sexta-feira, 13 de março de 2015

Doutor



Ao Amigo Balão, doutor dos que não tem a cidade, mas tem a felicidade.

A beira da estrada parecia ser um dos lugares mais convidativos do mundo na opinião de Vitor. Estacionar ali e ver os carros passando, ficar no limite entre uma cidade e outra, não pertencer a lugar nenhum por algum tempo contado no relógio. Quando pequeno, viajava com seus pais no velho Passat grafite, ficava deitado no banco de trás brincando de descobrir formas nas nuvens. Isso porque as nuvens das estradas eram diferentes das que ficavam na cidade. Elas eram mais brancas, e ele se lembrava que tomavam as mais maravilhosas formas fora da civilização, da poluição e do barulho da cidade.

Garoava um pouco naquele início de tarde, a temperatura estava amena, mas o céu ainda estava bem azul. “Acho que vai dar pra ver um arco-íris hoje”, pensou Vitor enquanto parava no acostamento. Ele rumava em direção à pequena Tatuí. Queria rever os parentes que não encontrava já há algum tempo. Certamente a tia-avó Matilde ainda apertaria suas bochechas, mas dessa vez diriam: “Meu Vitor, um advogado como seu avô!”. Ele afastou o pensamento enquanto examinava seu carro que precisava de uma boa lavagem, havia uma crosta de poeira que se espalharia logo com a garoa fina.

Um pouco mais a frente de onde parara o carro, ele viu uma daquelas barraquinhas feitas de madeira e com o teto coberto por folhas de bananeira, uma placa pendurada onde se podia ler: “BANANAS, MELÃOS E ABACAXIS”, escrito em tinta branca. Ele decidiu ir até lá.

-Tarde, doutor! – cumprimentou o homem por trás da bancada de frutas, um senhor mulato, claramente humilde, um sorriso que ia de orelha a orelha e um dente faltando no meio. Provavelmente o chamou de doutor porque ainda usava o terno, já que havia pego a estrada logo depois do trabalho.

-Boa tarde, senhor. O que tem fresco aí?

-Aqui é tudo fresco, o doutor pode ter certeza! – o sorriso daquele senhor pareceu a Vitor o mais inquebrável de todos os sorrisos. Por quê?

-É mesmo? – Vitor sorriu de volta, mais tentando descobrir  porque aquele senhor parecia tão feliz – Me vê uma dúzia de bananas, dois melões e um abacaxi, por favor.

-É pra já! – enquanto ele embrulhava as frutas cuidadosamente em folhas de jornal, Vitor tentou se distrair, percebeu um panfleto perto de uma das caixas onde ficavam as frutas. Ele era todo preto com um desenho representando uma placa de neon vermelha que dizia “Café Insônia”, embaixo em pequenas letras brancas apenas: Rua Augusta, sem nenhum número, nenhuma indicação. Ele achou estranho aquilo estar ali, mas logo concluiu que alguém de passagem deveria ter deixado ali.

-Toma aqui, doutor. – disse o senhor interrompendo os pensamentos de Vitor e lhe estendendo duas sacolas com as frutas.

-Quanto fica?

-Cinco reais. – Vitor se impressionou, aquelas frutas custavam praticamente nada diante daqueles tempos de crise pelo qual passavam. Ele tirou uma nota de cinco da carteira e deu ao homem.

-O senhor mora perto daqui?

-Moro sim, doutor.

-Cinco reais não é muito barato pra isso tudo?

-É o preço justo, doutor. Não quero tirar nada de ninguém.

-É o senhor que planta essas frutas, então?

-Sou eu sim.

-Entendo. – mas sua cabeça capitalista tinha problemas em entender aquilo.

-O doutor é inteligente! Com certeza entende! – esse comentário fez Vitor sorrir timidamente.

-Posso fazer mais uma pergunta?

-Claro!

-O senhor é feliz?

Aquilo pareceu espantar o velho homem por um instante, mas mesmo assim o sorriso não desapareceu. Então, depois de um momento, sem qualquer outra hesitação, ele respondeu:

-Sim, doutor. E você?

Vitor chegou em Tatuí no final da tarde, pouco antes do sol se pôr. Entregou as frutas que comprara do homem feliz à Tia Matilde que agradeceu com um beijo tão molhado em sua bochecha que o deixou incomodado. No bolso do paletó, um dos panfletos que havia encontrado na barraca estava meio amassado, ele resolveu deixá-lo ali.

Tia Matilde passou um café que cheirava como o paraíso, os dois sentaram-se à pequena mesa redonda na cozinha, servidos também de algumas fatias de um bolo de milho que só poderia ter sido feito em alguma cidade do interior de São Paulo. Ali conversava sobre todo tipo de amenidades, mas, na verdade, a cabeça de Vitor ainda estava na pequena barraca com o teto coberto por folhas de bananeiras e sob ela, aquele que ele acreditou, pelo menos naquela hora, ser o homem mais feliz do mundo. E ele, talvez, jamais conseguisse responder àquele sorriso banguela. Bebericando um café ele se lembrou dos poucos minutos que ficara na companhia daquele homem.

-O senhor é feliz?

-Sim, doutor. E você?

-Posso te responder num outro dia? – Vitor desconfiou que esse dia jamais chegaria.

-Felicidade não tem tempo, doutor. Quando quiser! –os dois sorriram, aquela foi a melhor resposta que poderia ter recebido.

-Vou indo então.

-Boa viagem, doutor. Aproveite as frutas.

Tia Matilde falava tanto que só depois de vários minutos se deu conta que seu sobrinho-neto provavelmente não tinha ouvido uma única palavra do que ela tagarelava.

-O que foi meu filho?

-Nada tia. Só estava pensando na felicidade.

Tia Matilde fez uma cara de quem não entendeu o que ele queria dizer com aquilo e logo tornou a tagarelar sobre a velha Ruth que perdera seu gato, ou Melissa que havia engravidado aos dezesseis anos. Pacientemente Vitor escutou, sua cabeça numa linha entre Tatuí e São Paulo que era formada por um sorriso inquebrável.


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