segunda-feira, 2 de março de 2015

Lembranças de um Avô numa noite de Insônia

Ao vovô que já se foi há quatorze anos.

Lembro-me de vovô como um senhor de média estatura, cabelos brancos, grandes óculos quadrados e uma personalidade muito forte. Pelo que contam minha mãe e minhas tias, ele sempre foi daqueles pais rígidos. Gostava que tudo estivesse na mais perfeita ordem, o que quer dizer que gostava de tudo do jeito dele. A essa altura do campeonato eu vou me aproximando dos vinte e quatro, minha irmã dos trinta e um e, infelizmente, não somos mais crianças. Vovô morreu em 2001, vítima de um infarto fulminante. Fez tudo o que tinha que fazer naquela manhã de domingo (talvez seja por isso que eu odeie tanto os domingos), brincou com minha prima e quando foi para a sala bisbilhotar o que se passava na Televisão, sentou-se no braço da poltrona e logo caiu morto no chão. Puf. Tudo termina assim, num tombo, num coração que para, num fôlego que não se toma mais, num olho que não se abre. Acaba, vovô acabou assim, como todo mundo.

Passei uma boa parte dos anos seguintes sem conseguir dormir em seu quarto, mas conseguia no lugar em que morreu, por mais macabro que isso possa parecer. Cidades do interior sempre são assustadoras e macabras, ainda mais suas superstições que misturam um quê de misticismo com seu cristianismo latente, seja ele católico ou protestante. Mas, sempre tentei me lembrar de vovô pelo melhor. Lembro vivamente de uma vez que eu e minha prima estávamos brincando em frente à casa sozinhos, quando um senhor de carroça chegou e começou a conversar conosco. Ele nos perguntou se gostaríamos de tirar uma foto em cima da carroça, foi naquele momento que vovô chegou espantando o homem. Não sei, mas o que me passou pela cabeça imediatamente foi que ele queria nos raptar ou coisa do tipo. Hoje me pergunto se ele não era um pedófilo, ou simplesmente um velho muito solitário. Seja lá o que for, acredito que meu avô tenha salvado minha vida naquele dia.

Não consigo me lembrar de muitos carinhos, talvez porque eu fosse menino, então na cabeça dele minha criação deveria ser mais dura que a de minha irmã e minhas primas. Eu e meu primo, os únicos dois meninos da geração até então acabamos “pagando o pato”.

O dia da morte foi meio complicado, estava no clube com minha mãe e minha irmã, na época não tínhamos celular, e minha tia ligou no clube e anunciaram minha mãe nos auto-falantes. Lembro que quando ela nos disse o que aconteceu, minha primeira reação foi gargalhar. Não sei por que até hoje, mas ri de uma forma meio patética. Depois, fizemos a viagem para Promissão que me pareceu mais curta até hoje. Fui o único neto de São Paulo que foi. Quando chegamos ao velório, me lembro de quase tudo. Não numa ordem muito boa, mas consigo me lembrar. Lembro-me de ver vovó sentada ao lado do caixão, claramente sedada, meus tios desolados e um deles sem conseguir entrar na sala onde estava o caixão. Eu o vi. Foi o primeiro defunto que vi. Só consigo pensar que ele parecia bem.
Certa hora da noite, meu pai me levou para casa e dormimos juntos no quarto de um dos meus tios. Lembro daquele sonho de forma ainda mais viva do que do velório ou do enterro. Eu conseguia ver meu avô sorrindo, cheio de flores em volta, como as do caixão. Mas ele sorria com aquela cruz de madeira que usava no pescoço e que minha prima adorava ficar brincando quando ele a pegava no colo, lembro bem disso. Provavelmente teimava por alguma coisa. Depois disso visitei o túmulo de granito algumas vezes, lembro que lá pelos meus treze anos gostava de passar um pouco daquelas tardes quentes conversando com ele. Por mais louco que isso possa parecer hoje, me trazia uma certa paz.
Lembrei de meu avô no meio dessas noites de insônia, lembrei de um poema que escrevi, foi como se o encontrasse num guardanapo no bolso, feito com meus garranchos de uns anos atrás, ele é assim:

Tua cruz no pescoço,
Minhas lembranças do passado
Fazem parecer que só o que posso
É me lembrar do teu sorriso,
Do teu gênio de teimoso

Quem foi que disse que eu não
Ia me lembrar de você dizendo
E confundindo, de você brigando
Quem foi que disse que eu não
Ia me lembrar de você cantando
E torcendo, de você sorrindo

Uma noite toda da tua ausência
Onde eu ainda sinto sua presença
Quando eu vou dormir,
Eu fecho os olhos e vejo você,
A tua memória me faz feliz,
Eu sei que é depois que vai
Que a gente passa a existir

Quem foi que disse que eu não
Ia me lembrar de você dizendo
E confundindo, de você brigando
Quem foi que disse que eu não
Ia me lembrar de você cantando
E torcendo, de você sorrindo

Vem de novo abraçar teu neto,
Ele virou um garoto esperto,
Que não te esquece, que sente saudades,
Vô, eu ainda te espero,
Eu, seu neto.

Espero que agora São Paulo me deixe dormir um pouco, meus alunos me esperam pela manhã.


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