domingo, 22 de fevereiro de 2015

Palavras (Insônia Café)


Para a Ana que ama o Café Insônia,
Para a Lígia que sabe o que é ter insônia,
Para o Léo que conversou comigo na sarjeta,
Para a Cassia que atendeu meu pedido de socorro,
Para o Alex que continua o amigo que sempre foi,
E para todas as situações inusitadas que São Paulo nos proporciona de madrugada.


A Peixoto Gomide estava cheia, afinal, um sábado à noite pós-carnaval é a desculpa perfeita para estender a folia. Fazia 26 graus e os sons que se misturavam eram muitos. Choros, risos, música, sirenes, ameaças, brigas.

Logo atrás, na Rua Augusta, existia um lugar onde apenas algumas pessoas podiam entrar. Sua fachada era gasta e antiga, pintada com uma tinta de um vermelho desbotado, uma placa de neon que piscava falhando dizia: “Insônia Café”. As pessoas passavam sem perceber sua pequena existência. Alguns ensaivam um olhar tímido mas logo se esqueciam.

Enquanto o sinal de neon falhava, na Peixoto Gomide Alexandre e Daniela discutiam de uma forma que chamava a atenção de todos. Os amigos tentavam acalmá-los em vão. De repente um tapa. Uma lágrima, o arrependimento imediato e Daniela saiu andando em direção à Augusta sem pensar duas vezes. Foi naquele percurso que ela percebeu o quão era pequena, tantas pessoas, nenhuma para ajudar e ela se sentia completamente perdida entre elas.

Ao virar a esquina sentido Paulista, Daniela se deparou com o sinal em neon que piscava. Algo a atraiu, ela secou as lágrimas e entrou. Parou por um instante para entender o ambiente. Tinha uma luz fraca, o som de várias vozes juntas parecia uma música sendo cantada. E de fato, parecia algo universal, havia todo tipo de gente sentada ali, eles bebiam e comiam. À direita do balcão, um pequeno palco, um piano e um microfone que parecia estar esperando ser cantado.

-Ei, fofa! – uma voz nasal chamava. Daniela olhou para  o balcão e viu uma Drag Queen de cabelos vermelhos que a chamava. Ela se aproximou.

-Boa noite, eu...

-Estava andando e resolveu entrar aqui, blá blá blá. É o que todo mundo diz, só pra me encher mais de trabalho. Vai beber algo? O show já vai começar.

-Claro... Uma...

-Coca-cola aos indecisos. – declarou ela, lhe dando uma lata e um copo de plástico. Daniela sorriu, pegou a bolsa para pagar. – Por conta da casa, fofa. Mas não se acostuma que ninguém aqui vive de favor.

-Obrigada – disse Daniela sorrindo e achando melhor não insistir. – Qual o seu nome?

-Tânia.

-Obrigada, Tânia.

-Sente-se ali, fofa. – ela disse apontando uma mesa vazia bem em frente ao palco. – Aquela mesa estava esperando por você.

Daniela concordou e se sentou. Assim que abriu a lata de Coca e a colocou no copo, as luzes diminuíram e as vozes silenciaram. O piano começou a soar e uma belíssima mulher com cabelos louros e cheios, muito cacheados, os lábios com um batom vermelho que brilhada, os olhos azuis e um tipo de maiô com várias pedras que brilhavam combinando com o batom, tomou o palco e a frente do microfone. Daniela se arrepiou apenas com aquela imagem, o que viria a seguir seria uma experiência única. A mulher abriu a boca, sua voz era digna de uma Diva do Soul, mas sua pele era branca como a neve.

“Do you still remember how we used to be?/Feeling together, believing whatever/My love has said to me/Both of us were dreamers/Young love in the sun/Felt like my savior, my spirit I gave you/We’d only just begun”.


Aquela letra já conhecia de algum lugar feliz de sua infancia arrancou mais do que lágrimas de Daniela, era como se seu coração estivesse sendo acalmado, curado. Tal como palavras que estavam esperando para retornarem, ela fechou os olhos e viu toda sua vida, seus amigos, as pessoas que perdeu. O rosto de Alexandre e seu arrependimento, tanto tempo perdido, mas aprendido ao mesmo tempo. Tantas brigas desnecessárias e absolutamente nada que pudesse ser feito além do que já havia acontecido. Foi como se todos os rostos que passavam por sua cabeça estivessem ali ouvindo aquela mulher cantar.

“Back where I belong now/Was it just a dream?/Feelings unfold, they will never be sold/And the secret’s safe with me”.

Tudo aquilo só poderia ser um sonho. O rosto de Alexandre continuava a aparecer em sua mente, a raiva ia embora, tudo o que restava era ternura. Ternura pelos ótimos momentos que tiveram juntos.

“Viva forever, I’ll be waiting/Everlasting like the Sun/Live forever, for the moment/Ever searching for the one”.

Com uma última nota, a canção terminou, as palmas se elevaram, a luz aumentou e Daniela pôde ver um sorriso no rosto da cantora que parecia olhá-la fixamente, como se soubesse exatamente o que ela estava pensando e sentindo. Daniela sorriu, ao passo que a mulher retribuiu e se aproximou dela, sentando-se ao seu lado direito.

-Gostou da música, querida? – perguntou ela com a voz doce.

-De mais, foi uma versão incrível! Sua voz é maravilhosa!

-Obrigada! – ela sorriu. – Você é nova por aqui, não é?

-Sim, é a primeira vez que venho... Aliás, é a primeira vez que vejo esse lugar.

-Isso é porque você nunca precisou dele... Até agora.

-Talvez seja isso mesmo... – Daniela ficou pensativa com aquela afirmação.

-Assuntos do coração, querida?

-Exato... Qual seu nome?

-Marina, e o seu?

-Daniela... – ela respirou e continuou: Marina, fiquei intrigada quando você disse que eu ainda não tinha precisado desse lugar... O que isso quer dizer?

-Daniela querida, você passou por alguma coisa que te fez precisar do Insônia Café... Esse lugar está aqui para todos os que não tem para onde ir. Você não o enxergaria se não precisasse. Não é exatamente o lugar que chama atenção.

Marina sorria satisfeita, ela mesma havia precisado daquele lugar há algum tempo e nele fora acolhida, longe de sua cidade, de seus amigos.

-É por isso que você canta? – perguntou Daniela.

-Sim... Palavras, querida. Palavras curam até o mais destruído dos corações. Palavras libertam, te levam para lugares que você não se lembrava mais que existiam, a palavra é o poder, Daniela. Agora eu preciso voltar lá pra trás, tudo bem?

-Você vai cantar de novo?

-Hoje não, não há mais tempo. Quem sabe na próxima noite? – ela piscou para Daniela enquanto levantava e se afastava.

Aquilo havia sido uma das experiências mais diferentes e inusitadas pelas quais Daniela já havia passado, embora agora o local começasse a lhe parecer familiar. Era como se ela já o tivesse visitado antes. Não sabia como,, mas era possível.

-Acho que está na hora, querida. – disse Tânia se aproximando de sua mesa. Agora Daniela podia perceber como a Drag Queen era alta e bonita.

-Hora? De que? – ela soava confusa.

-Hora de ir para casa descansar. Já está amanhecendo.

-O que?! Não pode... – ela olhou para fora e viu uma pálida e tímida luz cobrindo o chão da rua. – Nossa, como o tempo passou rápido.

-O tempo aqui é o que você precisa que ele seja.

Tânia sorriu e naquele momento Daniela reparou que na parede atrás do calção havia um enorme número de fotografias penduradas em molduras das mais diversas formas e tamanhos, todos os rostos que ilustravam pareciam conhecidos, como se eles já tivessem se encontrado antes.

-Eu vou indo então, Tânia. Obrigado pela Coca! – ela disse tirando a cabeça das fotos.

-Vai pela sombra, fofa!

Daniela atravessou a porta, ao mesmo tempo Marina voltava para a frente do Café parando ao lado de Tânia.

-Será que ela volta?

-Se precisar... Você continuou voltando o tempo todo, não foi olhos verdes?

-Por tempo de mais agora. – disse Marina sorrindo enquanto o sol brilhava mais forte lá fora.



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