Um brinde aos amigos que se separam, aos sonhos quebrados, às cidades que tocam o blues, o soul e o jazz em sua alma.
Cristina
não sabia se fazia frio ou calor, olhava pela janela e via a chuva que ora caia
forte, ora parecia garoa. Etta James cantava ao fundo na vitrola que herdara de
sua avó – a mulher que a criara -, “At
last/My Love has come along”, ela cantava junto com Etta deitada em sua
cama, com a preguiça ainda pesando em seus olhos. Vários alarmes falsos do amor
que aparecia, tantos que ela já havia perdido as contas.
O
apartamento que ficava no Cambuci ficava num pequeno prédio de três andares na
Avenida Lins de Vasconcelos, a fachada antiga era de um tipo de pedra brilhante
e cor-de-rosa, o local tinha um cheiro de rosas do incenso que Cristina
acendera aquela manhã. Seus cabelos louros precisavam de um novo corte, iam até
o meio das costas e pareciam mais bagunçados naquele dia. Talvez fosse a
umidade, não parou de chover durante todo o fim de semana. Fim de semana aquele
acompanhado por todas as vozes do Soul que ela poderia ouvir.
Em
sua mente, um poema em inglês que escrever aos dezenove anos e que vez ou outra
voltava à sua cabeça como algo extremamente natural, a parte que a martelava
naquela hora dizia:
What
is that
That makes me dance?
What is that
That makes me smile?
I think I’m just gonna lay
And think for a while
-Acho
que vou me deitar e pensar por um tempo… O fim de semana inteiro, mais do que
eu preciso pensar… - Cristina dizia para si mesma – A place full of old faces…
Rostos antigos. – ela percebeu algo, como se um relâmpago a tivesse acertado. –
Onde estão os meus amigos? Faz tempo de mais.
Ela
foi até a sala, diminuiu o volume da voz de Etta James se desculpando
mentalmente já que ninguém poderia silenciar a grande cantora. Pegou o telefone
e discou o número da primeira pessoa que lhe veio à mente. O telefone chamou
três vezes, uma voz masculina e meio entediada atendeu:
-Alô?
-Alan?
– disse ela parecendo mais animada que o normal.
-Cristina?
É mesmo você? – a voz pareceu se animar também do outro lado.
-Sou
eu! Como você está? – Alan riu do outro lado quando Cristina perguntou.
-Menina!
Quanto tempo faz? Uns sete anos? Eu estou vivendo, e você?
-O
mesmo. Estou com saudades.
-Nem
me diga! Vamos marcar algo!
-Com
certeza!
-Você
está ouvindo Etta? – ele perguntou e Cristina conseguiu vê-lo dar aquele meio
sorriso que sempre dava na escola quando começavam a falar de música.
-Sim,
consegue ouvir? – ela colocou o fone no ar e a voz que começava uma nova canção
dizendo um “Oh, sometimes I get a good
feeling, yeah”, atravessou a cidade na velocidade do som, chegando até os
ouvidos de Alan e enchendo seus olhos de lágrimas, lembrando-o das memórias da
época de escola. Ele engasgou e disse:
-Ainda
prefiro o Stevie...
Os
dois riram juntos e disseram da forma mais animada que puderam:
-Wonderful!
Eles
sabiam exatamente o que o outro havia pensado: seus sonhos de serem grandes
cantores como seus ídolos deixados para trás pelas circunstâncias, em nome de
servir o sistema. A dor disso eles não conseguiam suportar e, talvez, tenha
sido esse o motivo de não terem se visto por sete anos.
-Então,
me liga pra combinarmos um encontro! – disse Alan, em seu rosto, Cristina
sabia, havia um sorriso meio melancólico esboçado.
-Com
certeza! – ela fingiu uma animação que já não tinha mais. – Bom fim de semana,
Alan.
-Um
bom fim de semana pra você e a Etta, Cris. Um beijo.
Cristina
desligou o telefone e logo substitui a voz de Etta James pelo cantar desprendido
de Stevie Wonder, sabia que eles não marcariam um encontro e isso a entristeceu
e ao mesmo tempo em que a aliviou por não ter que enfrentar os cacos de sonhos
quebrados espalhados pelo chão. Ela voltou ao quarto, deitou-se na cama e se
pôs, novamente, a olhar a janela, ainda chovia.

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