quarta-feira, 18 de março de 2015

Maurício (O Último Chute)




Aos meus amigos, à minha família e aos meus alunos. Que o futuro seja outro e não repita o passado.

-Não, eu não tenho medo.

Maurício repetia para si mesmo. Ele estava nu numa sala fria e úmida, o sangue escorria do lábio superior, estava jogado no chão esperando pelo próximo chute. Talvez, enfim, o último, ele realmente esperava que fosse. Chega uma hora que a esperança vira desespero nessas situações, depois quando você percebe já se transformou em desespero completo.

Deitado ali, durante aqueles segundos que mais pareciam anos, Maurício começou a se lembrar dos momentos mais felizes de toda a sua vida.

-1991-

Claudia sente uma contração forte de mais antes de perceber que sua bolsa havia estourou. O que veio em seguida foi pura correria. Marcelo, seu marido, chamou um táxi aos berros na frente da Praça 14 Bis, aquele dia de Agosto não tinha o batuque do samba da Vai-Vai para acompanhar as batidas do novo coração que queria conhecer o mundo.

Três horas depois, às 13 horas do dia dezoito de Agosto de 1991, nascia o pequeno Maurício, sem nenhuma manchete de jornal anunciando seu nascimento. Talvez um dia ele aparecesse em algum jornal, pensou Claudia enquanto amamentava seu primeiro filho pela primeira vez.

-1995-

Fazia um sol muito forte, a temperatura já devia passar dos trinta graus, mas isso não impedia que as crianças brincassem e corressem, que as meninas pulassem corda e os meninos jogassem futebol na rua. Naquele dia quente de Janeiro, Maurício fez o gol da vitória para o time da rua. Guto tocou pra ele e ele chutou direto, no meio das duas garrafas de vidro de guaraná que simbolizavam o gol. Todas as crianças da rua entraram em polvorosa.

-1998-

Chegava ao mundo a pequena Clara, a irmãzinha de Maurício. Ela tinha um diferencial perante todo o resto da família: os olhos pequenos e quase fechados eram azuis, pareciam o céu de Dezembro completamente sem nuvens, imenso, infinito.

Maurício teve a estranha sensação de que gostava daquela pequena criatura enrolada nos braços de sua mãe. Mãe essa que ele concordou em dividir unicamente com a pequena Clara. Naquela mesma noite, ele se esgueirou até o berço da irmã e ficou olhando para ela dormindo. Nascia ali um fato: ele seria um irmão super-protetor, sabia muito bem disso.

-2002-

Maurício não entendia muito bem o motivo, mas estava extremamente feliz. Achava que estava assim porque seus pais também estavam. A eleição presidencial havia sido apurada e o candidato que era de preferência de seus pais ganhara o título de Presidente do Brasil.

Marcelo gritava que “finalmente a verdadeira esquerda vai governar esse país!”, mas Maurício não entendia o que ele queria dizer com a “esquerda”, por isso achou melhor continuar a brincar com Clara que parecia estar se assustando com o entusiasmo do pai que ainda gritava palavrões pela janela do apartamento, quando não estava beijando Claudia.

-2007- (Abril)

-Vai lá, Maumau! Ela tá te esperando lá no palquinho do pátio! – Guto empurrava Maurício que estava com os cabelos despenteados e as espinhas estourando no rosto. A camiseta branca que tinha que usar na escola estava manchada de ketchup. Ele se aproximou tímido de Eloá, ela sorriu. Ele percebeu que peitos lindos ela tinha. Os dois conversaram durante todo o intervalo, não se beijaram, mas combinaram de se encontrar aquela tarde na Paulista.

Como combinado, ambos estavam na pracinha do prédio rosa, ali eles ficaram conversando sobre tudo o que podiam (foi ali que Maurício aprendeu o que era esquerda e direita na política, Eloá explicou como seu pai jamais poderia fazer), sob um pôr do sol mesclado de dourado e cinza, Maurício e Eloá deram o primeiro beijo.

-2007- (Julho)

O corpo de Maurício parecia estar entrando em erupção, suas mãos escorregavam pelas costas de Eloá e por todo o resto do corpo. Os dois caíram na cama tentando não fazer barulho para não acordar os pais dela. Logo, ambos estavam nus, Maurício perguntou num sussurro:

-Você tem certeza de que quer isso?

-Sim. – Ela respondeu ofegante enquanto beijava suavemente os lábios dele. Ele não pensou outra vez, fizeram amor, os dois pela primeira vez até a alta madrugada, quando Maurício voltou para casa cantarolando e saltitando, em seus lábios um sorriso muito bobo.

-2010-

A cidade universitária lhe parecia um imenso labirinto, mesmo ele já estando ali por duas semanas. Apesar de não tão grande, o prédio da História parecia um quebra-cabeças e as aulas nunca pareciam ser no mesmo lugar e ele estava atrasado para “História Antiga”.

Um rapaz forte e moreno estava parado na rampa fumando um cigarro, pareceu a Maurício a pessoa certa a se perguntar alguma coisa.

-Oi, meu nome é Maurício.

-Luiz. – ele disse numa voz meio mole – Posso ajudar, bicho?

-Não sei onde vai ser a aula de História Antiga. Será que você...

-Ali no fundo, penúltima porta.

Luiz e Maurício se tornaram amigos e nunca mais se separaram.

-2013-

-Golpe? Você tá ficando completamente pirado Luiz.

-Maurício, Eloá, olhem esses protestos. Eles são completamente despolitizados. Isso é perigoso.

Maurício deu um último trago antes de jogar o cigarro no chão da Paulista em frente à estação Trianon. Milhares de pessoas fechavam a Avenida, algumas com os rostos pintados de verde e amarelo, outras com a bandeira do Brasil enrolada nas costas, alguns poucos vestiam vermelho ou levavam bandeiras dessa cor. Outros tinham sues rostos cobertos e quebravam orelhões, lixeiras e bancos.

-Nossos pais reconquistaram a Democracia faz muito pouco tempo, só se fôssemos idiotas pra conseguir perder. – Eloá parecia estar convicta daquilo.

-Isso não me cheira bem, gente. – insistiu Luiz.

-Relaxa cara. Isso tudo – disse Mauricio fazendo um gesto com os braços abrangendo toda a Avenida – é Democracia.


-2014-

De uma certa forma, Maurício já estava cansado de ouvir falar em política, seus últimos cinco anos tinham sido basicamente isso e agora, desde Junho de 2013, as pessoas estavam se achando entendidas de políticas. Uns defendiam um, outros defendiam a outra.

-Esse aí não me engana! Filhote daquele outro que foi presidente nos anos 90! – exclamava seu pai enquanto assisti ao debate.

-Eu não sei como vocês dois conseguem ver isso. – indagou Clara, mas sem desviar os olhos do celular.

-Política é importante filha. – disse Claudia com carinho fazendo um cafuné na cabeça da filha que estava deitada em seu colo.

-Eu sei mãe... Mas o povo saiu na rua pedindo mudança e olha aí esse segundo turno! Tudo igual!

-A Clara tem razão mãe. – disse Maurício parecendo pensativo.

-Disse o historiador mãe! Eu tenho que estar certa! – brincou Clara dando aquela gargalhada que o irmão amava mais que tudo no mundo.

-2016- (Janeiro)

Maurício, Eloá, Clara e Luiz assistiam à televisão no novo apartamento em que o casal morava agora. Estavam tensos e angustiados, a presidenta finalmente cedera à pressão e renunciara do cargo passando a faixa ao vice.

-Eu disse. Aquilo era um golpe. – falou Luiz num tom sombrio.

-2016- (Outubro)

-O exército tá na rua, Mau! – Clara gritava desesperada ao telefone, lágrimas escorriam de seus olhos que ardiam por causa do gás de pimenta. – Eles levaram uns quatro do grupo que estava comigo protestando pela educação.

-Vem pro meu apartamento já. Pode deixar que eu ligo pra mãe e pro pai e aviso que tá tudo bem.


-2017- (Março)

-Mãe, pai... A Clara vai ajudar a cuidar do bebê.

-Eu vou cuidar do meu neto, filho. – Claudia estava emocionada, parecia que estavam tirando uma parte de seu coração à força. – Vão logo.

-Filho toma cuidado. – Marcelo deu um beijo e um abraço em Maurício – Eu te amo. – a voz dele falhou e as lágrimas vieram naturalmente.

-Também amo você pai.

-2017- (Dezembro)

Clara recebeu uma carta sem remetente, sabia que era de Maurício pois reconhecia sua caligrafia, mas estava assinada como Cristian.

“Estamos bem. L nos encontrou. Voltamos logo. Com amor, Cristian”.

-2018- (Maio)

-Eu quero saber onde está meu irmão!

A voz de Clara penetrava as paredes de concreto e chegava ao longe nos ouvidos de Maurício. Eles o deixavam escutar de propósito, era parte da tortura. Mas ele jamais iria dizer os outros nomes. Ele acreditava naquilo que lutava. Não sabia de Eloá nem de Luiz, os três foram levados para lugares diferentes assim que aterrissaram. O plano tinha vazado. Ele nunca mais os viu.

-2018- (Agosto)

O chute parecia não vir nunca. Maurício estava quase implorando – e teria feito se conseguisse falar – por, talvez, um tiro na cabeça. Ele queria que acabasse logo. Finalmente o chute na boca do estômago veio, quase que imediatamente ele perdeu os sentidos, na sua mente, o rosto de seu filho rindo, ele tinha os olhos iguais aos de Clara e a pele era como a de Eloá. Luiz seria o padrinho. Um tiro no meio da testa e toda a agonia e o sofrimento terminaram. Não havia mais nada, só o escuro.

-2028-

Eloá e Fernando, seu filho, vestiam preto. Clara, muitos anos mais velha levava consigo uma rosa vermelha. Luiz estava paraplégico. Marcelo vivia já por dois anos sem a companhia de sua amada Claudia. Algumas palavras foram ditas, o caixão com os restos mortais de Maurício foi colocado num buraco fundo, com todas as honras e condecorações que um herói nacional poderia receber. A Democracia frágil como uma vida. Nada mais seria como antes.


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