Aos
meus amigos, à minha família e aos meus alunos. Que o futuro seja outro e não repita o passado.
-Não,
eu não tenho medo.
Maurício
repetia para si mesmo. Ele estava nu numa sala fria e úmida, o sangue escorria
do lábio superior, estava jogado no chão esperando pelo próximo chute. Talvez,
enfim, o último, ele realmente esperava que fosse. Chega uma hora que a
esperança vira desespero nessas situações, depois quando você percebe já se
transformou em desespero completo.
Deitado
ali, durante aqueles segundos que mais pareciam anos, Maurício começou a se
lembrar dos momentos mais felizes de toda a sua vida.
-1991-
Claudia
sente uma contração forte de mais antes de perceber que sua bolsa havia
estourou. O que veio em seguida foi pura correria. Marcelo, seu marido, chamou
um táxi aos berros na frente da Praça 14 Bis, aquele dia de Agosto não tinha o
batuque do samba da Vai-Vai para acompanhar as batidas do novo coração que
queria conhecer o mundo.
Três
horas depois, às 13 horas do dia dezoito de Agosto de 1991, nascia o pequeno
Maurício, sem nenhuma manchete de jornal anunciando seu nascimento. Talvez um
dia ele aparecesse em algum jornal, pensou Claudia enquanto amamentava seu
primeiro filho pela primeira vez.
-1995-
Fazia
um sol muito forte, a temperatura já devia passar dos trinta graus, mas isso
não impedia que as crianças brincassem e corressem, que as meninas pulassem
corda e os meninos jogassem futebol na rua. Naquele dia quente de Janeiro,
Maurício fez o gol da vitória para o time da rua. Guto tocou pra ele e ele
chutou direto, no meio das duas garrafas de vidro de guaraná que simbolizavam o
gol. Todas as crianças da rua entraram em polvorosa.
-1998-
Chegava
ao mundo a pequena Clara, a irmãzinha de Maurício. Ela tinha um diferencial
perante todo o resto da família: os olhos pequenos e quase fechados eram azuis,
pareciam o céu de Dezembro completamente sem nuvens, imenso, infinito.
Maurício
teve a estranha sensação de que gostava daquela pequena criatura enrolada nos
braços de sua mãe. Mãe essa que ele concordou em dividir unicamente com a
pequena Clara. Naquela mesma noite, ele se esgueirou até o berço da irmã e
ficou olhando para ela dormindo. Nascia ali um fato: ele seria um irmão
super-protetor, sabia muito bem disso.
-2002-
Maurício
não entendia muito bem o motivo, mas estava extremamente feliz. Achava que
estava assim porque seus pais também estavam. A eleição presidencial havia sido
apurada e o candidato que era de preferência de seus pais ganhara o título de
Presidente do Brasil.
Marcelo
gritava que “finalmente a verdadeira esquerda vai governar esse país!”, mas
Maurício não entendia o que ele queria dizer com a “esquerda”, por isso achou
melhor continuar a brincar com Clara que parecia estar se assustando com o
entusiasmo do pai que ainda gritava palavrões pela janela do apartamento,
quando não estava beijando Claudia.
-2007-
(Abril)
-Vai
lá, Maumau! Ela tá te esperando lá no palquinho do pátio! – Guto empurrava
Maurício que estava com os cabelos despenteados e as espinhas estourando no
rosto. A camiseta branca que tinha que usar na escola estava manchada de
ketchup. Ele se aproximou tímido de Eloá, ela sorriu. Ele percebeu que peitos
lindos ela tinha. Os dois conversaram durante todo o intervalo, não se
beijaram, mas combinaram de se encontrar aquela tarde na Paulista.
Como
combinado, ambos estavam na pracinha do prédio rosa, ali eles ficaram
conversando sobre tudo o que podiam (foi ali que Maurício aprendeu o que era
esquerda e direita na política, Eloá explicou como seu pai jamais poderia fazer),
sob um pôr do sol mesclado de dourado e cinza, Maurício e Eloá deram o primeiro
beijo.
-2007-
(Julho)
O
corpo de Maurício parecia estar entrando em erupção, suas mãos escorregavam
pelas costas de Eloá e por todo o resto do corpo. Os dois caíram na cama
tentando não fazer barulho para não acordar os pais dela. Logo, ambos estavam
nus, Maurício perguntou num sussurro:
-Você
tem certeza de que quer isso?
-Sim.
– Ela respondeu ofegante enquanto beijava suavemente os lábios dele. Ele não pensou
outra vez, fizeram amor, os dois pela primeira vez até a alta madrugada, quando
Maurício voltou para casa cantarolando e saltitando, em seus lábios um sorriso
muito bobo.
-2010-
A
cidade universitária lhe parecia um imenso labirinto, mesmo ele já estando ali
por duas semanas. Apesar de não tão grande, o prédio da História parecia um
quebra-cabeças e as aulas nunca pareciam ser no mesmo lugar e ele estava
atrasado para “História Antiga”.
Um rapaz
forte e moreno estava parado na rampa fumando um cigarro, pareceu a Maurício a
pessoa certa a se perguntar alguma coisa.
-Oi,
meu nome é Maurício.
-Luiz.
– ele disse numa voz meio mole – Posso ajudar, bicho?
-Não
sei onde vai ser a aula de História Antiga. Será que você...
-Ali
no fundo, penúltima porta.
Luiz
e Maurício se tornaram amigos e nunca mais se separaram.
-2013-
-Golpe?
Você tá ficando completamente pirado Luiz.
-Maurício,
Eloá, olhem esses protestos. Eles são completamente despolitizados. Isso é
perigoso.
Maurício
deu um último trago antes de jogar o cigarro no chão da Paulista em frente à
estação Trianon. Milhares de pessoas fechavam a Avenida, algumas com os rostos
pintados de verde e amarelo, outras com a bandeira do Brasil enrolada nas
costas, alguns poucos vestiam vermelho ou levavam bandeiras dessa cor. Outros tinham
sues rostos cobertos e quebravam orelhões, lixeiras e bancos.
-Nossos
pais reconquistaram a Democracia faz muito pouco tempo, só se fôssemos idiotas
pra conseguir perder. – Eloá parecia estar convicta daquilo.
-Isso
não me cheira bem, gente. – insistiu Luiz.
-Relaxa
cara. Isso tudo – disse Mauricio fazendo um gesto com os braços abrangendo toda
a Avenida – é Democracia.
-2014-
De
uma certa forma, Maurício já estava cansado de ouvir falar em política, seus
últimos cinco anos tinham sido basicamente isso e agora, desde Junho de 2013,
as pessoas estavam se achando entendidas de políticas. Uns defendiam um, outros
defendiam a outra.
-Esse
aí não me engana! Filhote daquele outro que foi presidente nos anos 90! –
exclamava seu pai enquanto assisti ao debate.
-Eu
não sei como vocês dois conseguem ver isso. – indagou Clara, mas sem desviar os
olhos do celular.
-Política
é importante filha. – disse Claudia com carinho fazendo um cafuné na cabeça da
filha que estava deitada em seu colo.
-Eu
sei mãe... Mas o povo saiu na rua pedindo mudança e olha aí esse segundo turno!
Tudo igual!
-A
Clara tem razão mãe. – disse Maurício parecendo pensativo.
-Disse
o historiador mãe! Eu tenho que estar certa! – brincou Clara dando aquela
gargalhada que o irmão amava mais que tudo no mundo.
-2016-
(Janeiro)
Maurício,
Eloá, Clara e Luiz assistiam à televisão no novo apartamento em que o casal
morava agora. Estavam tensos e angustiados, a presidenta finalmente cedera à
pressão e renunciara do cargo passando a faixa ao vice.
-Eu
disse. Aquilo era um golpe. – falou Luiz num tom sombrio.
-2016-
(Outubro)
-O
exército tá na rua, Mau! – Clara gritava desesperada ao telefone, lágrimas
escorriam de seus olhos que ardiam por causa do gás de pimenta. – Eles levaram
uns quatro do grupo que estava comigo protestando pela educação.
-Vem
pro meu apartamento já. Pode deixar que eu ligo pra mãe e pro pai e aviso que
tá tudo bem.
-2017-
(Março)
-Mãe,
pai... A Clara vai ajudar a cuidar do bebê.
-Eu
vou cuidar do meu neto, filho. – Claudia estava emocionada, parecia que estavam
tirando uma parte de seu coração à força. – Vão logo.
-Filho
toma cuidado. – Marcelo deu um beijo e um abraço em Maurício – Eu te amo. – a voz
dele falhou e as lágrimas vieram naturalmente.
-Também
amo você pai.
-2017-
(Dezembro)
Clara
recebeu uma carta sem remetente, sabia que era de Maurício pois reconhecia sua
caligrafia, mas estava assinada como Cristian.
“Estamos
bem. L nos encontrou. Voltamos logo. Com amor, Cristian”.
-2018-
(Maio)
-Eu
quero saber onde está meu irmão!
A
voz de Clara penetrava as paredes de concreto e chegava ao longe nos ouvidos de
Maurício. Eles o deixavam escutar de propósito, era parte da tortura. Mas ele
jamais iria dizer os outros nomes. Ele acreditava naquilo que lutava. Não sabia
de Eloá nem de Luiz, os três foram levados para lugares diferentes assim que
aterrissaram. O plano tinha vazado. Ele nunca mais os viu.
-2018-
(Agosto)
O
chute parecia não vir nunca. Maurício estava quase implorando – e teria feito
se conseguisse falar – por, talvez, um tiro na cabeça. Ele queria que acabasse
logo. Finalmente o chute na boca do estômago veio, quase que imediatamente ele
perdeu os sentidos, na sua mente, o rosto de seu filho rindo, ele tinha os
olhos iguais aos de Clara e a pele era como a de Eloá. Luiz seria o padrinho.
Um tiro no meio da testa e toda a agonia e o sofrimento terminaram. Não havia
mais nada, só o escuro.
-2028-
Eloá
e Fernando, seu filho, vestiam preto. Clara, muitos anos mais velha levava
consigo uma rosa vermelha. Luiz estava paraplégico. Marcelo vivia já por dois
anos sem a companhia de sua amada Claudia. Algumas palavras foram ditas, o
caixão com os restos mortais de Maurício foi colocado num buraco fundo, com
todas as honras e condecorações que um herói nacional poderia receber. A
Democracia frágil como uma vida. Nada mais seria como antes.

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