sábado, 18 de abril de 2015

Nem o Diabo te Reconheceria




Às mudanças e às possibilidades, ao hoje, porque o amanhã ainda não foi escrito.

    Manoel olhou o céu azul acima dele, algumas nuvens começavam a aparecer, elas não estavam ali minutos antes. Ele respirou fundo pensando que não havia trazido o guarda-chuva consigo. Com certeza voltaria para casa encharcado mais uma vez. Os estudantes andavam calmamente pela Cidade Universitária, ele se dirigiu ao prédio de Filosofia, mas não entrou, deu a volta e encontrou uma árvore onde se encostou e sentou enquanto a chuva não começava. Não queria ouvir falar de nenhum pensamento além do seu próprio naquela tarde. Ele tirou o caderno da mochila e pegou a caneta azul presa na espiral, abriu numa página qualquer e ficou olhando as linhas que mais pareciam caminhos que começavam e logo terminavam.

    Ele desistiu. Guardou os dois na mochila gasta e olhou para cima, fechou os olhos e algumas cenas começaram a pipocar em sua cabeça de repente. Ele se viu aos treze anos, perdendo a virgindade cedo de mais, muito mais cedo do que poderia querer hoje em dia. Mas ele estava apaixonado, era o conforto que tinha. Não que se arrependesse daquilo, mas pensava que, talvez, a vida pudesse ter sido muito mais fácil sem todo aquele trauma que passara com Bernardo, um ano mais novo, completamente perdido na vida. Usava drogas, todos os tipos, desde aquela época, mas os cabelos cumpridos e a pose de um bad boy wannabe chamaram a atenção de Manoel naquela época. Quando, depois de uma semana fugido de casa, Bernardo reapareceu, ele lhe telefonou e disse que tudo iria ficar bem, que tudo iria se resolver. Manoel sabia que não, aos catorze anos ele já aprendera o bastante até aquele momento. Disse-lhe que nunca mais o procurasse e desligou o telefone. Não ouviria a voz de Bernardo por muitos e muitos outros anos. Ele fora forte, muito mais do que poderia ser naquela idade, tudo ficou guardado.

    Anos depois, já aos dezenove anos, ele se lembrou do envolvimento rápido mas intenso que teve com Caio, que era mórmon. Ele tinha muitos problemas consigo mesmo, o peso da religião era grande de mais. Aquilo fez Manoel pensar como a religião pode também destruir as pessoas, tudo ficava mais pesado com a culpa que o cristianismo conseguia impor a algumas pessoas. Aquilo não ajudava ninguém, pelo menos é o que ele pensava. Quando tudo deu errado, por parte ele não saber lidar com seus sentimentos e sua intensidade, parte por causa da religião tão forte na vida de Caio, foi como se Manoel se quebrasse em milhares de pedacinhos. Tudo parecia perdido, nada parecia poder consertar seu coração que agora estava despedaçado como vidro, mas ele sabia que teria de se reerguer, chegar mais uma vez nas nuvens... E ali ele ficaria até se sentir bem de novo.

    Aquele momento de sua vida estava tomado de uma série de reflexões sobre sua própria vida. Ele queria entender porque nada parecia dar certo para ele em momento nenhum, ele percebeu que tinha que expurgar de si, ainda, Bernardo. Era uma sombra que não podia mais permanecer perseguindo-o. Não poderia haver o mínimo contato, a lembrança ficaria para sempre, porque aquilo o transformara, mas não o sentimento. Ele precisava deixar pra trás aquilo que tanto o incomodava. O sol parou de bater em seu rosto de repente, a chuva chegava aos poucos e ele percebeu o quanto havia mudado nos últimos dez anos, mudou tanto que pensou que nem mesmo o diabo o reconheceria mais, ele precisava se reconhecer antes. Mesmo que o conhecimento total de si mesmo lhe parecesse uma enorme utopia. Ele se levantou e entrou no prédio, talvez o pensamento de outra pessoa pudesse ajudá-lo naquele momento. Choveu muito naquela tarde e era como se a chuva estivesse lavando toda a cidade e expurgando-a de um passado que deveria permanecer o que é: passado apenas.

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