Para a Lígia que me pediu uma história
fantástica e para o Breno que me fez perceber que eu tenho que fazer as duas vozes na minha cabeça conversarem.
O
céu estava rosa. Liza não sabia o que aquilo significava ou onde ela estava, as
nuvens eram de um azul muito claro, e elas se misturavam numa figura que
parecia um grande castelo no céu. A última coisa que se lembrava era de estar
em seu quarto com sua pequena gatinha e de repente uma luz muito forte entrar
por sua janela e chamas azuis a envolverem. Ela perdeu a consciência e acordou
naquele lugar estranho. Ela estava deitada num enorme deserto, nada havia ali
além do céu e das nuvens que se pareciam com um castelo enorme.
Liza
se levantou e percebeu que sua calça jeans estava rasgada no joelho, seus tênis
All Star haviam desaparecido e ela
estava descalça, sua camiseta não estava mais preta, mas roxa. Não tinha muita escolha
senão andar, ela tinha certa dificuldade para andar encima da fofa areia que só
agora, ela percebia, tinha uma tonalidade mais vermelha do que o normal. De
repente algo chamou sua atenção. Havia a sua frente um grande lobo branco com
os olhos azuis, muito penetrantes. Ela se perguntou como era possível um lobo
em um deserto. Chegou a conclusão que aquilo não fazia o menor sentido, mas o
lobo estava ali parado olhando para ela da forma mais penetrante possível. Ela
se aproximou. O lobo fez uma mesura, ele era enorme. Ela entendeu logo e montou
nas costas do animal. Ele começou a correr e de repente estava alçando voo,
Liza podia sentir o vento balançando seus cabelos negros e tinha que fechar um
pouco seus olhos puxados, o lobo voava em direção ao castelo.
De
fato, ali havia um imenso castelo prateado. Ele estava escondido nas nuvens,
como se elas fossem um enorme escudo, o lobo pousou num enorme jardim que
ficava fora do castelo. Liza desceu e quando percebeu o grande animal branco já
havia sumido. Ela começou a reparar nas plantas do jardim, elas eram todas fluorescentes,
havia flores verdes, azuis, vermelhas, roxas, amarelas, rosas. Uma enorme fonte
com água dourada ficava no centro, logo atrás um enorme portão de prata que
devia levar para dentro do castelo.
Tomada
por uma certa ansiedade ela atravessou o portão, o corredor de entrada do
castelo era tomado por uma centena de quadros, havia não só pessoas, mas
animais pintados neles e todos pareciam vivos, no topo, logo acima uma enorme
escadaria no final do corredor, havia o quadro de um enorme dragão dourado com
olhos verdes. Seus olhos pareciam esmeraldas colocadas ali propositalmente para
assustar os curiosos como Liza. Ela se sentia hipnotizada por aquele animal mítico.
Sentiu um calafrio na espinha e desejou estar em seu quarto com sua gatinha uma
vez mais. Mas não podia parar agora, por isso começou a subir as escadas, logo
ao final do primeiro lance viu uma raposa. Mas não uma raposa comum, seu pelo brilhava
como a luz da lua, e ela possuía nove caudas, em cada uma dessas caudas havia
uma chama azul que parecia dançar. Ela percebeu que se parecia com a mesma chama azul que aparecera em seu
quarto.
-Foi
você quem me trouxe aqui? – perguntou Liza um pouco amedrontada.
-Sim.
– a raposa respondeu sem mexer a mandíbula, parecia que a voz estava ecoando
dentro da cabeça de Liza e ela era poderosa, assustadora, mas ao mesmo tempo
tranquilizadora.
-Por
quê? – Liza se aproximava aos poucos da belíssima raposa.
-Há
perguntas que não podem ser respondidas, Liza. São fatos que devemos
simplesmente aceitar, nesse ou no outro mundo. Não importa. Apenas aceite.
-Mas...
Eu não entendo.
-Talvez
morra sem poder entender. Você tem uma missão.
-Missão?
Aqui? Onde é aqui?
-Você
faz perguntas de mais.
Liza
se sentiu irritada com aquela colocação da raposa, e ela deve ter percebido
isso pois logo voltou a falar.
-Apenas
deixe que a história te dê as respostas que procura menina. As respostas podem
mudar. O futuro não é algo definido.
-Eu
tenho que continuar a subir então.
-Assim
é. Posso lhe responder onde você está.
-Onde?
-Esse
é o Castelo no Céu, aqui não há súditos, há realeza e um rei. Não há quem se
governe, mas há os que governam.
Dito
isso, as chamas dançantes espalhadas pelas nove caudas da raposa se mexeram
rapidamente envolvendo-a e a circularam fazendo-a desaparecer. Liza respirou
fundo e continuou subindo, a escada tornava-se circular de repente. No próximo
andar havia um corredor com muitas portas, a maioria delas estavam abertas, mas
havia uma no meio que parecia desgastada e antiga, estava fechada. Liza se
aproximou e colocou o ouvido nela. Ouviu um choro. Olhou para os lados e agora
só havia o corredor e nada mais, a escada havia sumido e agora ela
encontrava-se num corredor mais ou menos iluminado, as portas abertas haviam
desaparecido e só restava aquele caminho. Tremendo um pouco e suando ela girou
a maçaneta e sem muitos problemas a porta se abriu completamente.
O
quarto era mal iluminado, embora houvesse uma janela que dava para o jardim no
qual ela aterrissara com o lobo, uma cama de metal branca, uma escrivaninha e
alguns brinquedos jogados pelo chão. Ela pensou ter reconhecido uma de suas
bonecas preferidas quando era criança, foi só depois disso que se deu conta que
ali havia uma criança em posição fetal, sentada entre a cama e a escrivaninha,
a criança chorava.
-Oi...
Você está bem? – perguntou Liza se aproximando da criança, percebendo que era
uma menina.
-Eles
estão brigando de novo... Por que eles não param de brigar? – disse a criança
entre soluços. Liza parou por um instante, mas não ouvia ninguém brigando.
-Não
tem ninguém brigando. Você deve estar imaginando coisas, esqueça isso. Onde
estão as outras pessoas desse castelo?
-Eles
estão brigando de novo... Por que eles não param de brigar?
A
menina não se movia, ela repetiu a mesma pergunta, na mesma tonalidade e entre
os mesmos soluços de antes. Liza sentiu um frio de repente e ficou
inexplicavelmente nervosa.
-Não
tem ninguém brigando, menina! E se eles estiverem brigando, o problema é deles
não seu! Você não tem culpa nenhuma disso! Você não pediu pra nascer! Levanta
daí e vai brincar!
A
menina a olhou com as lágrimas nos olhos e disse:
-Eu
acho melhor eles não ficarem mais perto um do outro.
Aquilo
atingiu Liza de uma forma quase que completa, sentiu um balde de água fria
caindo sobre ela.
-Talvez...
Talvez seja melhor. Talvez seja melhor pra você. Menina...
Ela olhou
de volta para Liza relaxando um pouco.
-Não
deixe que eles definam sua vida.
A
menina sorriu e se levantou e foi brincar com a boneca jogada no chão, Liza
olhou por alguns instantes e se sentiu um pouco menos pesada do que estava,
aliás, ela só havia percebido que pesava naquele instante. Ela saiu do quarto,
as outras portas não estavam mais ali, mas havia uma nova escadaria no final do
corredor, esta era feita de pedra. Ela tomou fôlego e voltou a subir.
O
próximo andar era um corredor mais largo, as portas todas brilhavam, mas havia
mais uma que não o fazia. Nesse corredor havia barulho, pessoas riam e
brincavam pelo que ela pode perceber. Mas não havia qualquer som vindo daquela
porta. E não havia, novamente, uma escada para subir. Ela sabia que teria que
entrar naquele quarto, foi exatamente o que fez. Seu queixo caiu assim que
abriu a porta. Ali estava o deserto no qual havia chegado naquele mundo tão
estranho, a porta vista por fora era dourada. O deserto não estava mais vazio, havia
ali um camelo. Ele estava deitado sobre suas patas, a corcova parecia usada e
cansada e ele trazia uma expressão de desalento.
-Você
veio. – disse o camelo levantando um pouco o pescoço para ver Liza. Ela se
assustou com o fato de um camelo falar, mas pensou melhor e já havia visto um
lobo que voava e uma raposa de nove caudas.
-Você
estava me esperando? – perguntou ela desconfiada.
-Por
muito tempo, Liza.
-Por
quê?
-Porque
temos que conversar. Muitas pessoas subiram na minha corcova, o que você acha
disso?
Liza
pareceu confusa por ouvir uma pergunta daquelas vinda de um camelo.
-Por
que elas não subiriam se você as deixou?
-Justamente.
Eu gostaria de saber quais os motivos que me fizeram deixar. – o camelo
suspirou e encostou a cabeça em um monte de areia vermelha que estava ali
perto.
-Talvez
porque seja você...
-Sim.
Eu tenho que obedecer e aceitar. É assim que sou. Tenho que ser de alguma
servidão aos outros, ajudá-los com o que eu puder. Não posso ser de qualquer
outra forma, pois assim eu sou.
-Entendo...
Talvez você tivesse que mudar.
-Mudança?
Acho que não. – o Camelo olhou para o horizonte, de repente um portal apareceu
logo à frente. – Acho que tenho que ir por ali.
-Por
aquele portal? O que tem lá?
-Você
precisa ir para descobrir. Quer que eu a leve?
-Eu
posso ir andando, obrigado.
Os
dois seguiram lentamente, o Camelo com muita habilidade para andar nas dunas de
areia fofa e Liza tropeçando aqui e ali tentando se equilibrar. Os dois
passaram pelo portal, ainda estavam num deserto, mas as areias agora eram de
uma cor diferente, elas se misturavam entre um azul escuro e um branco que
quase cegava com a luz rosa que vinha do céu. O Camelo estremeceu ao lado de
Liza e se curvou. Liza não estava entendendo o motivo daquilo, até que debaixo
da areia branca, ela conseguiu ver dois brilhos muito verdes, parecendo
esmeraldas. Ela logo pensou no quadro que vira do dragão no topo da primeira
escadaria. Logo, com um enorme tremor e uma ventania o dragão se ergueu,
abrindo suas enormes asas. Ele era imponente, assustador, deveria ter cerca de
cinco metros de altura. Liza estremeceu por um instante, mas não se curvou.
-Por
que não te curvas menina? – perguntou o dragão, e sua voz fez tudo estremecer.
-Por
que eu deveria? – Liza parecia ter tirado coragem de algum lugar dentro de si
que não conhecia.
-Insolente!
Porque simplesmente deves! Sou o Rei!
Ela
se lembrou das palavras da raposa, talvez fosse ele aquele que governava o
castelo no céu, mas ela havia dito no plural.
-Ele
se aproxima. – disse o Camelo ainda curvado ao lado de Liza e tremendo todo.
-Quem
se aproxima? – perguntou Liza diretamente ao camelo, mas sem tirar os olhos do
dragão.
-O
Maldito! – bradou o enorme Rei.
Liza
esperou alguns instantes, pensou ouvir um barulho forte e assustador vindo da
direção oposta a do dragão. Ela se virou e avistou algo dourado que se
aproximava, ele vinha rápido e quanto mais se aproximava, mais a menina podia
distinguir a figura da besta que corria. Era um enorme leão, ele tinha a juba
em chamas e vinha com um olhar feroz, seus olhos pareciam dois cristais.
-Você
voltou! – disse o Rei balançando sua enorme cauda.
-Jamais
deixaria este lugar sem antes derrubar-te, Rei! – a voz do leão pareceu a Liza
a voz de um herói de filmes. – Menina Liza, obrigado por me trazer até aqui.
-Eu
te trouxe aqui? Como?
-Algumas
respostas são dadas pelo tempo. – disse ele gentilmente. O camelo ao lado de
Liza parecia mais relaxado, e impressionado ao mesmo tempo.
O dragão
e o leão se olharam, um ameaçava o outro. As areias de ambas as cores começaram
a se agitar, de repente, do lado de Liza apareceu a menina que encontrara
antes, ela segurava sua boneca.
-O
que você está fazendo aqui? É perigoso! – gritou Liza ao mesmo tempo que o leão
avançou sobre o Rei. Logo o lobo branco apareceu ao lado da menina e balançou a
cabeça afirmativamente para Liza. Ela entendeu que não havia perigo para eles.
Os dois lutavam incessantemente.
-Finalmente
vai acabar. – disse o camelo.
-E
vai começar de novo. – disse a menina.
Liza
não conseguia entender muito bem, quando olhou de volta para a luta, viu ao
fundo a raposa que vinha correndo com suas nove caudas e nove chamas, quando os
dois iriam dar o golpe final, a raposa pulou entre os dois. Uma enorme explosão
de luz aconteceu, Liza fechou os olhos e perdeu os sentidos.
Ela
estava no mesmo lugar quando acordou, o céu estava mais para o roxo do que para
o rosa, à sua frente havia uma porta que brilhava com todas as cores do
arco-íris, não havia parede que a segurasse, era uma porta alta e bonita. Liza
sabia que não poderia dar a volta, tinha que passar por ela. Foi o que fez. Ela
estava num quarto de bebê agora, havia um belíssimo berço no centro. Perto
dele, a raposa caída. Liza correu para ver como ela estava.
-Você
está bem? – perguntou Liza parecendo meio desesperada.
-Você
está bem? – perguntou a raposa de volta. Liza se surpreendeu.
-Sim...
– ela realmente estava bem.
-Que
bom. Liza, me coloque no berço, por favor.
Liza
pegou a raposa que agora estava muito menor do que na primeira vez que se viram
e a colocou com cuidado dentro do berço. Assim que a cabeça da raposa encostou
o travesseiro, as chamas azuis voltaram a envolvê-la, e em seu lugar apareceu
um bebê. Ele sorria e brincava. Liza não conseguia entender. Atrás dela, o lobo
branco apareceu ela olhou para ele e perguntou naturalmente:
-Está
na hora de eu voltar pra casa?
O
lobo balançou a cabeça afirmativamente e uma enorme luz o envolveu, quando
percebeu, Liza estava novamente em seu quarto com sua gatinha deitada na cama
com ela. Não, aquilo não havia sido um sonho.