sábado, 7 de março de 2015

Chuva & Memória


Um brinde aos amigos que se separam, aos sonhos quebrados, às cidades que tocam o blues, o soul e o jazz em sua alma.


Cristina não sabia se fazia frio ou calor, olhava pela janela e via a chuva que ora caia forte, ora parecia garoa. Etta James cantava ao fundo na vitrola que herdara de sua avó – a mulher que a criara -, “At last/My Love has come along”, ela cantava junto com Etta deitada em sua cama, com a preguiça ainda pesando em seus olhos. Vários alarmes falsos do amor que aparecia, tantos que ela já havia perdido as contas.

O apartamento que ficava no Cambuci ficava num pequeno prédio de três andares na Avenida Lins de Vasconcelos, a fachada antiga era de um tipo de pedra brilhante e cor-de-rosa, o local tinha um cheiro de rosas do incenso que Cristina acendera aquela manhã. Seus cabelos louros precisavam de um novo corte, iam até o meio das costas e pareciam mais bagunçados naquele dia. Talvez fosse a umidade, não parou de chover durante todo o fim de semana. Fim de semana aquele acompanhado por todas as vozes do Soul que ela poderia ouvir.

Em sua mente, um poema em inglês que escrever aos dezenove anos e que vez ou outra voltava à sua cabeça como algo extremamente natural, a parte que a martelava naquela hora dizia:

What is that
That makes me dance?
What is that
That makes me smile?
I think I’m just gonna lay
And think for a while

-Acho que vou me deitar e pensar por um tempo… O fim de semana inteiro, mais do que eu preciso pensar… - Cristina dizia para si mesma – A place full of old faces… Rostos antigos. – ela percebeu algo, como se um relâmpago a tivesse acertado. – Onde estão os meus amigos? Faz tempo de mais.

Ela foi até a sala, diminuiu o volume da voz de Etta James se desculpando mentalmente já que ninguém poderia silenciar a grande cantora. Pegou o telefone e discou o número da primeira pessoa que lhe veio à mente. O telefone chamou três vezes, uma voz masculina e meio entediada atendeu:

-Alô?

-Alan? – disse ela parecendo mais animada que o normal.

-Cristina? É mesmo você? – a voz pareceu se animar também do outro lado.

-Sou eu! Como você está? – Alan riu do outro lado quando Cristina perguntou.

-Menina! Quanto tempo faz? Uns sete anos? Eu estou vivendo, e você?

-O mesmo. Estou com saudades.

-Nem me diga! Vamos marcar algo!

-Com certeza!

-Você está ouvindo Etta? – ele perguntou e Cristina conseguiu vê-lo dar aquele meio sorriso que sempre dava na escola quando começavam a falar de música.

-Sim, consegue ouvir? – ela colocou o fone no ar e a voz que começava uma nova canção dizendo um “Oh, sometimes I get a good feeling, yeah”, atravessou a cidade na velocidade do som, chegando até os ouvidos de Alan e enchendo seus olhos de lágrimas, lembrando-o das memórias da época de escola. Ele engasgou e disse:

-Ainda prefiro o Stevie...

Os dois riram juntos e disseram da forma mais animada que puderam:

-Wonderful!

Eles sabiam exatamente o que o outro havia pensado: seus sonhos de serem grandes cantores como seus ídolos deixados para trás pelas circunstâncias, em nome de servir o sistema. A dor disso eles não conseguiam suportar e, talvez, tenha sido esse o motivo de não terem se visto por sete anos.

-Então, me liga pra combinarmos um encontro! – disse Alan, em seu rosto, Cristina sabia, havia um sorriso meio melancólico esboçado.

-Com certeza! – ela fingiu uma animação que já não tinha mais. – Bom fim de semana, Alan.

-Um bom fim de semana pra você e a Etta, Cris. Um beijo.

Cristina desligou o telefone e logo substitui a voz de Etta James pelo cantar desprendido de Stevie Wonder, sabia que eles não marcariam um encontro e isso a entristeceu e ao mesmo tempo em que a aliviou por não ter que enfrentar os cacos de sonhos quebrados espalhados pelo chão. Ela voltou ao quarto, deitou-se na cama e se pôs, novamente, a olhar a janela, ainda chovia.


Nenhum comentário:

Postar um comentário