segunda-feira, 23 de março de 2015

O Primeiro Canto

Ao Alex, músico de práxis e de coração.

Ao fundo, Bach. Na cabeça, Barrios. Parecia que agora a vida de Bruno baseava-se nossp: música. Não que fosse algo ruim, é o que ele queria. O violão na mão e as notas saiam com o movimento dos dedos e o vibrar das cordas, não havia sensação melhor.

Acima de todos os problemas, ele sabia que o sonho era maior. “Sonhos são feitos de possibilidades”, pensava Bruno. “A vida, uma sequência de acertos e erros”. Talvez sua vida não pudesse ser de qualquer outra forma, nascido e criado na Bela Vista, em seu sangue corria a musica e a determinação.

Aquele fim de tarde era chuvoso e frio, o sono e a preguiça estavam pesando, mas a determinação falava mais alto. Era um dia importante, seu primeiro concerto solo, pequeno, mas ainda assim, pessoas estariam lá para ouvi-lo. Ele deu até logo à irmã, colocou o violão nas costas e saiu, pediu um táxi. A passagem de som na pequena casa de shows no Largo do Arouche foi tranquila.

Conforme o horário se aproximava, mais Bruno ficava nervoso. Seu celular vibrou, uma mensagem de seu amigo Gabriel: “Já estamos aqui! Primeira fileira! Destrua!”. Ele sentiu uma pontada de confiança.

O apresentador da noite falou algumas poucas besteiras e logo chamou seu nome o apresentando como uma das maiores revelações do violão clássico da cena de São Paulo. Uma lufada de ansiedade o invadiu, como se um balde de água fria e um sopro de vento gelado os atingisse de uma vez. ele fechou os olhos, respirou fundo e entrou no palco ao som de uma salva de palmas que logo silenciou. Bruno observou sua modesta plateia, viu alguns rostos conhecidos espalhados, sabia que alguns eram jornalistas e críticos, ele ficou nervoso, mas se lembrou do conselho de Gabriel “Toque para você, não para eles”. Vários rostos novos e ali na primeira fileira Gabriel e sua irmã sorriam. Ele sorriu de volta e disse um tímido “boa noite” no microfone, fechou os olhos mais uma vez e começou a tocar.

A grandiosa “Último Canto” de Barrios começou a soar daquele único violão, não se ouvia absolutamente mais nada, pelo menos ele não conseguia, estava tão concentrado se certificando para não errar absolutamente nada. Além dá música, o único outro som que ele podia ouvir era de seu coração, as batidas agora pareciam uma segunda voz para a canção. Em sua mente ele via a velha pobre pedindo uma esmola a um músico já no final de sua vida e, ao invés de dinheiro ou comida, recebendo o maior presente, a melhor esmola que  um ser humano poderia ganhar: uma música feita para ela.


Ao soar da última nota, Bruno abriu os olhos quase que ao mesmo tempo que a plateia se levantou aplaudindo, ele parado no palco sem saber o que fazer, agradecia de todas as formas que podia. “Foi só a primeira vez”, ele pensou e sorriu agradecendo.


quarta-feira, 18 de março de 2015

Maurício (O Último Chute)




Aos meus amigos, à minha família e aos meus alunos. Que o futuro seja outro e não repita o passado.

-Não, eu não tenho medo.

Maurício repetia para si mesmo. Ele estava nu numa sala fria e úmida, o sangue escorria do lábio superior, estava jogado no chão esperando pelo próximo chute. Talvez, enfim, o último, ele realmente esperava que fosse. Chega uma hora que a esperança vira desespero nessas situações, depois quando você percebe já se transformou em desespero completo.

Deitado ali, durante aqueles segundos que mais pareciam anos, Maurício começou a se lembrar dos momentos mais felizes de toda a sua vida.

-1991-

Claudia sente uma contração forte de mais antes de perceber que sua bolsa havia estourou. O que veio em seguida foi pura correria. Marcelo, seu marido, chamou um táxi aos berros na frente da Praça 14 Bis, aquele dia de Agosto não tinha o batuque do samba da Vai-Vai para acompanhar as batidas do novo coração que queria conhecer o mundo.

Três horas depois, às 13 horas do dia dezoito de Agosto de 1991, nascia o pequeno Maurício, sem nenhuma manchete de jornal anunciando seu nascimento. Talvez um dia ele aparecesse em algum jornal, pensou Claudia enquanto amamentava seu primeiro filho pela primeira vez.

-1995-

Fazia um sol muito forte, a temperatura já devia passar dos trinta graus, mas isso não impedia que as crianças brincassem e corressem, que as meninas pulassem corda e os meninos jogassem futebol na rua. Naquele dia quente de Janeiro, Maurício fez o gol da vitória para o time da rua. Guto tocou pra ele e ele chutou direto, no meio das duas garrafas de vidro de guaraná que simbolizavam o gol. Todas as crianças da rua entraram em polvorosa.

-1998-

Chegava ao mundo a pequena Clara, a irmãzinha de Maurício. Ela tinha um diferencial perante todo o resto da família: os olhos pequenos e quase fechados eram azuis, pareciam o céu de Dezembro completamente sem nuvens, imenso, infinito.

Maurício teve a estranha sensação de que gostava daquela pequena criatura enrolada nos braços de sua mãe. Mãe essa que ele concordou em dividir unicamente com a pequena Clara. Naquela mesma noite, ele se esgueirou até o berço da irmã e ficou olhando para ela dormindo. Nascia ali um fato: ele seria um irmão super-protetor, sabia muito bem disso.

-2002-

Maurício não entendia muito bem o motivo, mas estava extremamente feliz. Achava que estava assim porque seus pais também estavam. A eleição presidencial havia sido apurada e o candidato que era de preferência de seus pais ganhara o título de Presidente do Brasil.

Marcelo gritava que “finalmente a verdadeira esquerda vai governar esse país!”, mas Maurício não entendia o que ele queria dizer com a “esquerda”, por isso achou melhor continuar a brincar com Clara que parecia estar se assustando com o entusiasmo do pai que ainda gritava palavrões pela janela do apartamento, quando não estava beijando Claudia.

-2007- (Abril)

-Vai lá, Maumau! Ela tá te esperando lá no palquinho do pátio! – Guto empurrava Maurício que estava com os cabelos despenteados e as espinhas estourando no rosto. A camiseta branca que tinha que usar na escola estava manchada de ketchup. Ele se aproximou tímido de Eloá, ela sorriu. Ele percebeu que peitos lindos ela tinha. Os dois conversaram durante todo o intervalo, não se beijaram, mas combinaram de se encontrar aquela tarde na Paulista.

Como combinado, ambos estavam na pracinha do prédio rosa, ali eles ficaram conversando sobre tudo o que podiam (foi ali que Maurício aprendeu o que era esquerda e direita na política, Eloá explicou como seu pai jamais poderia fazer), sob um pôr do sol mesclado de dourado e cinza, Maurício e Eloá deram o primeiro beijo.

-2007- (Julho)

O corpo de Maurício parecia estar entrando em erupção, suas mãos escorregavam pelas costas de Eloá e por todo o resto do corpo. Os dois caíram na cama tentando não fazer barulho para não acordar os pais dela. Logo, ambos estavam nus, Maurício perguntou num sussurro:

-Você tem certeza de que quer isso?

-Sim. – Ela respondeu ofegante enquanto beijava suavemente os lábios dele. Ele não pensou outra vez, fizeram amor, os dois pela primeira vez até a alta madrugada, quando Maurício voltou para casa cantarolando e saltitando, em seus lábios um sorriso muito bobo.

-2010-

A cidade universitária lhe parecia um imenso labirinto, mesmo ele já estando ali por duas semanas. Apesar de não tão grande, o prédio da História parecia um quebra-cabeças e as aulas nunca pareciam ser no mesmo lugar e ele estava atrasado para “História Antiga”.

Um rapaz forte e moreno estava parado na rampa fumando um cigarro, pareceu a Maurício a pessoa certa a se perguntar alguma coisa.

-Oi, meu nome é Maurício.

-Luiz. – ele disse numa voz meio mole – Posso ajudar, bicho?

-Não sei onde vai ser a aula de História Antiga. Será que você...

-Ali no fundo, penúltima porta.

Luiz e Maurício se tornaram amigos e nunca mais se separaram.

-2013-

-Golpe? Você tá ficando completamente pirado Luiz.

-Maurício, Eloá, olhem esses protestos. Eles são completamente despolitizados. Isso é perigoso.

Maurício deu um último trago antes de jogar o cigarro no chão da Paulista em frente à estação Trianon. Milhares de pessoas fechavam a Avenida, algumas com os rostos pintados de verde e amarelo, outras com a bandeira do Brasil enrolada nas costas, alguns poucos vestiam vermelho ou levavam bandeiras dessa cor. Outros tinham sues rostos cobertos e quebravam orelhões, lixeiras e bancos.

-Nossos pais reconquistaram a Democracia faz muito pouco tempo, só se fôssemos idiotas pra conseguir perder. – Eloá parecia estar convicta daquilo.

-Isso não me cheira bem, gente. – insistiu Luiz.

-Relaxa cara. Isso tudo – disse Mauricio fazendo um gesto com os braços abrangendo toda a Avenida – é Democracia.


-2014-

De uma certa forma, Maurício já estava cansado de ouvir falar em política, seus últimos cinco anos tinham sido basicamente isso e agora, desde Junho de 2013, as pessoas estavam se achando entendidas de políticas. Uns defendiam um, outros defendiam a outra.

-Esse aí não me engana! Filhote daquele outro que foi presidente nos anos 90! – exclamava seu pai enquanto assisti ao debate.

-Eu não sei como vocês dois conseguem ver isso. – indagou Clara, mas sem desviar os olhos do celular.

-Política é importante filha. – disse Claudia com carinho fazendo um cafuné na cabeça da filha que estava deitada em seu colo.

-Eu sei mãe... Mas o povo saiu na rua pedindo mudança e olha aí esse segundo turno! Tudo igual!

-A Clara tem razão mãe. – disse Maurício parecendo pensativo.

-Disse o historiador mãe! Eu tenho que estar certa! – brincou Clara dando aquela gargalhada que o irmão amava mais que tudo no mundo.

-2016- (Janeiro)

Maurício, Eloá, Clara e Luiz assistiam à televisão no novo apartamento em que o casal morava agora. Estavam tensos e angustiados, a presidenta finalmente cedera à pressão e renunciara do cargo passando a faixa ao vice.

-Eu disse. Aquilo era um golpe. – falou Luiz num tom sombrio.

-2016- (Outubro)

-O exército tá na rua, Mau! – Clara gritava desesperada ao telefone, lágrimas escorriam de seus olhos que ardiam por causa do gás de pimenta. – Eles levaram uns quatro do grupo que estava comigo protestando pela educação.

-Vem pro meu apartamento já. Pode deixar que eu ligo pra mãe e pro pai e aviso que tá tudo bem.


-2017- (Março)

-Mãe, pai... A Clara vai ajudar a cuidar do bebê.

-Eu vou cuidar do meu neto, filho. – Claudia estava emocionada, parecia que estavam tirando uma parte de seu coração à força. – Vão logo.

-Filho toma cuidado. – Marcelo deu um beijo e um abraço em Maurício – Eu te amo. – a voz dele falhou e as lágrimas vieram naturalmente.

-Também amo você pai.

-2017- (Dezembro)

Clara recebeu uma carta sem remetente, sabia que era de Maurício pois reconhecia sua caligrafia, mas estava assinada como Cristian.

“Estamos bem. L nos encontrou. Voltamos logo. Com amor, Cristian”.

-2018- (Maio)

-Eu quero saber onde está meu irmão!

A voz de Clara penetrava as paredes de concreto e chegava ao longe nos ouvidos de Maurício. Eles o deixavam escutar de propósito, era parte da tortura. Mas ele jamais iria dizer os outros nomes. Ele acreditava naquilo que lutava. Não sabia de Eloá nem de Luiz, os três foram levados para lugares diferentes assim que aterrissaram. O plano tinha vazado. Ele nunca mais os viu.

-2018- (Agosto)

O chute parecia não vir nunca. Maurício estava quase implorando – e teria feito se conseguisse falar – por, talvez, um tiro na cabeça. Ele queria que acabasse logo. Finalmente o chute na boca do estômago veio, quase que imediatamente ele perdeu os sentidos, na sua mente, o rosto de seu filho rindo, ele tinha os olhos iguais aos de Clara e a pele era como a de Eloá. Luiz seria o padrinho. Um tiro no meio da testa e toda a agonia e o sofrimento terminaram. Não havia mais nada, só o escuro.

-2028-

Eloá e Fernando, seu filho, vestiam preto. Clara, muitos anos mais velha levava consigo uma rosa vermelha. Luiz estava paraplégico. Marcelo vivia já por dois anos sem a companhia de sua amada Claudia. Algumas palavras foram ditas, o caixão com os restos mortais de Maurício foi colocado num buraco fundo, com todas as honras e condecorações que um herói nacional poderia receber. A Democracia frágil como uma vida. Nada mais seria como antes.


domingo, 15 de março de 2015

Quase Sem Querer

Ao Renato, Cazuza, Herbert, Frejat, Nando.
À Cássia, Paula, Rita e Elis.
À música brasileira que são meus domingos no parque todos os dias da semana.

-Renato? Acorda, Renato!

Renato abriu os olhos devagar, não queria acordar do sonho bom que estava tendo. A primeira coisa que viu foram aqueles cabelos louros, lisos e perfumados, aqueles lábios e aqueles olhos que sorriam, ao mesmo tempo, que o sacudia.

-Qual é Paula? Que horas são? – perguntou ele enquanto se espreguiçava sob os lençóis.
-Dez horas Renatinho! Acorda pra cuspir menino!
-Olha que eu cuspo em você! – riu ele enquanto se sentava na cama. – Qual é a boa de hoje?
-Vamos pro Ibira. Fazer um piquenique digno dos hippies dos anos 60 em Nova York.
-Ah, São Paulo... Nova York do imaginário popular da classe média brasileira. – ele ironizou da forma mais meiga que conseguiu. – Vai rolar um baseado?
-O Nando tá levando!
-Vou me trocar! – agora ele parecia realmente acordado.

Mais ou menos uma hora depois Paula e Renato chegaram ao verde do Ibirapuera, logo avistaram, quase às margens do grande lago, embaixo de uma grande árvore, seus amigos Cássia, Nando (que já estava com um baseado aceso), Herbert e Rita. Eles se cumprimentaram, todos com selinhos.

-Me libera um trago, Nandinho! – pediu Renato já roubando o cigarro da mão de Nando sem esperar uma resposta.
-Olha isso, gente. Não tá nem me comendo mais e já quer minha canabis! – o comentário fez com que os outros rissem sem graça, com exceção de Cássia que não controlou um riso mais espontâneo. Na verdade, Nando e Renato tinham uma história, uma daquelas histórias que ninguém podia falar, era tabu na turma. Renato olhou feio, jogou o cigarro na grama e pisou em cima, logo depois disse em alto e bom som:
-Enfia no cu Fernando. – pegou Cássia pelo braço e foi se sentar à margem do lago.
-Deixa de frescura Renato! – exclamou Herbert alarmado. – Ele tava só brincando! – Renato não respondeu, Herbert correu atrás dele.
-Já tá fumando de mais, Nando. – disse Paula emburrada.
-Você sabe que ele odeia esse assunto – defendeu Rita.
-Vocês vão ficar aí defendendo o Renatinho, o filhinho da mamãe? – Nando estava ficando vermelho de nervoso.
-Oi, gente. – Roberto acabara de chegar acompanhado da namorada Elis.
-Nossa, que vibe ruim. – declarou Elis abanando as mãos como se estivesse expulsando algum mosquito.
-A vibe vem lá do lado, Elis. A minha tá ótima e vai continuar ótima. – disse Nando de forma decidida enquanto pegava o violão e encostava na árvore para tocar alguma melodia.
-Do lago, gente? – Elis parecia chocada e confusa.
-O Renato tá sentado lá com a Cássia e o Herbert, amor. – concluiu Roberto olhando para os amigos.
-Pois é, eles começaram bem cedo hoje. – cutucou Rita.
À beira do lago, Herbert dava uma garrafa de rum para Renato que bebeu quase metade num único gole.
-Opa! Vai com calma, Renato... Assim você vai passar mal. – disse Cássia tirando a garrafa das mãos do amigo.
-Deixa eu sofrer em paz, Cássia! Pelo menos assim sofro bêbado! É bem menos dolorido... – Ele disse tentando recuperar a garrafa.
-Vocês deveriam resolver isso de uma vez. Acaba com a harmonia do grupo todo. – Herbert declarou com uma voz firme que lembrou Renato seu pai tentando lhe dar uma bronca.
-Nós temos que resolver o quê mesmo, Herbert? E você e a Paula? Não vão se resolver nunca?

Hebert e Paula também tinham uma história. E essa história também não era mencionada entre eles.

-Renato... – disse Cássia sentindo o perigo se aproximar.
-Renato nada! Ele fica aí apontando o dedo dele pros outros, mas não consegue resolver os próprios problemas! – esbravejou ele.
-É. Você tá com a razão, como sempre. O senhor Renato da razão. O bom-selvagem! Sempre mostrando como as pessoas devem agir, mas nunca agindo ele mesmo! – acusou Herbert ficando nervoso, pegando a garrafa de rum da mão de Cássia e finalizando ela com outro gole. – A Paula não quer mais nada comigo, Renato. Você quer que eu faça o que? Que me ajoelhe pedindo pra ela voltar? Pelo menos eu não chifrei ninguém.
Renato olhou para Herbert como se fosse jogá-lo no lago naquele instante, mas respirou e disse:
-Eu nunca traí ele.
-E eu nunca traí ela. E daí? Nós dois estamos na mesma aqui.
-Vocês que se resolvam! Eu não vou ficar aqui no meio, não! To indo comer alguma coisa. – Cássia se levantou e deixou os dois sozinhos.

Debaixo da árvore, enquanto Nando tocava qualquer coisa no violão tentando esquecer a briga, tentando esquecer a traição pela qual passara. Enquanto isso, Paula conversava com Roberto e Elis, Rita fazia alguns sanduíches.

-Como vai a vida de morar juntos? – perguntou Paula tentando mostrar o máximo de interesse possível na voz.
-Vai tudo bem, nós nos damos muito bem. – declarou Roberto.
-Verdade, ele não deixa nem a toalha molhada na cama. O que já é ótimo. – riu Elis.
-Que maravilha, heim? – disse Paula sorrindo.
-Como vão a Rita e a Cássia? – perguntou Roberto.
-Ah, me parece que estão conseguindo ficar amigas.

Rita e Cássia também tinham uma história, mas essa não era tabu. As duas namoraram por dois anos, uma bela manhã acordaram, uma ao lado da outra e perceberam que aquilo não estava mais funcionando. Talvez o amor tivesse acabado, talvez elas tivessem inventado aquele amor todo. Elas riram e deram o assunto por acabado, desde então tem sido amigas.

-Bom que alguém por aqui consegue isso, né? – disse Nando colocando o violão de lado.
-Você vai parar com esse veneno todo ou não? – perguntou Cássia sentando ao lado dele.
-Veneno eu? Eu sou o chifrudo e também o venenoso?
-Ele não te traiu, querido. – disse Elis da forma mais amigável que pôde.
-E quem garante isso, Elis? Você? Sinceramente... Não acredito. Ele assumiu.
-Ele queria te irritar, Nando. – disse Roberto tentando acalmar as coisas.
-Ele e o Agenor, né?
-Quem é esse senhor Agenor na fila do pão, Nando? – perguntou Rita zomabando – Falando em pão, vai um sanduba aí?
-Não Rita. Eca, tem carne. Eu não como carne. Agenor é aquele veadinho escroto que foi com a gente pra praia no ano novo.
-Eu sei quem ele é, mas o que eu quero saber é quem é ele na nossa vida? Ele só foi pra praia com a gente e...
-Transou com o Renato! – atacou Nando.
-Ele não transou com o Renato, merda! – disse Paula se irritando e levantando de repente.
-Ah não? Então quem foi? Alguém transou e não fui eu! – Nando também se levantou. Herbert e Renato perceberam o clima e se aproximaram.
-Já chega Nando. – pediu Renato.
-Você deveria ter pensado nisso quando me traiu.
-Chega pra você também Paula.
-Você fica na sua, quatro olhos.
-Chega! Pros quatro! – gritou Elis. Nenhum deles reconhecia a amiga que agora parecia ter crescido metros, deixando sua figura pequena e magra para trás, ela parecia uma mãe quando se irritava de verdade com os filhos levados que não a obedeciam. – Vocês precisam resolver essa porra toda! Eu não sou obrigada a isso! Faz mal pro bebê! – de repente fez-se silêncio.
-Bebê?! – Roberto pulo em pé ao lado da namorada, ela corou.
-Você tá grávida, Elis? – perguntou Rita da forma mais natural que conseguiu.
-De dois meses. – ela disse sem conseguir olhar para Roberto.
-Jesus! E você ia contar quando? – perguntou Renato.
-Não sei... Eu estava procurando o momento certo. – ela se sentou de novo. – Aparentemente não era dando uma bronca em vocês!

Renato e Nando se olharam, Paula e Herbert fizeram o mesmo. Em seus olhares podia-se ver certa culpa que não estivera ali antes, não desde a praia. Aliás, eis o que realmente aconteceu no dia primeiro de Janeiro daquele ano: Todos eles haviam alugado uma casa em Santos, todos eles mais um conhecido de Renato, um colega do trabalho ele havia dito. Como todo bom réveillon havia muita cerveja, o calor estava forte e eles bebiam sem parar o tempo inteiro. Havia uma roda de violão onde Nando tocava e os outros revezavam suas músicas preferidas cantando. Essa roda se transformou em uma roda de verdade ou desafio. Desde que haviam chegado à praia, Nando estava tendo alguns momentos de ciúmes por causa da presença de Agenor. Mais por ele estar invadindo sua roda de amigos do que por ser amigo de Renato.

Naquele final de tarde, Renato e Agenor sumiram por cerca de duas horas, o que deixou Nando louco de ciúmes, quando voltaram estavam chapados. Nando questionou o que havia acontecido, Renato ficou tão nervoso com o ataque dele que disse que ele e Agenor haviam transado na praia. Não foi o que aconteceu. Eles apenas se sentaram na praia, conversaram sobre música, poesia e política e fumaram uns dois ou três baseados. Nando arrumou suas coisas e pegou o primeiro ônibus de volta para São Paulo, acompanhado de Rita que não tinha absolutamente nada a ver com a história toda. Enquanto isso, Paula e Herbert tinham uma daquelas brigas bestas e sem sentido. Só que havia sentido, no fundo. Acontece que Herbert havia traído Paula com uma moça que conhecera num boteco da Augusta uns dias antes do Natal. Ele a levara para um motel e transaram a noite inteira, e isso acabou vindo à tona no jogo de verdade ou desafio. Ele implorava perdão de joelhos, mas o orgulho louro de Paula jamais a deixaria ceder.

A culpa que eles sentiam triplicou, Elis havia ficado extremamente abalada com todas aquelas brigas quando ainda estavam na praia, mas não reclamou. E ela estava grávida! Eles se sentiam as piores pessoas do mundo.

-Elis... Desculpa, vai. – pediu Nando meio sem graça.
-Não é pra mim que você tem que pedir desculpas, ruivinho. – disse ela forçando um sorriso.
-Eu não vou... – ele ia dizer que não pediria desculpas a Renato, mas ele se antecipou.
-Desculpa Nando. Eu não transei com o Agenor. A gente só conversou e fumou naquele dia. Eu disse aquilo pra te provocar, foi estúpido.
-Foi! Estúpido de mais. “Eu me fiz em mil pedaços pra você juntar”.
-Legião? – perguntou Renato sorrindo.
-Força sempre, né Renato? – disse ele antes de abraçá-lo.
Elis sorriu satisfeita, Rita, Cássia e Roberto seguiram o exemplo.
-E vocês dois? – perguntou Roberto.
-É diferente, Elis... – disse Paula com o olhar meio frouxo.
-Eu não quis fazer aquilo, Paula. – disse Herbert como se estivesse tirando de dentro todas as forças do mundo pra dizer aquilo. Ele se aproximou dela, colocou o dedo em seu queixo e disse: “Me disseram que você estava chorando e foi então que percebi como lhe quero tanto”... Desculpa.
-Legião? – disse ela secando uma lágrima.
-Com todo o meu amor. – ele respondeu e a beijou.
Depois dos perdões, pareceu que imediatamente a paz havia voltado. Eles todos pareciam estar mais leves do que nunca.
-E sobre o bebê... – começou Roberto.
-Eu ia te contar, só estava esperando... – ele não a deixou terminar, a abraçou, deu-lhe um beijo nos lábios e outro na barriga.
-Isso merece uma música. – declarou Rita sorrindo.
-Com toda a certeza, amor. – concordou Cássia.
Uma roda de violão foi feita, em homenagem a tudo aquilo, nenhuma música seria mais perfeita do que “Quase Sem Querer”, e eles descobriram naquela tarde que, realmente, o infinito era um dos deuses mais lindos.



sexta-feira, 13 de março de 2015

Doutor



Ao Amigo Balão, doutor dos que não tem a cidade, mas tem a felicidade.

A beira da estrada parecia ser um dos lugares mais convidativos do mundo na opinião de Vitor. Estacionar ali e ver os carros passando, ficar no limite entre uma cidade e outra, não pertencer a lugar nenhum por algum tempo contado no relógio. Quando pequeno, viajava com seus pais no velho Passat grafite, ficava deitado no banco de trás brincando de descobrir formas nas nuvens. Isso porque as nuvens das estradas eram diferentes das que ficavam na cidade. Elas eram mais brancas, e ele se lembrava que tomavam as mais maravilhosas formas fora da civilização, da poluição e do barulho da cidade.

Garoava um pouco naquele início de tarde, a temperatura estava amena, mas o céu ainda estava bem azul. “Acho que vai dar pra ver um arco-íris hoje”, pensou Vitor enquanto parava no acostamento. Ele rumava em direção à pequena Tatuí. Queria rever os parentes que não encontrava já há algum tempo. Certamente a tia-avó Matilde ainda apertaria suas bochechas, mas dessa vez diriam: “Meu Vitor, um advogado como seu avô!”. Ele afastou o pensamento enquanto examinava seu carro que precisava de uma boa lavagem, havia uma crosta de poeira que se espalharia logo com a garoa fina.

Um pouco mais a frente de onde parara o carro, ele viu uma daquelas barraquinhas feitas de madeira e com o teto coberto por folhas de bananeira, uma placa pendurada onde se podia ler: “BANANAS, MELÃOS E ABACAXIS”, escrito em tinta branca. Ele decidiu ir até lá.

-Tarde, doutor! – cumprimentou o homem por trás da bancada de frutas, um senhor mulato, claramente humilde, um sorriso que ia de orelha a orelha e um dente faltando no meio. Provavelmente o chamou de doutor porque ainda usava o terno, já que havia pego a estrada logo depois do trabalho.

-Boa tarde, senhor. O que tem fresco aí?

-Aqui é tudo fresco, o doutor pode ter certeza! – o sorriso daquele senhor pareceu a Vitor o mais inquebrável de todos os sorrisos. Por quê?

-É mesmo? – Vitor sorriu de volta, mais tentando descobrir  porque aquele senhor parecia tão feliz – Me vê uma dúzia de bananas, dois melões e um abacaxi, por favor.

-É pra já! – enquanto ele embrulhava as frutas cuidadosamente em folhas de jornal, Vitor tentou se distrair, percebeu um panfleto perto de uma das caixas onde ficavam as frutas. Ele era todo preto com um desenho representando uma placa de neon vermelha que dizia “Café Insônia”, embaixo em pequenas letras brancas apenas: Rua Augusta, sem nenhum número, nenhuma indicação. Ele achou estranho aquilo estar ali, mas logo concluiu que alguém de passagem deveria ter deixado ali.

-Toma aqui, doutor. – disse o senhor interrompendo os pensamentos de Vitor e lhe estendendo duas sacolas com as frutas.

-Quanto fica?

-Cinco reais. – Vitor se impressionou, aquelas frutas custavam praticamente nada diante daqueles tempos de crise pelo qual passavam. Ele tirou uma nota de cinco da carteira e deu ao homem.

-O senhor mora perto daqui?

-Moro sim, doutor.

-Cinco reais não é muito barato pra isso tudo?

-É o preço justo, doutor. Não quero tirar nada de ninguém.

-É o senhor que planta essas frutas, então?

-Sou eu sim.

-Entendo. – mas sua cabeça capitalista tinha problemas em entender aquilo.

-O doutor é inteligente! Com certeza entende! – esse comentário fez Vitor sorrir timidamente.

-Posso fazer mais uma pergunta?

-Claro!

-O senhor é feliz?

Aquilo pareceu espantar o velho homem por um instante, mas mesmo assim o sorriso não desapareceu. Então, depois de um momento, sem qualquer outra hesitação, ele respondeu:

-Sim, doutor. E você?

Vitor chegou em Tatuí no final da tarde, pouco antes do sol se pôr. Entregou as frutas que comprara do homem feliz à Tia Matilde que agradeceu com um beijo tão molhado em sua bochecha que o deixou incomodado. No bolso do paletó, um dos panfletos que havia encontrado na barraca estava meio amassado, ele resolveu deixá-lo ali.

Tia Matilde passou um café que cheirava como o paraíso, os dois sentaram-se à pequena mesa redonda na cozinha, servidos também de algumas fatias de um bolo de milho que só poderia ter sido feito em alguma cidade do interior de São Paulo. Ali conversava sobre todo tipo de amenidades, mas, na verdade, a cabeça de Vitor ainda estava na pequena barraca com o teto coberto por folhas de bananeiras e sob ela, aquele que ele acreditou, pelo menos naquela hora, ser o homem mais feliz do mundo. E ele, talvez, jamais conseguisse responder àquele sorriso banguela. Bebericando um café ele se lembrou dos poucos minutos que ficara na companhia daquele homem.

-O senhor é feliz?

-Sim, doutor. E você?

-Posso te responder num outro dia? – Vitor desconfiou que esse dia jamais chegaria.

-Felicidade não tem tempo, doutor. Quando quiser! –os dois sorriram, aquela foi a melhor resposta que poderia ter recebido.

-Vou indo então.

-Boa viagem, doutor. Aproveite as frutas.

Tia Matilde falava tanto que só depois de vários minutos se deu conta que seu sobrinho-neto provavelmente não tinha ouvido uma única palavra do que ela tagarelava.

-O que foi meu filho?

-Nada tia. Só estava pensando na felicidade.

Tia Matilde fez uma cara de quem não entendeu o que ele queria dizer com aquilo e logo tornou a tagarelar sobre a velha Ruth que perdera seu gato, ou Melissa que havia engravidado aos dezesseis anos. Pacientemente Vitor escutou, sua cabeça numa linha entre Tatuí e São Paulo que era formada por um sorriso inquebrável.


domingo, 8 de março de 2015

R.E.S.P.E.C.T



À todas as mulheres, em todos os sentidos.

“Não se nasce mulher; Torna-se mulher” (Simone de Beauvoir, O Segundo Sexo, Vol. 2, p.9).

Monica, 21 anos, universitária, estudante de Engenharia de Produção. Todos os dias na sala de aula, ela se sentia completamente fora de seu mundo, em sua sala apenas homens, garotinhos da mamãe acostumados a ter sempre tudo o que quisessem, e o que eles queriam diariamente era Monica. E ela nunca os quis. Foram cinco anos lutando por seu lugar ao sol, no mercado de trabalho a coisa era ainda pior. Sempre que ia a uma entrevista de emprego, comentários como “você é muito bonita, deveria estar numa passarela”, ou “você tem certeza que não comprou seu diploma?”. Quando conseguia o cargo desejado, descobria que seu salário ainda seria menor do que os companheiros masculinos.

Janaína, 18 anos, estudante do Ensino Médio de uma escola pública de São Miguel Paulista, negra (como se isso devesse importar alguma coisa). Janaína gostava de sair para dançar à noite desde os 16 anos, ela gostava de beber e se divertir. Uma noite, ela bebeu um pouco de mais, foi estuprada por três rapazes de sua escola na pista de dança, ninguém fez nada. Afinal, os comentários na escola foram de que os meninos não tinham culpa, eles haviam sido provocados. Janaína não se dava ao respeito. Um mês depois, descobriu que estava grávida, seus pais a expulsaram de casa.

Tatiana, 33 anos, transexual, antigamente costumava ser Carlos, mas nunca se sentiu menino, por isso transformou-se, ou simplesmente assumiu sua verdadeira identidade. Antes e depois disso, poucas coisas mudaram. Ela sempre enfrentou o preconceito latente da sociedade, a hipocrisia judaico-cristã que diz que “Deus criou Adão e Eva e o homem é feito para a mulher e a mulher para o homem”, ou que “homem é homem e mulher é mulher”. Ela nunca viu nada tão definido, afinal, o que é definido na vida? Uma noite, voltando pra casa de uma balada, um grupo de homens escondidos no escuro percebeu a presença de Tatiana, eles a espancaram no meio da rua, apesar de todos os gritos, a vizinhança fingiu não ouvir nada.

Mariana, 44 anos, mãe de um filho de 5 anos, casada há sete anos, professora universitária. Mora no bairro de Higienópolis e tem um apartamento próprio. Ela começou a estudar na universidade aos dezoito anos e nunca mais parou. Saiu da Graduação e emendou o Mestrado, Doutorado, Pós-Doutorado. É amada por todos os seus alunos, tem a vida que todo ser humano sempre quis, se não fosse pelos atos violentos de seu marido. Ele bate nela desde que completaram dois anos de casados, quando o filho nasceu. Todos os dias ela sente medo, todos os dias ela vai ao trabalho pensando nisso e prefere deixar isso na rua, quando entra em sala, todos os seus problemas desaparecem.

Monica se cansou de ganhar menos que os homens em sua área, abriu sua própria empresa e hoje paga o mesmo salário aos seus funcionários, independente do gênero.

Janaína tinha algumas opções: ela poderia acabar com sua própria vida ou poderia acabar com a gravidez e se reconstituir. Ela fez um aborto – mesmo correndo todos os riscos do aborto não legalizado -, terminou a escola, trabalhou, passou a morar com amigos, encontrou um cara legal que gostava dela, passaram a morar juntos, ela estudou muito, fez quatro anos de cursinho e passou em Medicina na USP. Hoje é casada com aquele cara legal e tem uma vida muito boa, obrigado. Nunca mais falou com os pais, mas nunca deixou de atender as meninas de São Miguel Paulista.

Tatiana ficou estirada na calçada por cerca de duas horas sangrando. Um rapaz que saía de um bar, por volta das quatro da manhã a encontrou ali e a levou para o hospital, ela estava quase sem sentidos quando viu o rosto dele e o agradeceu. Ele foi o primeiro homem que havia sido gentil com ela em sua vida. Ela faleceu antes de chegar ao hospital devido a hemorragia, os agressores agrediram muitas outras mulheres como ela ou não. O rapaz que a ajudou, se o céu existe, certamente tem um lugar reservado por lá.

Mariana chegou em casa um dia recebida por uma bofetada na cara, na frente de seu filho. Ela se cansou, empurrou o marido, gritou com ele, arrumou suas coisas e as de seu filho, colocou tudo no carro, alugou um pequeno apartamento perto da universidade e pediu o divórcio. Foi mãe solteira, criou o filho sozinho e nunca se arrependeu de sua decisão.




Mulheres estão em todos os lugares, elas não são definidas pelo seu sexo biológico ou pela condição social a qual são colocadas por uma sociedade machista. Elas têm todas as cores, tamanhos, raças e orientações sexuais. Elas todas merecem respeito. Nenhuma mulher é igual a outra, não há uma mulher essencial e universal, mas várias mulheres que lutam por serem reconhecidas e respeitadas como iguais aos homens. A essas mulheres, todo o meu respeito, admiração, dedicação e militância aos seus direitos. O feminismo, o problema de gênero também concerne a mim.