domingo, 31 de maio de 2015

Até Aqui





“De tudo que está escrito, amo apenas aquilo que alguém escreve com o próprio sangue. Escreve com sangue e experimentarás que sangue é espírito”. (Nietzsche. Assim Falou Zaratustra, p.58).

Até aqui, os últimos seis meses foram de pura reflexão, um caminho pra encontrar a mim mesmo em meio tantos sentimentos confusos, pensamentos escondidos, coisas que eu não conseguia entender como haviam me afetado. Eu havia me perdido quase que completamente, me doado inteiramente aos outros, esquecido de doar-me a mim mesmo. De repente, me encontrei parado no frio e na chuva completamente nu. Já não podia mais esperar que viessem me resgatar, o resgate tinha de ser meu.

Debaixo, de um lugar escuro, o qual não desejo a absolutamente ninguém, comecei a subir,subir. No meio encontrava coisas antigas: pessoas, imagens, sons, cheiros, gostos, toques, sentimentos. Reconhecia-me em todos eles, me reencontrava em cada um deles. Perdia o fôlego por cada um deles. Tive que enfrentar demôniosque há muito deixara guardados no meu peito. Como se estivessem num baú enterrado numa praia deserta, eu jogara o mapa fora e só poderia reencontrá-los no momento certo, no momento em que eles precisassem ser reencontrados.

Aí está a grande tirada do passado, ele não existe mais, ao mesmo tempo em que é completamente presente em cada um de nós. Ele vive para sempre, fica escondido num bar esfumaçado com luzes vermelhas, tocando músicas antigas de alegria e de tristeza, num palco improvisado, artistas cantam e declamam textos antigos que você não quer mais ler. Interpretam cenas reais que transformaram sua vida completamente. Pessoas mudam nossas vidas, nossas escolhas mudam nossas próprias vidas e nada podemos fazer em relação a isso. Somos completamente impotentes diante da grandiosidade da história e de sua construção monumental e faraônica.

Sangue é espírito, como disse Nietzsche. É preciso dar o sangue em tudo aquilo que se faz, pois assim conheceremos quem realmente somos, aí entenderemos nossos próprios espíritos que ficam enclausurados por leis e construções sociais que parecem não nos deixar livres jamais. Somos vivência completa e absoluta de todas as coisas pelas quais passamos. O meu encontrar-me foi isso: Foi uma reflexão das coisas pelas quais passei e minhas escolhas diante desses fatos, escolhas todas que me levaram até o ponto em que não podia mais me aguentar sobre meus dois pés, tive que cair, levantar, reaprender o ato repetitivo e mecânico que é o andar. Caminho, caminho. Mas preciso saber qual meu destino, quais os motivos de estar caminhando em direção à algo que ainda não compreendo por completo. Encontrar o lugar para onde ir, se é que ele existe. O lugar existencial, o lugar político, o lugar em que se pode amar.

Há revoltas em mim que só eu posso compreender, ninguém mais conseguiria, sou julgado por muitas delas: chamado de extremista, de comunista (qual é ainda o grande tabu com essa palavra?), de inconsequente. Mas posso ser julgado por fazer tudo aquiloque quero fazer? Fazer todas as coisas que senti que deveria fazer? Onde eu poderia mudar? Talvez em outro mundo. Aliás, mudei sim. Não mudei pelos outros, mudei por mim. Por me manter, por não mais me machucar. Essas histórias de outra cidade são todas as histórias que fazem parte de um coração muito selvagem, muito impulsivo, muito leonino, muito sonhador. Esse coração que por vezes ainda sente medo, muito medo, chega perto de reabrir a porta daquele lugar escuro, mas que logo supera o medo, ou seja, tem coragem.

Não mais quero ser o que não sou, não mais quero esconder o que sou. Não mais quero que pensem que sou algo que não sou e que jamais serei e, acima de tudo, não mais admitirei que me digam o que posso ou não posso fazer, ou que digam que sou algo fora da natureza, fora do real. Sou real de mais, alguém que não é real, não sente tudo o que sinto, tudo o que me devora por dentro e por fora. Não se sente sufocado pelo sistema instituído, não se angustia pelos largados dasperiferias e das escolas públicas, não se doa de sangue ao que faz. Nada pode se reduzir ao que acham que sou. Sou isso. Sou todas essas histórias e também as são meus amigos, minha família, meus amores e desamores. Somos juntos uma cidade e a cidade, que machuca, que suprime, que massacra, deve ser vencida, deve haver resistência pois nós somos os que nela mandam, ela jamais poderia mandar em nós. Não falhemos com nossas cidades, não sejamos nossas cidades, sejamos tudo aquilo que as constroem.


Daqui por diante, o resgate continua, pois ele não tem um fim, mas o novo se inicia. O novo porque não há mais qualquer lugar habitável para mim naquele quarto escuro, o meu castelo nas nuvens já não está mais sob o domínio do dragão, mas ainda deve ser protegido constantemente, sem descanso, com os espelhos, espadas e escudos que disponho, são essas as minhas proteções. 

quinta-feira, 28 de maio de 2015

Friederich & Lou





Me cansei de todas as coisas que diziam sobre nós, me cansei de todas as coisas que inventaram sobre nós. Nunca fui herói, mas também jamais fui um vilão. Tentei ser apenas uma daquelas pessoas das quais a humanidade se lembra depois de muito tempo, não sei se fui bem sucedido. Mas, afinal, quem é bem sucedido nesse mundo? Penso nisso enquanto ando pela Rua da Consolação num fim de tarde frio de Outono com o céu alaranjado, à minha frente o esplendor intelectual da Biblioteca Mário de Andrade. Acendo um cigarro e fico ali, do outro lado da rua olhando para o prédio, pensando na infinidade de livros que descansam dentre suas paredes, corredores e prateleiras. Nunca achei o povo dessa cidade um público leitor, mas isso jamais me incomodou.

Parada num ponto de ônibus próximo ao local onde eu estava parado, uma mulher de mais ou menos vinte e quatro anos, cabelos louros e um corpo escultural, aquele tipo de pessoa que parece ter saído de um filme hollywoodiano. Eu a olho com segundas intenções, ela logo percebe e disfarça um sorriso de satisfação por estar sendo observada. Eu jogo o cigarro na calçada e piso nele, me aproximo dela e pergunto se ela tem cigarro. Ela ri diante da minha tentativa estúpida de puxar assunto e tira da bolsa um maço dos meus preferidos, acende com o cigarro já em minha boca mesmo contra o vento frio. Tem vinte e cinco anos (um a mais do que imaginei) e trabalha numa agência de câmbio ali perto. Mora na região da Aclimação e vem todos os dias ao centro para o trabalho. Pergunto-lhe se gosta de livros.

-Gosto. – ela responde com uma voz doce.
-Tem um título ou autor preferidos? – tive medo da resposta.
-Não sei... Talvez Machado de Assis. – me surpreendi, decidi que precisava parar de julgar as mulheres por sua aparência. Precisava me ver livre desse machismo o mais rápido possível, nunca consegui de forma completa.
-Dom Casmurro?
-Memórias Póstumas! – mais uma vez surpreso. Não seria ela uma fã de Capitu? – Meu ônibus está vindo, acho que te vejo aqui amanhã no mesmo horário? – Aquilo era um convite? Decidi que sim.
-Com certeza.

Não descobri seu nome aquele dia, não poderia deixar de perguntar na próxima tarde. Aliás, o sol já tinha sumido, decidi que era hora de voltar para casa e me render ao livro que estava lendo: Assim Falou Zaratustra.

Na tarde seguinte não perdi muito tempo olhando para a Biblioteca e apenas me aproximei dela que estava fumando, eu levava dois cafés com leite para viagem nas mãos, um pra mim e um pra ela. Acontece que ela não tomava café, pois deixava os dentes amarelados, lembro de ter me sentido muito incomodado com aquilo e fiquei completamente encanado que meus dentes estavam amarelados e esse havia sido o verdadeiro motivo de seu comentário.

-Não sei seu nome ainda. – disse eu com um sorriso fechado.
-E precisa?
-Você não quer dizer seu nome?
-Por que dizer os nossos nomes? Isso já é metade das nossas verdadeiras identidades.
-Então vamos inventar pseudônimos.
-Assim como Fernando Pessoa?
-Exatamente. O meu vai ser Friederich. – ela riu imediatamente imaginando a referência.
-Você não tem aquele bigode horrível!
-Mas sou tão bonito quanto ele! – eu respondi bem humorado achando graça em me chamar Friederich.
-Bem, então eu serei Lou. – dessa vez eu ri.
-A história dos dois não acabou muito bem...
-Isso não quer dizer nada. Meu ônibus, até amanhã?
-Até amanhã.
Lou, minha querida Lou. Foi esse o pensamento que me tomou assim que ela subiu naquele ônibus elétrico e mais uma vez o crepúsculo havia terminado. Deveria chamá-la para tomar alguma coisa amanhã, afinal era sexta-feira.
-O que você faz? – disse Lou entre um gole e outro de cerveja no Bar Brahma.
-Sou professor de Literatura! – eu disse um pouco mais alto do que gostaria.
-Ah! Agora suas referências fazem sentido, senhor Nietzsche! – eu ri mais alto do que normalmente, ela sorriu quase que de forma espontânea.
-Mas não sou um daqueles caras que respiram livros...
-Pois deveria! Os livros são muito mais interessantes que a vida real na maioria das vezes.
-Agora eu acho que tudo está muito mais interessante que um livro. – respondi arriscando todas as minhas chances. Lou olhou um instante para mim, percebi que seu rosto corou um pouco.
-Verdade, mas é um momento raro.
-Um brinde aos raros momentos! – disse eu levantando o copo, brindamos.
A levei para casa naquela noite e demos nosso primeiro beijo, a beijei no carro em frente ao pequeno prédio no qual ela vivia na Rua Topázio.
-Não mereço um nome? – perguntei eu.
-Pra quê um nome? – ela disse meio bêbada. – Acho que as coisas estão muito bem enquanto estamos sendo Lou e Friederich.
-De fato, mas...
-Boa noite, professor. – disse ela me dando um beijo na boca e saindo do carro. Eu sorri e dei um tapinha no volante antes de sair.

Durante todo aquele fim de semana não consegui me controlar em absolutamente nada, não terminava meu Zaratustra por nada, me sentia o próprio Zaratustra falando comigo mesmo e procurando a mim mesmo. Me sentia também o oposto do Zaratustra, me sentia o próprio Nietzsche angustiado por Lou. Não via a hora da segunda-feira chegar e eu ficava fumando um cigarro atrás do outro, minhas aulas pareciam não passar, estavam chatas para mim, imaginava para os pobres coitados obrigados a me ouvir falando sobre livros que não os interessava em absolutamente nada.

A segunda-feira ao entardecer finalmente chegou em frente à Mario de Andrade, ali nos cumprimentamos com um selinho e ela sorriu e disse:

-Luiza.
Eu sorri de volta e declarei:
-Fernando.


Isso aconteceu faz muito tempo, tempo de mais para que eu possa me lembrar de todos os detalhes, mas de algo me lembro com tanta vivacidade que meu coração chega a machucar: o amor que sentimos um pelo outro. Sentimos esse amor até o final, passamos para nossos filhos e hoje para nossos netos. Luiza, minha querida Lou, não está mais aqui, ela não faz mais parte desse mundo. Mas faz parte de todos os livros que tenho, de todas as batidas de meu coração e de cada suspiro que dou. Espero morrer como ela morreu, deitado, dormindo, tranquilamente. Espero que ela possa vir me buscar e que me leve para junto de si e que lá possamos ficar juntos para sempre, até que, mais uma vez, possamos voltar e como um eterno retorno, viver tudo de novo, como vivemos, todos os detalhes, cada instante. Eu espero.

domingo, 24 de maio de 2015

Campo Florido (Carta de Amor)



Há um campo florido a nossa frente, nele eu posso ver milhares de flores muito douradas, no céu noturno é possível ver pequenas estrelas que dançam sobre as flores, como se fossem fadas numa floresta encantada. Quando fechamos os olhos, podemos escutar o riacho que passa calmamente por ali, os pássaros cantam e todos esses sons unidos parecem formar uma maravilhosa balada de amor, um piano, um violino. A voz vem de dentro do coração, ela não poderia sair de nenhum outro lugar. Ali, nós podemos pensar em todas as coisas pelas quais já passamos, juntos ou não. Lembrar do dia que nos conhecemos, do nosso primeiro beijo, da primeira vez que fizemos amor. Tudo isso é tão importante, mas eu me lembro mais da nossa primeira risada juntos. Aquela que me tirou o fôlego, me deu dor de barriga de tanto rir. Naquele momento eu tive certeza que nós éramos feitos um pro outro, que nada no mundo poderia nos separar. Eu achei.

Nesse enorme campo florido há frutas que nascem das árvores, com os mais doces sabores. Sabores que não se experimentam todos os dias. Aqueles que encontraram esse campo, eu acredito, são as pessoas mais felizes que já passaram por esse mundo. São tão poucos, esse campo que é habitado por tão raras pessoas. Pessoas que têm estrelas no lugar de seus corações. Um brilho que os envolve, uma chama no olho que não deixa qualquer dúvida. A nossa chama, ela não pode deixar dúvidas aos que veem. Eles sabem.

Quando a noite vem chegando e a tarde vai sumindo, o céu fica colorido, azul, vermelho, verde, amarelo, dourado... E seus olhos cintilam de um verde que parece estar pegando fogo. Eu jamais me arrependerei de ter dito o que disse, de ter feito o que fiz, pois tudo valeu a pena. Aprendi que muito de alguma coisa é ruim, mas que muito de nada é tão ruim quanto. Você me ensinou milhares de coisas enquanto caminhávamos nesse campo florido... E eu te amo. Eu te amo com todas as forças que posso ter, com todas as forças que encontrarei dentro de mim algum dia. Eu te amo de uma forma que não se imagina. O caos dentro de nós foi preciso para que pudéssemos nos transformar nessas estrelas dançantes que hoje somos.

Você brilha no céu, brilha como nenhuma outra estrela jamais brilhou. E esse campo dourado parece tão solitário. Mas não está e as estrelas continuam dançando por nós, todas as danças e todas as músicas que nós não vamos mais ouvir juntos, e agora, mais do que nunca, o silêncio faz-se música.



quinta-feira, 21 de maio de 2015

Ilusões


Aos que ainda acreditam em ilusões.

A chuva caía mais ou menos forte, o trânsito estava completamente parado. Juliana resolveu descer do táxi e continuar andando até sua casa, mesmo debaixo de tamanha chuva.

-Não sei como o senhor tem paciência de trabalhar nesse trânsito. Tome, aqui está o que lhe devo. Vou andando mesmo com a chuva pois me falta essa paciência. Muito obrigada. - Ela pagou ao taxista o que devia, tomou fôlego e desceu do velho gol branco. Dizia aquilo, mas na verdade não era verdade, estava descendo porque a conta seria exorbitante se continuasse parada naquele trânsito, mas para seu ego era melhor que pensasse que não tinha mesmo paciência. Ela usava um sobretudo preto, o cabelo preso no alto, lembrava Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo. Abriu uma pequena sombrinha preta que combinava e saiu andando. A cada passo que dava sentia como se fosse uma braçada no Atlântico.

Quando Juliana se aproximava do pequeno prédio de três andares no qual vivia, tentava tirar as chaves de dentro da pequena bolsa de mão que carregava, o chaveiro se foi ao chão. Ela resmungou e abaixou para pegar tropeçando nos próprios pés, quando pensou que a queda era iminente e que sua roupa seria arruinada, mãos de anjo a seguraram e a colocaram de novo em pé. Ela olhou e avistou à sua frente um homem belíssimo, cabelos louros milimetricamente penteados para o lado, os olhos azuis como o céu e um sorriso que mataria qualquer mulher.

-Obrigada, querido. – disse ela sorrindo debaixo da chuva.
-Acho que a senhorita perdeu sua chave também. – disse ele com uma voz grossa e profunda entregando o pequeno chaveiro de Torre Eiffel de volta à sua dona.
-Muito obrigada de novo, querido. E qual seria o seu nome?
-Paulo, e a senhorita?
-Juliana. – riu ela sem conseguir desviar o olhar dos olhos do rapaz.
-Não acha que deveríamos sair da chuva? – disse ele como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo. Juliana riu e concordou com a cabeça correndo até a entrada do prédio e abrindo a porta colocando uma certa força.
-O senhor vai entrar?
-Creio que sim, acho que sou seu novo vizinho.
Juliana sorriu satisfeita como se estivesse esperando ouvir aquilo.
-É o novo morador do apartamento quatro, querido?
-Exatamente.
-Moro no apartamento seis, é o último. Se quiser passar lá mais tarde para um café, ou um drinque. Ficaria feliz em agradecê-lo por ter evitado minha queda. – os dois subiam as escadas enquanto conversavam.
-Será um prazer, senhorita Juliana.
-Te espero às sete?
-Combinado.

Às sete como prometido, Juliana ouviu alguém batendo na porta. Ela se apressou a atender, Paulo estava ali parado, com um terno impecável, os cabelos penteados para o lado segurando uma garrafa de vinho.

-Entre querido. – convidou Juliana dando espaço.
-Você é muito mais bonita quando não está molhada. – ele riu.
-Posso dizer o mesmo. – Juliana estendeu uma taça e colocou um pouco de vinho nela, mais ou menos até a metade, os dois brindaram sem dizer absolutamente nada e tomaram um gole. Os olhos azuis de Paulo a olhavam como os de um caçador que mira sua caça e teme perdê-la. E de fato, era mais ou menos assim que Paulo se sentia: com medo de perdê-la. Não conseguia se lembrar de ter visto em toda a sua vida uma beleza tão única quanto a dela, parecia que diante das luzes dos abajures espalhados pelo apartamento perfeitamente arrumado e decorado, a pele de Juliana brilhava. Tinha um brilho diferente e único.

Juliana sentia como se o mundo tivesse sido preto e branco até então. Mas ela não podia demonstrar, manteve sua pose, manteve-se no salto alto, no salto agulha até não poder mais. Os dois conversaram sobre diversas coisas naquela noite, sobre as mais variadas, desde as mais bobas até as mais sérias. Juliana descobriu que Paulo queria ser um escritor de romances policiais, mas que nunca conseguira terminar um livro. Paulo descobriu que Juliana era decoradora de apartamentos de alto padrão em São Paulo e que havia namorado o mesmo rapaz por cerca de cinco anos, ele a abandonou pois se apaixonou pelo melhor amigo. Desde então, isso já fazia dois anos, ela esteve solteira. Juliana descobriu que Paulo nunca teve uma namorada séria, mas que teve vários casos com mulheres mais velhas e que elas o pagavam para que fizesse companhia. Ele dizia que precisava de um sustento enquanto escrevia e que esse era o que menos lhe sugava, apesar do ensino superior em literatura, ele não cogitava dar aulas, gostava mesmo de escrever e queria ganhar a vida fazendo aquilo.

Um relógio cuco na parede bateu três horas da manhã, Paulo decidiu que era hora de retornar ao seu apartamento. Ele nunca ficaria até o sol raiar, sempre iria embora. Pensava que talvez aquilo fosse uma espécie de padrão que não conseguia quebrar por algum motivo, talvez um trauma da infância. Sabia que isso deixaria Juliana sempre chateada, sempre faria com que ela se sentisse rejeitada de alguma maneira. Mas que ela não desistiria, ela não desistia daquilo que realmente queria.

Eles estavam se vendo por quase dois meses, e Juliana decidiu dizer que gostava dele e que tinha medo por isso. Paulo, como sempre, cortou e encerrou todas as possibilidades ali. Não continuariam, seriam amigos. Nada mudaria na vida dos dois, tudo permaneceria. Paulo pensava nisso: na permanência, Juliana preferia sempre a mudança. Ele sumiu, ela deixou. Talvez os relacionamentos se resumam a isso: ilusões que vem, nos tomam por completo e, em algum momento, uma das partes se sente ameaçada e foge, e aí a ilusão acaba e a realidade solitária e preto e branco retorna e fica nos rondando até o momento da próxima ilusão.


quarta-feira, 13 de maio de 2015

Coração (Heróis II)

Aos que procuram.

Só se conseguia ouvir as respirações profundas, os gemidos, quase não se via nada no quarto escuto. Ali apenas uma fraca luz vinda de fora, aquela noite não tinha lua. Um deles parou ofegante, sorriu por um instante e voltou a beijá-lo.

Eles haviam se encontrado um ano antes numa lanchonete à beira da estrada, haviam tido uma das melhores conversas de suas vidas. Aquilo havia mudado completamente o curso da história. Guilherme mudara o curso de sua viagem, a Bahia teria que ficar para outra hora. Enquanto ele dirigia sua velha caminhonete, pensava no que estava perdendo, aquela ligação ele nunca mais encontraria. Lucas tentou tirar sua mente daquele encontro e voltou para São Paulo, durante um ano inteiro ele se tratou, tratou de sua ansiedade, lutou contra a depressão que batia sempre em sua porta. Guilherme o procurou. Por um ano ele tentou encontrá-lo. Fosse nas redes sociais, fosse nas ruas amontoadas de gente.

Uma noite, desanimado e desencantado, com a certeza de que nunca mais veria Lucas, se enfiou em um boteco qualquer na Augusta. Sentou-se no balcão e pediu uma cerveja, ficou ali observando o movimento, a cabeça longe, muito longe. Parecia que ele não estava mais ali, Salvador voltou à sua mente. Talvez fosse o momento de retomar a ideia, voltar ao desapego, sair daquela cidade outra vez. Fugir de tudo, nada mais o prendia ali. De repente, o tempo parou. Sorrindo de uma forma encantadora, Lucas passou pela calçada apinhada de gente que bebia, ria e conversava. O coração de Guilherme acelerou, ele saiu correndo sem pagar a cerveja. Ficou dois segundos parado procurando, viu que ele estava atravessando a rua, se meteu entre os carros que buzinaram para ele. Lucas e os amigos viraram para ver o que estava acontecendo na rua. Lucas podia jurar que seu coração parou de bater por alguns segundos, ele ficou branco e começou a suar imediatamente apesar do vento frio, Guilherme parou na sua frente. Os dois sorriram.

-Salvador mudou de lugar? – perguntou Lucas sorrindo.

-Não, Salvador continua lá. Eu que nunca cheguei. – disse Guilherme meio sem graça reparando que os amigos de Lucas olhavam para aquilo sem entender nada.

-Por quê?

-Lembra que eu disse que estava deixando São Paulo porque...

-Nada mais te prendia aqui. Sim.

-Pois é, achei alguma coisa que me prendeu de novo.

Lucas ficou vermelho, sabia que não era por causa do vento frio. Ele abaixou a cabeça e mordeu o lábio inferior.

-Lucas, você não vai apresentar o moço? – perguntou um rapaz com a voz anasalada e o cabelo pintado de branco.

-Esse é o Guilherme... A gente se conheceu faz um tempo. Por aí. Guilherme, esses são meus amigos...

-Quer tomar uma cerveja? – ele interrompeu correndo o risco de ser um pouco grosseiro – Na verdade, acho que não paguei a que eu estava tomando ali.

-É que eu estou com eles... Nós íamos dançar e... – ele pensou melhor – Tudo bem. Gente, eu ligo pra vocês mais tarde, ok?

Os três rapazes que estavam com ele pareceram ficar meio aborrecidos mas concordaram sem dizer mais nada. Lucas e Guilherme voltaram ao bar onde a cerveja não tinha sido paga e continuava no balcão vazio, aparentemente ninguém percebera.

-O que houve? – perguntou Lucas parecendo genuinamente curioso.

-Já te disse, achei alguma coisa que me prendesse aqui.

-O que?

-Uma pessoa.

-Arrumou uma namorada? – perguntou Lucas com seu coração batendo forte como um tambor no peito, ficou com medo que Guilherme pudesse ouvir.

-Acho que não... – Guilherme desviou o olhar.

-Qual seu livro preferido agora? – perguntou Lucas sorrindo.

-Continua sendo On The Road e o seu?

-Acho que A Mulher Desiludida.

-Simone de Beauvoir? – aquele sorriso que há um ano Guilherme não tirava do rosto reapareceu.

-Isso mesmo. Já leu?

-Li sim... Achei angustiante no mínimo.

-O existencialismo é angústia pura, né?

O garçom colocou mais uma cerveja ali e um copo na frente de Lucas que pegou e se serviu.

-Como anda sua ansiedade? – perguntou Guilherme.

-Bem, eu to bem melhor. Bem melhor mesmo! Nem parece que continuo vivendo aqui. – Lucas riu tomando um gole de cerveja.

-Que ótimo! Fico feliz em saber.

-Coincidência a gente se encontrar, né?

-Você acredita em coincidências?

-Às vezes... A vida é meio contingente, não acha?

-Pra algumas coisas. Acho que pra outras é mais uma questão de... Destino? – Guilherme pareceu meio inseguro daquela palavra.

-Destino? Forte... Não sei. Talvez. Mas em que tipo de situação?

-Amor.

Lucas ficou vermelho e dessa vez não tinha a desculpa do vento já que estavam em um ambiente interno.

-Desculpa... – Guilherme ficou automaticamente sem graça.

-Não! Tudo bem... Tá tudo bem. Eu... Eu só fiquei surpreso. Não achei que você se sentisse assim.

-Eu percebi no momento que comecei a dirigir, me arrependi de não ter pego seu telefone, e-mail, nome completo. Qualquer coisa. Achei que nunca mais fosse te encontrar... Fiquei o ano inteiro te procurando.

-Sério? – Lucas pareceu surpreso.

-Sério... Louco, né?

-Um pouco... Mas nem tanto.

Guilherme suspirou um instante. E tomou coragem:

-Quer ir pro meu apartamento? É aqui perto... É bem pequeno e simples, mas...

-Quero. Vamos.


Os dois caminharam até o pequeno apartamento na Bela Vista, subiram juntos e como se aquilo estivesse guardado por todo aquele ano, se beijaram. Os dois começaram a tirar as roupas e caíram juntos na cama. Não sentiam mais frio. Só se conseguia ouvir as respirações profundas, os gemidos, quase não se via nada no quarto escuto. Ali apenas uma fraca luz vinda de fora, aquela noite não tinha lua. Um deles parou ofegante, sorriu por um instante e voltou a beijá-lo. O prazer foi quase que incomensurável, Lucas pensou que aquilo era o que chamavam de fazer amor, ele nunca o tinha feito. Guilherme pensou a mesma coisa. É raro. Quando dois universos tão distantes e tão próximos ao mesmo tempo acabam se cruzando e se unem, tornam-se um só. Como se fosse algo completamente natural. Ambos os corações martelavam como tambores indígenas que indicavam uma guerra se aproximando. Não existia mundo fora daquele quarto, fora daquela cama. Tudo se resumia às duas peles e aos pelos que se embaraçavam, a saliva que era trocada, ao suor que se misturava. Um ano buscando o outro, um ano reencontrando a si mesmo, aparentemente nem tudo é contingente. Às vezes, em alguns assuntos, a vida acaba sendo diferente. Tudo no mundo tem seu próprio tempo.

domingo, 10 de maio de 2015

Uma Bela Mente


Para a mais bela de todas as mentes que já pude conhecer, estarei sempre junto.

Pérola estava se sentindo mais cansada do que nunca, muito mais cansada do que se lembrava já ter estado nos seus vinte e oito anos. Ela se jogou em sua cama, o gato pulou em sua barriga quase que imediatamente. Ela se sacudiu para que ele saísse. Ele não se moveu.

-Sai Rajá! – disse ela o tirando com a mão. O gato resmungou mas aceitou e deitou ao seu lado. Ela ficou ali pensando por alguns instantes antes que o celular vibrasse. Provavelmente alguém querendo alguma coisa, alguém querendo encontrá-la, alguém querendo marcar um show. A decisão tomada foi não olhar nada naquele momento. Pérola precisava dormir mais do que nunca.

Ela fechou seus olhos, conseguia ouvir algum ruído vindo ao longe da rua, logo ela pegou no sono. De repente havia uma pequena menina numa sala com piso de madeira, do lado esquerdo o que parecia ser uma porta de entrada, ao lado direito uma escada. A menina subiu e se viu num quarto, uma cama, uma estante com livros e mangás, uma escrivaninha, canetas, lapiseiras, papéis, muitos desenhos espalhados pelo quarto. O gato Rajá – não aquele que ela tinha agora, um antigo – estava confortavelmente deitado sobre um dos desenhos. A menina se aproximou e abraçou o gato da forma mais forte que pôde. Tudo parecia tão distante. O desenho em questão, ela não se lembrava mais.

-Pérola, desce aqui logo! O Jantar está pronto! – ela ouviu aquela voz que há muito não ouvia mais, sua mãe. Ela sentiu o corpo estremecer.

Agora ela não era mais a menininha segurando o gato, ela era uma moça de uns dezessete anos. Estava sentada na escrivaninha e desenhava, pretendia ficar ali a noite inteira até que sua mão não conseguisse mais erguer o lápis. Ela tinha que esquecer, tinha que esquecer aquele homem horrível que a perseguia, tinha que esquecer sua mãe xingando-a de tudo o que podia, culpando-a por tudo de horrível que aconteceu a ela. Junto com o desenho as lágrimas rolavam. Eram lágrimas de raiva, de um desespero que aparentemente ninguém mais conseguiria entender. Mas ela entendia, entendia que tudo aquilo não tinha o menor sentido.

Um piscar de olhos e ela estava num palco sorrindo, véus faziam danças por todos os lados, os homens na plateia iam a loucura, algumas mulheres também. Sua mãe estava lá, olhando e sorrindo. Talvez fosse exatamente o que ela sempre quis, nunca conseguira. Sua filha conquistou. De repente, Pérola estava pegando suas coisas, saindo de casa. O inferno chegava ao fim, ela não teria mais que se preocupar com nada daquilo. Havia mais alguém que se importava comigo, havia outras pessoas no mundo e, mais, havia um mundo para o qual aquela Pérola poderia brilhar mais do que qualquer outra, fosse dançando, desenhando. Fosse fazendo aquilo que sua linda mente quisesse fazer, as amarras estavam soltas, finalmente. Aquilo tudo, todo o inferno terminara. Não importava mais o que viesse em seguida, não seria pior, porque o pior já tinha passado.


Pérola acordou com um sorriso no rosto, o gato Rajá de volta em sua barriga e o sol entrando pela cortina do quarto. Ela esfregou os olhos e percebeu que tinha dormido a noite inteira com a roupa do corpo. Não conseguia se lembrar muito bem do sonho que tivera, mas sabia que ele tinha terminado bem, muito melhor do que se podia imaginar. Ela sorriu mais pelas possibilidades que ainda haviam em sua direção.

sexta-feira, 8 de maio de 2015

Castelo no Céu



Para a Lígia que me pediu uma história fantástica e para o Breno que me fez perceber que eu tenho que fazer as duas vozes na minha cabeça conversarem.

O céu estava rosa. Liza não sabia o que aquilo significava ou onde ela estava, as nuvens eram de um azul muito claro, e elas se misturavam numa figura que parecia um grande castelo no céu. A última coisa que se lembrava era de estar em seu quarto com sua pequena gatinha e de repente uma luz muito forte entrar por sua janela e chamas azuis a envolverem. Ela perdeu a consciência e acordou naquele lugar estranho. Ela estava deitada num enorme deserto, nada havia ali além do céu e das nuvens que se pareciam com um castelo enorme.

Liza se levantou e percebeu que sua calça jeans estava rasgada no joelho, seus tênis All Star haviam desaparecido e ela estava descalça, sua camiseta não estava mais preta, mas roxa. Não tinha muita escolha senão andar, ela tinha certa dificuldade para andar encima da fofa areia que só agora, ela percebia, tinha uma tonalidade mais vermelha do que o normal. De repente algo chamou sua atenção. Havia a sua frente um grande lobo branco com os olhos azuis, muito penetrantes. Ela se perguntou como era possível um lobo em um deserto. Chegou a conclusão que aquilo não fazia o menor sentido, mas o lobo estava ali parado olhando para ela da forma mais penetrante possível. Ela se aproximou. O lobo fez uma mesura, ele era enorme. Ela entendeu logo e montou nas costas do animal. Ele começou a correr e de repente estava alçando voo, Liza podia sentir o vento balançando seus cabelos negros e tinha que fechar um pouco seus olhos puxados, o lobo voava em direção ao castelo.

De fato, ali havia um imenso castelo prateado. Ele estava escondido nas nuvens, como se elas fossem um enorme escudo, o lobo pousou num enorme jardim que ficava fora do castelo. Liza desceu e quando percebeu o grande animal branco já havia sumido. Ela começou a reparar nas plantas do jardim, elas eram todas fluorescentes, havia flores verdes, azuis, vermelhas, roxas, amarelas, rosas. Uma enorme fonte com água dourada ficava no centro, logo atrás um enorme portão de prata que devia levar para dentro do castelo.

Tomada por uma certa ansiedade ela atravessou o portão, o corredor de entrada do castelo era tomado por uma centena de quadros, havia não só pessoas, mas animais pintados neles e todos pareciam vivos, no topo, logo acima uma enorme escadaria no final do corredor, havia o quadro de um enorme dragão dourado com olhos verdes. Seus olhos pareciam esmeraldas colocadas ali propositalmente para assustar os curiosos como Liza. Ela se sentia hipnotizada por aquele animal mítico. Sentiu um calafrio na espinha e desejou estar em seu quarto com sua gatinha uma vez mais. Mas não podia parar agora, por isso começou a subir as escadas, logo ao final do primeiro lance viu uma raposa. Mas não uma raposa comum, seu pelo brilhava como a luz da lua, e ela possuía nove caudas, em cada uma dessas caudas havia uma chama azul que parecia dançar. Ela percebeu que se parecia  com a mesma chama azul que aparecera em seu quarto.

-Foi você quem me trouxe aqui? – perguntou Liza um pouco amedrontada.

-Sim. – a raposa respondeu sem mexer a mandíbula, parecia que a voz estava ecoando dentro da cabeça de Liza e ela era poderosa, assustadora, mas ao mesmo tempo tranquilizadora.

-Por quê? – Liza se aproximava aos poucos da belíssima raposa.

-Há perguntas que não podem ser respondidas, Liza. São fatos que devemos simplesmente aceitar, nesse ou no outro mundo. Não importa. Apenas aceite.

-Mas... Eu não entendo.

-Talvez morra sem poder entender. Você tem uma missão.

-Missão? Aqui? Onde é aqui?

-Você faz perguntas de mais.

Liza se sentiu irritada com aquela colocação da raposa, e ela deve ter percebido isso pois logo voltou a falar.

-Apenas deixe que a história te dê as respostas que procura menina. As respostas podem mudar. O futuro não é algo definido.

-Eu tenho que continuar a subir então.

-Assim é. Posso lhe responder onde você está.

-Onde?

-Esse é o Castelo no Céu, aqui não há súditos, há realeza e um rei. Não há quem se governe, mas há os que governam.

Dito isso, as chamas dançantes espalhadas pelas nove caudas da raposa se mexeram rapidamente envolvendo-a e a circularam fazendo-a desaparecer. Liza respirou fundo e continuou subindo, a escada tornava-se circular de repente. No próximo andar havia um corredor com muitas portas, a maioria delas estavam abertas, mas havia uma no meio que parecia desgastada e antiga, estava fechada. Liza se aproximou e colocou o ouvido nela. Ouviu um choro. Olhou para os lados e agora só havia o corredor e nada mais, a escada havia sumido e agora ela encontrava-se num corredor mais ou menos iluminado, as portas abertas haviam desaparecido e só restava aquele caminho. Tremendo um pouco e suando ela girou a maçaneta e sem muitos problemas a porta se abriu completamente.

O quarto era mal iluminado, embora houvesse uma janela que dava para o jardim no qual ela aterrissara com o lobo, uma cama de metal branca, uma escrivaninha e alguns brinquedos jogados pelo chão. Ela pensou ter reconhecido uma de suas bonecas preferidas quando era criança, foi só depois disso que se deu conta que ali havia uma criança em posição fetal, sentada entre a cama e a escrivaninha, a criança chorava.

-Oi... Você está bem? – perguntou Liza se aproximando da criança, percebendo que era uma menina.

-Eles estão brigando de novo... Por que eles não param de brigar? – disse a criança entre soluços. Liza parou por um instante, mas não ouvia ninguém brigando.

-Não tem ninguém brigando. Você deve estar imaginando coisas, esqueça isso. Onde estão as outras pessoas desse castelo?

-Eles estão brigando de novo... Por que eles não param de brigar?

A menina não se movia, ela repetiu a mesma pergunta, na mesma tonalidade e entre os mesmos soluços de antes. Liza sentiu um frio de repente e ficou inexplicavelmente nervosa.

-Não tem ninguém brigando, menina! E se eles estiverem brigando, o problema é deles não seu! Você não tem culpa nenhuma disso! Você não pediu pra nascer! Levanta daí e vai brincar!

A menina a olhou com as lágrimas nos olhos e disse:

-Eu acho melhor eles não ficarem mais perto um do outro.

Aquilo atingiu Liza de uma forma quase que completa, sentiu um balde de água fria caindo sobre ela.

-Talvez... Talvez seja melhor. Talvez seja melhor pra você. Menina...

Ela olhou de volta para Liza relaxando um pouco.

-Não deixe que eles definam sua vida.

A menina sorriu e se levantou e foi brincar com a boneca jogada no chão, Liza olhou por alguns instantes e se sentiu um pouco menos pesada do que estava, aliás, ela só havia percebido que pesava naquele instante. Ela saiu do quarto, as outras portas não estavam mais ali, mas havia uma nova escadaria no final do corredor, esta era feita de pedra. Ela tomou fôlego e voltou a subir.

O próximo andar era um corredor mais largo, as portas todas brilhavam, mas havia mais uma que não o fazia. Nesse corredor havia barulho, pessoas riam e brincavam pelo que ela pode perceber. Mas não havia qualquer som vindo daquela porta. E não havia, novamente, uma escada para subir. Ela sabia que teria que entrar naquele quarto, foi exatamente o que fez. Seu queixo caiu assim que abriu a porta. Ali estava o deserto no qual havia chegado naquele mundo tão estranho, a porta vista por fora era dourada. O deserto não estava mais vazio, havia ali um camelo. Ele estava deitado sobre suas patas, a corcova parecia usada e cansada e ele trazia uma expressão de desalento.

-Você veio. – disse o camelo levantando um pouco o pescoço para ver Liza. Ela se assustou com o fato de um camelo falar, mas pensou melhor e já havia visto um lobo que voava e uma raposa de nove caudas.

-Você estava me esperando? – perguntou ela desconfiada.

-Por muito tempo, Liza.

-Por quê?

-Porque temos que conversar. Muitas pessoas subiram na minha corcova, o que você acha disso?

Liza pareceu confusa por ouvir uma pergunta daquelas vinda de um camelo.

-Por que elas não subiriam se você as deixou?

-Justamente. Eu gostaria de saber quais os motivos que me fizeram deixar. – o camelo suspirou e encostou a cabeça em um monte de areia vermelha que estava ali perto.

-Talvez porque seja você...

-Sim. Eu tenho que obedecer e aceitar. É assim que sou. Tenho que ser de alguma servidão aos outros, ajudá-los com o que eu puder. Não posso ser de qualquer outra forma, pois assim eu sou.

-Entendo... Talvez você tivesse que mudar.

-Mudança? Acho que não. – o Camelo olhou para o horizonte, de repente um portal apareceu logo à frente. – Acho que tenho que ir por ali.

-Por aquele portal? O que tem lá?

-Você precisa ir para descobrir. Quer que eu a leve?

-Eu posso ir andando, obrigado.

Os dois seguiram lentamente, o Camelo com muita habilidade para andar nas dunas de areia fofa e Liza tropeçando aqui e ali tentando se equilibrar. Os dois passaram pelo portal, ainda estavam num deserto, mas as areias agora eram de uma cor diferente, elas se misturavam entre um azul escuro e um branco que quase cegava com a luz rosa que vinha do céu. O Camelo estremeceu ao lado de Liza e se curvou. Liza não estava entendendo o motivo daquilo, até que debaixo da areia branca, ela conseguiu ver dois brilhos muito verdes, parecendo esmeraldas. Ela logo pensou no quadro que vira do dragão no topo da primeira escadaria. Logo, com um enorme tremor e uma ventania o dragão se ergueu, abrindo suas enormes asas. Ele era imponente, assustador, deveria ter cerca de cinco metros de altura. Liza estremeceu por um instante, mas não se curvou.

-Por que não te curvas menina? – perguntou o dragão, e sua voz fez tudo estremecer.

-Por que eu deveria? – Liza parecia ter tirado coragem de algum lugar dentro de si que não conhecia.

-Insolente! Porque simplesmente deves! Sou o Rei!

Ela se lembrou das palavras da raposa, talvez fosse ele aquele que governava o castelo no céu, mas ela havia dito no plural.

-Ele se aproxima. – disse o Camelo ainda curvado ao lado de Liza e tremendo todo.

-Quem se aproxima? – perguntou Liza diretamente ao camelo, mas sem tirar os olhos do dragão.

-O Maldito! – bradou o enorme Rei.

Liza esperou alguns instantes, pensou ouvir um barulho forte e assustador vindo da direção oposta a do dragão. Ela se virou e avistou algo dourado que se aproximava, ele vinha rápido e quanto mais se aproximava, mais a menina podia distinguir a figura da besta que corria. Era um enorme leão, ele tinha a juba em chamas e vinha com um olhar feroz, seus olhos pareciam dois cristais.

-Você voltou! – disse o Rei balançando sua enorme cauda.

-Jamais deixaria este lugar sem antes derrubar-te, Rei! – a voz do leão pareceu a Liza a voz de um herói de filmes. – Menina Liza, obrigado por me trazer até aqui.

-Eu te trouxe aqui? Como?

-Algumas respostas são dadas pelo tempo. – disse ele gentilmente. O camelo ao lado de Liza parecia mais relaxado, e impressionado ao mesmo tempo.

O dragão e o leão se olharam, um ameaçava o outro. As areias de ambas as cores começaram a se agitar, de repente, do lado de Liza apareceu a menina que encontrara antes, ela segurava sua boneca.

-O que você está fazendo aqui? É perigoso! – gritou Liza ao mesmo tempo que o leão avançou sobre o Rei. Logo o lobo branco apareceu ao lado da menina e balançou a cabeça afirmativamente para Liza. Ela entendeu que não havia perigo para eles. Os dois lutavam incessantemente.

-Finalmente vai acabar. – disse o camelo.

-E vai começar de novo. – disse a menina.

Liza não conseguia entender muito bem, quando olhou de volta para a luta, viu ao fundo a raposa que vinha correndo com suas nove caudas e nove chamas, quando os dois iriam dar o golpe final, a raposa pulou entre os dois. Uma enorme explosão de luz aconteceu, Liza fechou os olhos e perdeu os sentidos.

Ela estava no mesmo lugar quando acordou, o céu estava mais para o roxo do que para o rosa, à sua frente havia uma porta que brilhava com todas as cores do arco-íris, não havia parede que a segurasse, era uma porta alta e bonita. Liza sabia que não poderia dar a volta, tinha que passar por ela. Foi o que fez. Ela estava num quarto de bebê agora, havia um belíssimo berço no centro. Perto dele, a raposa caída. Liza correu para ver como ela estava.

-Você está bem? – perguntou Liza parecendo meio desesperada.

-Você está bem? – perguntou a raposa de volta. Liza se surpreendeu.

-Sim... – ela realmente estava bem.

-Que bom. Liza, me coloque no berço, por favor.

Liza pegou a raposa que agora estava muito menor do que na primeira vez que se viram e a colocou com cuidado dentro do berço. Assim que a cabeça da raposa encostou o travesseiro, as chamas azuis voltaram a envolvê-la, e em seu lugar apareceu um bebê. Ele sorria e brincava. Liza não conseguia entender. Atrás dela, o lobo branco apareceu ela olhou para ele e perguntou naturalmente:

-Está na hora de eu voltar pra casa?

O lobo balançou a cabeça afirmativamente e uma enorme luz o envolveu, quando percebeu, Liza estava novamente em seu quarto com sua gatinha deitada na cama com ela. Não, aquilo não havia sido um sonho.