domingo, 15 de março de 2015

Quase Sem Querer

Ao Renato, Cazuza, Herbert, Frejat, Nando.
À Cássia, Paula, Rita e Elis.
À música brasileira que são meus domingos no parque todos os dias da semana.

-Renato? Acorda, Renato!

Renato abriu os olhos devagar, não queria acordar do sonho bom que estava tendo. A primeira coisa que viu foram aqueles cabelos louros, lisos e perfumados, aqueles lábios e aqueles olhos que sorriam, ao mesmo tempo, que o sacudia.

-Qual é Paula? Que horas são? – perguntou ele enquanto se espreguiçava sob os lençóis.
-Dez horas Renatinho! Acorda pra cuspir menino!
-Olha que eu cuspo em você! – riu ele enquanto se sentava na cama. – Qual é a boa de hoje?
-Vamos pro Ibira. Fazer um piquenique digno dos hippies dos anos 60 em Nova York.
-Ah, São Paulo... Nova York do imaginário popular da classe média brasileira. – ele ironizou da forma mais meiga que conseguiu. – Vai rolar um baseado?
-O Nando tá levando!
-Vou me trocar! – agora ele parecia realmente acordado.

Mais ou menos uma hora depois Paula e Renato chegaram ao verde do Ibirapuera, logo avistaram, quase às margens do grande lago, embaixo de uma grande árvore, seus amigos Cássia, Nando (que já estava com um baseado aceso), Herbert e Rita. Eles se cumprimentaram, todos com selinhos.

-Me libera um trago, Nandinho! – pediu Renato já roubando o cigarro da mão de Nando sem esperar uma resposta.
-Olha isso, gente. Não tá nem me comendo mais e já quer minha canabis! – o comentário fez com que os outros rissem sem graça, com exceção de Cássia que não controlou um riso mais espontâneo. Na verdade, Nando e Renato tinham uma história, uma daquelas histórias que ninguém podia falar, era tabu na turma. Renato olhou feio, jogou o cigarro na grama e pisou em cima, logo depois disse em alto e bom som:
-Enfia no cu Fernando. – pegou Cássia pelo braço e foi se sentar à margem do lago.
-Deixa de frescura Renato! – exclamou Herbert alarmado. – Ele tava só brincando! – Renato não respondeu, Herbert correu atrás dele.
-Já tá fumando de mais, Nando. – disse Paula emburrada.
-Você sabe que ele odeia esse assunto – defendeu Rita.
-Vocês vão ficar aí defendendo o Renatinho, o filhinho da mamãe? – Nando estava ficando vermelho de nervoso.
-Oi, gente. – Roberto acabara de chegar acompanhado da namorada Elis.
-Nossa, que vibe ruim. – declarou Elis abanando as mãos como se estivesse expulsando algum mosquito.
-A vibe vem lá do lado, Elis. A minha tá ótima e vai continuar ótima. – disse Nando de forma decidida enquanto pegava o violão e encostava na árvore para tocar alguma melodia.
-Do lago, gente? – Elis parecia chocada e confusa.
-O Renato tá sentado lá com a Cássia e o Herbert, amor. – concluiu Roberto olhando para os amigos.
-Pois é, eles começaram bem cedo hoje. – cutucou Rita.
À beira do lago, Herbert dava uma garrafa de rum para Renato que bebeu quase metade num único gole.
-Opa! Vai com calma, Renato... Assim você vai passar mal. – disse Cássia tirando a garrafa das mãos do amigo.
-Deixa eu sofrer em paz, Cássia! Pelo menos assim sofro bêbado! É bem menos dolorido... – Ele disse tentando recuperar a garrafa.
-Vocês deveriam resolver isso de uma vez. Acaba com a harmonia do grupo todo. – Herbert declarou com uma voz firme que lembrou Renato seu pai tentando lhe dar uma bronca.
-Nós temos que resolver o quê mesmo, Herbert? E você e a Paula? Não vão se resolver nunca?

Hebert e Paula também tinham uma história. E essa história também não era mencionada entre eles.

-Renato... – disse Cássia sentindo o perigo se aproximar.
-Renato nada! Ele fica aí apontando o dedo dele pros outros, mas não consegue resolver os próprios problemas! – esbravejou ele.
-É. Você tá com a razão, como sempre. O senhor Renato da razão. O bom-selvagem! Sempre mostrando como as pessoas devem agir, mas nunca agindo ele mesmo! – acusou Herbert ficando nervoso, pegando a garrafa de rum da mão de Cássia e finalizando ela com outro gole. – A Paula não quer mais nada comigo, Renato. Você quer que eu faça o que? Que me ajoelhe pedindo pra ela voltar? Pelo menos eu não chifrei ninguém.
Renato olhou para Herbert como se fosse jogá-lo no lago naquele instante, mas respirou e disse:
-Eu nunca traí ele.
-E eu nunca traí ela. E daí? Nós dois estamos na mesma aqui.
-Vocês que se resolvam! Eu não vou ficar aqui no meio, não! To indo comer alguma coisa. – Cássia se levantou e deixou os dois sozinhos.

Debaixo da árvore, enquanto Nando tocava qualquer coisa no violão tentando esquecer a briga, tentando esquecer a traição pela qual passara. Enquanto isso, Paula conversava com Roberto e Elis, Rita fazia alguns sanduíches.

-Como vai a vida de morar juntos? – perguntou Paula tentando mostrar o máximo de interesse possível na voz.
-Vai tudo bem, nós nos damos muito bem. – declarou Roberto.
-Verdade, ele não deixa nem a toalha molhada na cama. O que já é ótimo. – riu Elis.
-Que maravilha, heim? – disse Paula sorrindo.
-Como vão a Rita e a Cássia? – perguntou Roberto.
-Ah, me parece que estão conseguindo ficar amigas.

Rita e Cássia também tinham uma história, mas essa não era tabu. As duas namoraram por dois anos, uma bela manhã acordaram, uma ao lado da outra e perceberam que aquilo não estava mais funcionando. Talvez o amor tivesse acabado, talvez elas tivessem inventado aquele amor todo. Elas riram e deram o assunto por acabado, desde então tem sido amigas.

-Bom que alguém por aqui consegue isso, né? – disse Nando colocando o violão de lado.
-Você vai parar com esse veneno todo ou não? – perguntou Cássia sentando ao lado dele.
-Veneno eu? Eu sou o chifrudo e também o venenoso?
-Ele não te traiu, querido. – disse Elis da forma mais amigável que pôde.
-E quem garante isso, Elis? Você? Sinceramente... Não acredito. Ele assumiu.
-Ele queria te irritar, Nando. – disse Roberto tentando acalmar as coisas.
-Ele e o Agenor, né?
-Quem é esse senhor Agenor na fila do pão, Nando? – perguntou Rita zomabando – Falando em pão, vai um sanduba aí?
-Não Rita. Eca, tem carne. Eu não como carne. Agenor é aquele veadinho escroto que foi com a gente pra praia no ano novo.
-Eu sei quem ele é, mas o que eu quero saber é quem é ele na nossa vida? Ele só foi pra praia com a gente e...
-Transou com o Renato! – atacou Nando.
-Ele não transou com o Renato, merda! – disse Paula se irritando e levantando de repente.
-Ah não? Então quem foi? Alguém transou e não fui eu! – Nando também se levantou. Herbert e Renato perceberam o clima e se aproximaram.
-Já chega Nando. – pediu Renato.
-Você deveria ter pensado nisso quando me traiu.
-Chega pra você também Paula.
-Você fica na sua, quatro olhos.
-Chega! Pros quatro! – gritou Elis. Nenhum deles reconhecia a amiga que agora parecia ter crescido metros, deixando sua figura pequena e magra para trás, ela parecia uma mãe quando se irritava de verdade com os filhos levados que não a obedeciam. – Vocês precisam resolver essa porra toda! Eu não sou obrigada a isso! Faz mal pro bebê! – de repente fez-se silêncio.
-Bebê?! – Roberto pulo em pé ao lado da namorada, ela corou.
-Você tá grávida, Elis? – perguntou Rita da forma mais natural que conseguiu.
-De dois meses. – ela disse sem conseguir olhar para Roberto.
-Jesus! E você ia contar quando? – perguntou Renato.
-Não sei... Eu estava procurando o momento certo. – ela se sentou de novo. – Aparentemente não era dando uma bronca em vocês!

Renato e Nando se olharam, Paula e Herbert fizeram o mesmo. Em seus olhares podia-se ver certa culpa que não estivera ali antes, não desde a praia. Aliás, eis o que realmente aconteceu no dia primeiro de Janeiro daquele ano: Todos eles haviam alugado uma casa em Santos, todos eles mais um conhecido de Renato, um colega do trabalho ele havia dito. Como todo bom réveillon havia muita cerveja, o calor estava forte e eles bebiam sem parar o tempo inteiro. Havia uma roda de violão onde Nando tocava e os outros revezavam suas músicas preferidas cantando. Essa roda se transformou em uma roda de verdade ou desafio. Desde que haviam chegado à praia, Nando estava tendo alguns momentos de ciúmes por causa da presença de Agenor. Mais por ele estar invadindo sua roda de amigos do que por ser amigo de Renato.

Naquele final de tarde, Renato e Agenor sumiram por cerca de duas horas, o que deixou Nando louco de ciúmes, quando voltaram estavam chapados. Nando questionou o que havia acontecido, Renato ficou tão nervoso com o ataque dele que disse que ele e Agenor haviam transado na praia. Não foi o que aconteceu. Eles apenas se sentaram na praia, conversaram sobre música, poesia e política e fumaram uns dois ou três baseados. Nando arrumou suas coisas e pegou o primeiro ônibus de volta para São Paulo, acompanhado de Rita que não tinha absolutamente nada a ver com a história toda. Enquanto isso, Paula e Herbert tinham uma daquelas brigas bestas e sem sentido. Só que havia sentido, no fundo. Acontece que Herbert havia traído Paula com uma moça que conhecera num boteco da Augusta uns dias antes do Natal. Ele a levara para um motel e transaram a noite inteira, e isso acabou vindo à tona no jogo de verdade ou desafio. Ele implorava perdão de joelhos, mas o orgulho louro de Paula jamais a deixaria ceder.

A culpa que eles sentiam triplicou, Elis havia ficado extremamente abalada com todas aquelas brigas quando ainda estavam na praia, mas não reclamou. E ela estava grávida! Eles se sentiam as piores pessoas do mundo.

-Elis... Desculpa, vai. – pediu Nando meio sem graça.
-Não é pra mim que você tem que pedir desculpas, ruivinho. – disse ela forçando um sorriso.
-Eu não vou... – ele ia dizer que não pediria desculpas a Renato, mas ele se antecipou.
-Desculpa Nando. Eu não transei com o Agenor. A gente só conversou e fumou naquele dia. Eu disse aquilo pra te provocar, foi estúpido.
-Foi! Estúpido de mais. “Eu me fiz em mil pedaços pra você juntar”.
-Legião? – perguntou Renato sorrindo.
-Força sempre, né Renato? – disse ele antes de abraçá-lo.
Elis sorriu satisfeita, Rita, Cássia e Roberto seguiram o exemplo.
-E vocês dois? – perguntou Roberto.
-É diferente, Elis... – disse Paula com o olhar meio frouxo.
-Eu não quis fazer aquilo, Paula. – disse Herbert como se estivesse tirando de dentro todas as forças do mundo pra dizer aquilo. Ele se aproximou dela, colocou o dedo em seu queixo e disse: “Me disseram que você estava chorando e foi então que percebi como lhe quero tanto”... Desculpa.
-Legião? – disse ela secando uma lágrima.
-Com todo o meu amor. – ele respondeu e a beijou.
Depois dos perdões, pareceu que imediatamente a paz havia voltado. Eles todos pareciam estar mais leves do que nunca.
-E sobre o bebê... – começou Roberto.
-Eu ia te contar, só estava esperando... – ele não a deixou terminar, a abraçou, deu-lhe um beijo nos lábios e outro na barriga.
-Isso merece uma música. – declarou Rita sorrindo.
-Com toda a certeza, amor. – concordou Cássia.
Uma roda de violão foi feita, em homenagem a tudo aquilo, nenhuma música seria mais perfeita do que “Quase Sem Querer”, e eles descobriram naquela tarde que, realmente, o infinito era um dos deuses mais lindos.



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