Ao
Renato, Cazuza, Herbert, Frejat, Nando.
À
Cássia, Paula, Rita e Elis.
À
música brasileira que são meus domingos no parque todos os dias da semana.
-Renato?
Acorda, Renato!
Renato
abriu os olhos devagar, não queria acordar do sonho bom que estava tendo. A primeira
coisa que viu foram aqueles cabelos louros, lisos e perfumados, aqueles lábios
e aqueles olhos que sorriam, ao mesmo tempo, que o sacudia.
-Qual
é Paula? Que horas são? – perguntou ele enquanto se espreguiçava sob os
lençóis.
-Dez
horas Renatinho! Acorda pra cuspir menino!
-Olha
que eu cuspo em você! – riu ele enquanto se sentava na cama. – Qual é a boa de
hoje?
-Vamos
pro Ibira. Fazer um piquenique digno dos hippies
dos anos 60 em Nova York.
-Ah,
São Paulo... Nova York do imaginário popular da classe média brasileira. – ele ironizou
da forma mais meiga que conseguiu. – Vai rolar um baseado?
-O
Nando tá levando!
-Vou
me trocar! – agora ele parecia realmente acordado.
Mais
ou menos uma hora depois Paula e Renato chegaram ao verde do Ibirapuera, logo
avistaram, quase às margens do grande lago, embaixo de uma grande árvore, seus
amigos Cássia, Nando (que já estava com um baseado aceso), Herbert e Rita. Eles
se cumprimentaram, todos com selinhos.
-Me
libera um trago, Nandinho! – pediu Renato já roubando o cigarro da mão de Nando
sem esperar uma resposta.
-Olha
isso, gente. Não tá nem me comendo mais e já quer minha canabis! – o comentário
fez com que os outros rissem sem graça, com exceção de Cássia que não controlou
um riso mais espontâneo. Na verdade, Nando e Renato tinham uma história, uma
daquelas histórias que ninguém podia falar, era tabu na turma. Renato olhou
feio, jogou o cigarro na grama e pisou em cima, logo depois disse em alto e bom
som:
-Enfia
no cu Fernando. – pegou Cássia pelo braço e foi se sentar à margem do lago.
-Deixa
de frescura Renato! – exclamou Herbert alarmado. – Ele tava só brincando! –
Renato não respondeu, Herbert correu atrás dele.
-Já
tá fumando de mais, Nando. – disse Paula emburrada.
-Você
sabe que ele odeia esse assunto – defendeu Rita.
-Vocês
vão ficar aí defendendo o Renatinho, o filhinho da mamãe? – Nando estava
ficando vermelho de nervoso.
-Oi,
gente. – Roberto acabara de chegar acompanhado da namorada Elis.
-Nossa,
que vibe ruim. – declarou Elis abanando as mãos como se estivesse expulsando
algum mosquito.
-A
vibe vem lá do lado, Elis. A minha tá ótima e vai continuar ótima. – disse Nando
de forma decidida enquanto pegava o violão e encostava na árvore para tocar
alguma melodia.
-Do
lago, gente? – Elis parecia chocada e confusa.
-O
Renato tá sentado lá com a Cássia e o Herbert, amor. – concluiu Roberto olhando
para os amigos.
-Pois
é, eles começaram bem cedo hoje. – cutucou Rita.
À
beira do lago, Herbert dava uma garrafa de rum para Renato que bebeu quase
metade num único gole.
-Opa!
Vai com calma, Renato... Assim você vai passar mal. – disse Cássia tirando a
garrafa das mãos do amigo.
-Deixa
eu sofrer em paz, Cássia! Pelo menos assim sofro bêbado! É bem menos
dolorido... – Ele disse tentando recuperar a garrafa.
-Vocês
deveriam resolver isso de uma vez. Acaba com a harmonia do grupo todo. –
Herbert declarou com uma voz firme que lembrou Renato seu pai tentando lhe dar
uma bronca.
-Nós
temos que resolver o quê mesmo, Herbert? E você e a Paula? Não vão se resolver
nunca?
Hebert
e Paula também tinham uma história. E essa história também não era mencionada
entre eles.
-Renato...
– disse Cássia sentindo o perigo se aproximar.
-Renato
nada! Ele fica aí apontando o dedo dele pros outros, mas não consegue resolver
os próprios problemas! – esbravejou ele.
-É. Você
tá com a razão, como sempre. O senhor Renato da razão. O bom-selvagem! Sempre
mostrando como as pessoas devem agir, mas nunca agindo ele mesmo! – acusou Herbert
ficando nervoso, pegando a garrafa de rum da mão de Cássia e finalizando ela
com outro gole. – A Paula não quer mais nada comigo, Renato. Você quer que eu
faça o que? Que me ajoelhe pedindo pra ela voltar? Pelo menos eu não chifrei
ninguém.
Renato
olhou para Herbert como se fosse jogá-lo no lago naquele instante, mas respirou
e disse:
-Eu
nunca traí ele.
-E
eu nunca traí ela. E daí? Nós dois estamos na mesma aqui.
-Vocês
que se resolvam! Eu não vou ficar aqui no meio, não! To indo comer alguma
coisa. – Cássia se levantou e deixou os dois sozinhos.
Debaixo
da árvore, enquanto Nando tocava qualquer coisa no violão tentando esquecer a
briga, tentando esquecer a traição pela qual passara. Enquanto isso, Paula
conversava com Roberto e Elis, Rita fazia alguns sanduíches.
-Como
vai a vida de morar juntos? – perguntou Paula tentando mostrar o máximo de
interesse possível na voz.
-Vai
tudo bem, nós nos damos muito bem. – declarou Roberto.
-Verdade,
ele não deixa nem a toalha molhada na cama. O que já é ótimo. – riu Elis.
-Que
maravilha, heim? – disse Paula sorrindo.
-Como
vão a Rita e a Cássia? – perguntou Roberto.
-Ah,
me parece que estão conseguindo ficar amigas.
Rita
e Cássia também tinham uma história, mas essa não era tabu. As duas namoraram
por dois anos, uma bela manhã acordaram, uma ao lado da outra e perceberam que
aquilo não estava mais funcionando. Talvez o amor tivesse acabado, talvez elas
tivessem inventado aquele amor todo. Elas riram e deram o assunto por acabado,
desde então tem sido amigas.
-Bom
que alguém por aqui consegue isso, né? – disse Nando colocando o violão de
lado.
-Você
vai parar com esse veneno todo ou não? – perguntou Cássia sentando ao lado
dele.
-Veneno
eu? Eu sou o chifrudo e também o venenoso?
-Ele
não te traiu, querido. – disse Elis da forma mais amigável que pôde.
-E
quem garante isso, Elis? Você? Sinceramente... Não acredito. Ele assumiu.
-Ele
queria te irritar, Nando. – disse Roberto tentando acalmar as coisas.
-Ele
e o Agenor, né?
-Quem
é esse senhor Agenor na fila do pão, Nando? – perguntou Rita zomabando –
Falando em pão, vai um sanduba aí?
-Não
Rita. Eca, tem carne. Eu não como carne. Agenor é aquele veadinho escroto que foi
com a gente pra praia no ano novo.
-Eu
sei quem ele é, mas o que eu quero saber é quem é ele na nossa vida? Ele só foi
pra praia com a gente e...
-Transou
com o Renato! – atacou Nando.
-Ele
não transou com o Renato, merda! – disse Paula se irritando e levantando de
repente.
-Ah
não? Então quem foi? Alguém transou e não fui eu! – Nando também se levantou.
Herbert e Renato perceberam o clima e se aproximaram.
-Já
chega Nando. – pediu Renato.
-Você
deveria ter pensado nisso quando me traiu.
-Chega
pra você também Paula.
-Você
fica na sua, quatro olhos.
-Chega!
Pros quatro! – gritou Elis. Nenhum deles reconhecia a amiga que agora parecia
ter crescido metros, deixando sua figura pequena e magra para trás, ela parecia
uma mãe quando se irritava de verdade com os filhos levados que não a
obedeciam. – Vocês precisam resolver essa porra toda! Eu não sou obrigada a
isso! Faz mal pro bebê! – de repente fez-se silêncio.
-Bebê?!
– Roberto pulo em pé ao lado da namorada, ela corou.
-Você
tá grávida, Elis? – perguntou Rita da forma mais natural que conseguiu.
-De
dois meses. – ela disse sem conseguir olhar para Roberto.
-Jesus!
E você ia contar quando? – perguntou Renato.
-Não
sei... Eu estava procurando o momento certo. – ela se sentou de novo. –
Aparentemente não era dando uma bronca em vocês!
Renato
e Nando se olharam, Paula e Herbert fizeram o mesmo. Em seus olhares podia-se
ver certa culpa que não estivera ali antes, não desde a praia. Aliás, eis o que
realmente aconteceu no dia primeiro de Janeiro daquele ano: Todos eles haviam
alugado uma casa em Santos, todos eles mais um conhecido de Renato, um colega
do trabalho ele havia dito. Como todo bom réveillon havia muita cerveja, o
calor estava forte e eles bebiam sem parar o tempo inteiro. Havia uma roda de
violão onde Nando tocava e os outros revezavam suas músicas preferidas
cantando. Essa roda se transformou em uma roda de verdade ou desafio. Desde que
haviam chegado à praia, Nando estava tendo alguns momentos de ciúmes por causa
da presença de Agenor. Mais por ele estar invadindo sua roda de amigos do que
por ser amigo de Renato.
Naquele
final de tarde, Renato e Agenor sumiram por cerca de duas horas, o que deixou
Nando louco de ciúmes, quando voltaram estavam chapados. Nando questionou o que
havia acontecido, Renato ficou tão nervoso com o ataque dele que disse que ele
e Agenor haviam transado na praia. Não foi o que aconteceu. Eles apenas se
sentaram na praia, conversaram sobre música, poesia e política e fumaram uns
dois ou três baseados. Nando arrumou suas coisas e pegou o primeiro ônibus de
volta para São Paulo, acompanhado de Rita que não tinha absolutamente nada a
ver com a história toda. Enquanto isso, Paula e Herbert tinham uma daquelas
brigas bestas e sem sentido. Só que havia sentido, no fundo. Acontece que
Herbert havia traído Paula com uma moça que conhecera num boteco da Augusta uns
dias antes do Natal. Ele a levara para um motel e transaram a noite inteira, e
isso acabou vindo à tona no jogo de verdade ou desafio. Ele implorava perdão de
joelhos, mas o orgulho louro de Paula jamais a deixaria ceder.
A
culpa que eles sentiam triplicou, Elis havia ficado extremamente abalada com
todas aquelas brigas quando ainda estavam na praia, mas não reclamou. E ela
estava grávida! Eles se sentiam as piores pessoas do mundo.
-Elis...
Desculpa, vai. – pediu Nando meio sem graça.
-Não
é pra mim que você tem que pedir desculpas, ruivinho. – disse ela forçando um
sorriso.
-Eu
não vou... – ele ia dizer que não pediria desculpas a Renato, mas ele se
antecipou.
-Desculpa
Nando. Eu não transei com o Agenor. A gente só conversou e fumou naquele dia.
Eu disse aquilo pra te provocar, foi estúpido.
-Foi!
Estúpido de mais. “Eu me fiz em mil pedaços pra você juntar”.
-Legião?
– perguntou Renato sorrindo.
-Força
sempre, né Renato? – disse ele antes de abraçá-lo.
Elis
sorriu satisfeita, Rita, Cássia e Roberto seguiram o exemplo.
-E
vocês dois? – perguntou Roberto.
-É
diferente, Elis... – disse Paula com o olhar meio frouxo.
-Eu
não quis fazer aquilo, Paula. – disse Herbert como se estivesse tirando de
dentro todas as forças do mundo pra dizer aquilo. Ele se aproximou dela,
colocou o dedo em seu queixo e disse: “Me disseram que você estava chorando e
foi então que percebi como lhe quero tanto”... Desculpa.
-Legião?
– disse ela secando uma lágrima.
-Com
todo o meu amor. – ele respondeu e a beijou.
Depois
dos perdões, pareceu que imediatamente a paz havia voltado. Eles todos pareciam
estar mais leves do que nunca.
-E
sobre o bebê... – começou Roberto.
-Eu
ia te contar, só estava esperando... – ele não a deixou terminar, a abraçou,
deu-lhe um beijo nos lábios e outro na barriga.
-Isso
merece uma música. – declarou Rita sorrindo.
-Com
toda a certeza, amor. – concordou Cássia.
Uma
roda de violão foi feita, em homenagem a tudo aquilo, nenhuma música seria mais
perfeita do que “Quase Sem Querer”, e eles descobriram naquela tarde que,
realmente, o infinito era um dos deuses mais lindos.