quinta-feira, 2 de abril de 2015

Culpa


Abril de 2015.

A mim mesmo, por mudar.

A sala tinha um cheiro doce, talvez de Dama da noite, todo decorado com estantes cheias de livros, as lombadas variavam das mais clássicas até as mais modernas. Uma tapeçaria que lembrava Rafael filmes em grandes mansões, todas vermelhas com desenhos medievais. No centro havia um divã de couro, uma mesinha ao seu lado e uma poltrona muito aconchegante onde estava sentada a psicóloga que ele tanto se recusara a ir ver. Ninguém além dele mesmo o havia convencido a marcar uma consulta. Ele ficou ali sentado no divã por uns instantes, os olhos verdes da doutora o olhavam com uma paciência que ele jamais teria com qualquer pessoa.

-E então, Rafael... Me fale um pouco de você. – disse ela com um sorriso que poderia acalmar a criança mais birrenta.
-Não sei falar de mim, doutora.
-Parece difícil, mas depois que você começa acaba ficando mais fácil.
-Mas o que a senhora quer saber?
-O que você quer me contar?
-Não sei. O que é que um psicólogo tem que saber pra ajudar?
-Na verdade, eu não preciso saber de muita coisa. Você precisa entender o que vai te ajudar.
-Então eu estou te pagando pra absolutamente nada? – Rafael parecia um pouco desconfortável de mais com aquela ideia.
-Não, você está me ajudando para que eu possa te mostrar um caminho por meio de algumas questões.
-Então me questiona.
-Como é sua relação com seus pais?
-Boa... Quero dizer, meus pais se separaram quando eu tinha sete anos, faz um ano e pouco que meu pai mudou pra Alagoas, ele já se aposentou, tá morando de frente pra praia. Acho que ele merece isso, minha mãe e minha irmão não gostaram muito da ideia.
-Entendo. E sua relação com sua irmã?
-É normal, a gente já brigou muito, hoje nos damos muito bem.
-São só vocês três então? Sua irmã é mais velha?
-Somos nós três e nosso cachorro. Ela é mais velha que eu sim.
-E como você lidou com a separação dos seus pais?
Ele pensou por um minuto, as pessoas geralmente estranhavam aquela resposta.
-Eu lidei muito bem. Prefiro eles separados...
-Por quê?
-Eles brigavam muito, depois que se separaram as brigas meio que acabaram. Pelo menos diminuíram muito.
-E você nunca quis que eles voltassem?
-Nunca... Acho que por causa das brigas também. E eu fico imaginando como minha vida seria se meu pai tivesse continuado em casa, acho que em alguns pontos teria sido mais difícil pra mim.
-Por exemplo?
-Por exemplo assumir minha sexualidade.
-Você é gay?
-Não gosto de rótulos... Eu acho que isso tudo é uma grande construção, nós performamos as coisas que aprendemos a ser.
A psicóloga deu uma risada entendendo o que ele queria dizer:
-Teoria de Gênero?
-Exato. Judith Butler. Michel Foucault. Eu sou formado em filosofia...
-E estuda isso? – ela sorriu.
-Sim... É meu mestrado. Gênero em Educação.
-Por que você estuda isso? E desde quando?
-Estudo desde o segundo ano de faculdade... Acho que porque fala muito comigo.
-Você sempre se sentiu confortável em ter sentimentos homoafetivos?
-Não, nem sempre. Às vezes eu quis mudar isso em mim.
-E você tentou?
-Tentei. Consegui até... Mas tenho uma preferência.
-Por que você tentou mudar?
-Pressão social.
-Dos amigos?
-Não, meus amigos sempre me apoiaram muito. Foi mais quando comecei a dar aulas na escola pública, senti que aquilo meio que ofendia alguns alunos, que eles ainda entendiam aquilo como sendo algo errado, fora do padrão. Num primeiro momento eu comecei a tentar negar isso, mas depois eu comecei a insistir com eles que, na verdade, a homossexualidade, bissexualidade, enfim... Todas as formas de desejo e amor são válidas.
-Funcionou?
-Funcionou, pelo menos na maioria.
-Isso é ótimo! – ela sorriu ainda mais.
-Acho que sim. – ele sorriu de volta, estava mais confortável e já esticara as pernas no Divã.
-Como foi a aceitação da sua família?
-Minha mãe aceitou muito bem, minha irmã também. Nunca disse ao meu pai, mas acho que minha mãe disse. Ele finge que não sabe, eu finjo que não sou.
-Você acha que sua mãe disse?
-Acho.
-Não tem certeza?
-Não, nunca quis ter, eu acho.
-Qual o motivo?
-Meu pai é Testemunha de Jeová, acho que tenho que respeitar isso. Foi uma escolha dele. Ele sempre me respeitou e nunca me deixou faltar nada, se isso vai machucá-lo em algum nível, eu prefiro evitar.
-Isso está bem pra você?
-Está sim. Não me incomodo.
-Que bom. Você me parece bem resolvido com esse assunto.
-É, eu pareço.
-Apenas parece?
-Acho que não sou tão bem resolvido, sou resolvido o máximo que posso ser. Ninguém é tão bem resolvido com tantos discursos sociais que nos impõe certas regras. É como Simone dizia...
-De Beauvoir? – ela se mexeu um pouco na poltrona.
-Sim... Ela dizia que “não se nasce mulher; Torna-se mulher”, eu acho que nos tornamos humanos mesmo.
-Como assim, Rafael? – ela parecia realmente interessada naquilo.
-Ora, é a mesma coisa. Nós nascemos seres biologicamente humanos, mamíferos e tal, mas são nossas escolhas e nossas oportunidades que nos tornam humanos ou não. Tem muito homem por aí, mas alguns não são humanos.
-Você é bem existencialista.
-Bastante, mas num sentido bem positivo da coisa.
-Positivo? Você se considera positivo?
-Sim, quando eu estou bem.
-Isso é ótimo. Você namora?
-Não, nunca cheguei nesse nível.
Ela pareceu um pouco surpresa.
-Por que você acha que nunca namorou?
Rafael riu.
-Porque eu me auto-sabotava.
-Por quê?
-Porque eu tinha medo.
-Medo de quê?
-Não sei. Isso é bem irracional pra mim. Por que você acha, doutora?
-Talvez pelo relacionamento dos seus pais. Talvez você ache que seja melhor ficar sozinho também, para não brigar.
-Isso é verdade. Eu tenho o dom de brigar com as pessoas que eu gosto muito.
-Por quê?
-Porque eu tendo a prender elas... Para que elas não possam ir embora. Eu demorei um tempo pra entender que, na verdade, eu só as afasto assim. Ninguém gosta de se sentir preso, sufocado.
-Você disse que entendeu isso?
-Entendi. Tive um problema assim com um dos meus melhores amigos. Por sorte, consegui mudar a situação antes que fosse tarde de mais.
-Vocês continuam amigos?
-Sim, muito. O relacionamento é outro, o sentimento o mesmo.
-É um relacionamento mais saudável?
-Com certeza.
-Você tinha algum tipo de desejo por esse amigo?
-Cheguei a achar que sim, cheguei a achar que estava apaixonado por ele. Mas percebi que não.
-Por quê?
-Porque quando pensei em transar com ele, senti uma repulsa enorme. Por mais que eu o ache bonito, atraente. É como se ele fosse perfeito de mais, eu não quero perfeição. Além do mais, a repulsa veio porque ele é como se fosse meu irmãozinho. Eu não transaria com o meu irmão, isso seria doentio.
-Você me parece tranquilo com isso.
-Eu estou agora. Não estava antes, mas agora eu estou.
-Fernando, por que você veio aqui?
-Não sei... Achei que tinha que vir.
-Só achou?
-Acho que eu quero seguir minha vida. Encontrar alguém, e preciso me entender melhor pra isso. Por isso vim.
-Há alguém em vista?
-Eu espero que sim. – Rafael se sentiu um pouco bobo falando aquilo e corou.
-É importante se compreender, Rafael. Mas é um longo caminho.
-Vamos nessa.
-Continuamos na próxima... Nossa hora terminou.
-Já?
-Sim. – ela sorriu tão gentilmente que Rafael sorriu de volta quase que automaticamente.
-Então... Semana que vem?
-Mesmo horário.
-Até lá.
Rafael saiu da sala coberta de livros se sentindo estranho, porque sentia-se livre. Esperava que as coisas melhorassem daquele dia em diante.



Nenhum comentário:

Postar um comentário