bem positivo da coisa.
-Positivo?
Você se considera positivo?
-Sim,
quando eu estou bem.
-Isso
é ótimo. Você namora?
-Não,
nunca cheguei nesse nível.
Ela
pareceu um pouco surpresa.
-Por
que você acha que nunca namorou?
Rafael
riu.
-Porque
eu me auto-sabotava.
-Por
quê?
-Porque
eu tinha medo.
-Medo
de quê?
-Não
sei. Isso é bem irracional pra mim. Por que você acha, doutora?
-Talvez
pelo relacionamento dos seus pais. Talvez você ache que seja melhor ficar
sozinho também, para não brigar.
-Isso
é verdade. Eu tenho o dom de brigar com as pessoas que eu gosto muito.
-Por
quê?
-Porque
eu tendo a prender elas... Para que elas não possam ir embora. Eu demorei um
tempo pra entender que, na verdade, eu só as afasto assim. Ninguém gosta de se
sentir preso, sufocado.
-Você
disse que entendeu isso?
-Entendi.
Tive um problema assim com um dos meus melhores amigos. Por sorte, consegui
mudar a situação antes que fosse tarde de mais.
-Vocês
continuam amigos?
-Sim,
muito. O relacionamento é outro, o sentimento o mesmo.
-É
um relacionamento mais saudável?
-Com
certeza.
-Você
tinha algum tipo de desejo por esse amigo?
-Cheguei
a achar que sim, cheguei a achar que estava apaixonado por ele. Mas percebi que
não.
-Por
quê?
-Porque
quando pensei em transar com ele, senti uma repulsa enorme. Por mais que eu o
ache bonito, atraente. É como se ele fosse perfeito de mais, eu não quero
perfeição. Além do mais, a repulsa veio porque ele é como se fosse meu
irmãozinho. Eu não transaria com o meu irmão, isso seria doentio.
-Você
me parece tranquilo com isso.
-Eu
estou agora. Não estava antes, mas agora eu estou.
-Fernando,
por que você veio aqui?
-Não
sei... Achei que tinha que vir.
-Só
achou?
-Acho
que eu quero seguir minha vida. Encontrar alguém, e preciso me entender melhor
pra isso. Por isso vim.
-Há
alguém em vista?
-Eu
espero que sim. – Rafael se sentiu um pouco bobo falando aquilo e corou.
-É
importante se compreender, Rafael. Mas é um longo caminho.
-Vamos
nessa.
-Continuamos
na próxima... Nossa hora terminou.
-Já?
-Sim.
– ela sorriu tão gentilmente que Rafael sorriu de volta quase que
automaticamente.
-Então...
Semana que vem?
-Mesmo
horário.
-Até
lá.
Rafael
saiu da sala coberta de livros se sentindo estranho, porque sentia-se livre.
Esperava que as coisas melhorassem daquele dia em diante.

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