sábado, 14 de fevereiro de 2015

Memória

Fevereiro de 2015.

Ao Edison que largou tudo tantas vezes por amor.

O despertador talvez seja um dos barulhos mais irritantes de toda a história. Ele toca quando você menos quer que isso aconteça, quando seu sono está finalmente se estabelecendo. Mesmo assim, ele toca. Isso significa que mais um dia começa e você não tem controle nenhum sobre sua vida, não que isso seja algo horrível. Talvez não seja. Mas quando se está sonhando as coisas acontecem do jeito que você quer que elas sejam, e isso é melhor do que não estar no controle. Gabriel tentava desligar o barulho infernal que seu telefone fazia. Mas parecia não conseguir deslizar o dedo para o lado certo da tela e aquele barulho infernal não parava. Isso o obrigou a sentar na cama. Olhou bem para a tela e deslizou, finalmente, o dedo para o lugar certo. Ele esfregou os olhos, se espreguiçou e saiu da cama. Precisava logo de um café.

Só o cheiro do café já mudava toda a sua perspectiva do que estava para acontecer durante o dia todo. A pura rotina a que era obrigado seguir todos os dias. São Paulo pode ser uma cidade verdadeiramente sufocante... Tudo acontece o tempo todo e às vezes você não tem tempo nenhum de pensar. Quando você menos espera está completamente afogado por todas as formas de pressão e de repressão também. Seja quem for. O café estava pronto, ele tomou uma xícara com mais açúcar do que café, na verdade.

O banho era essencial, mas como qualquer paulista ele tinha que ser quente, por mais calor que estivesse fazendo naquela manhã. Quando o relógio marcou oito horas em ponto, Gabriel deu partida no carro e saiu de casa. Mesmo caminho de sempre, mesmos prédios de sempre, mesmas árvores de sempre. Tudo igual, às vezes ele pensava que via as mesmas pessoas andando, com os mesmos rostos, alguns tristes e outros felizes. Os mesmos adolescentes cabulando aula para fumar ou andar de skate. Tudo na maior normalidade. Tudo estaria se não fosse por uma única coisa diferente que aconteceu. Ele mudou de ideia. Quando tinha que virar a direita, ele seguiu reto. Que se dane o trabalho, ele pensou. Preciso de outra coisa agora, e ele sabia do que precisava: o farol.

Pegou a Anchieta e desceu, no rádio as músicas mais animadas que poderia imaginar, o radialista estava sintonizado com Gabriel. Ou talvez fosse o contrário. A via estava livre e ele mal podia esperar para chegar onde queria. No rádio Giz da Legião Urbana era a música que tocava: “Desenho toda a calçada/Acaba o giz, tem tijolo de construção/Eu rabisco o sol que a chuva apagou”. Ele sorriu enquanto dirigia, como se aquele fosse o momento mais libertador de toda a sua vida. A música, Gabriel pensava, era uma das coisas que mais tinham o poder de libertar as pessoas. Elas falam com as almas, com os corações, talvez. Parecia que o sol estava sorrindo, e ele sorria junto.

Gabriel entrou em Santos, estacionou o carro na praia que havia estado tantas e tantas vezes em sua infância, tirou os sapatos e os deixou no carro. Foi descalço pisando na areia fofa, havia algumas pessoas correndo no calçadão, olhou para a esquerda e viu uma família, os pais deviam estar de férias e levaram os filhos pequenos para a praia, as crianças brincavam com a areia fazendo seus castelos e fortes que adulto nenhum tinha o direito de derrubar. Aliás, adulto nenhum tem o direito de interferir nos sonhos de uma criança. Ele sorriu e deixou as ondas chegarem à margem e tocarem seus pés, o vento bater em seu rosto. Ele se sentou e ficou ali por um bom tempo, um tempo que voou, que ele não viu passar. Que ele não podia agarrar com as mãos e pedir que parasse... Ele simplesmente deixou passar. Não se lembrou que havia deixado seu telefone no carro, não se lembrou que as pessoas do trabalho possivelmente estivessem atrás dele. Não se lembrou ou escolheu não se lembrar.


Quando todos os seus pensamentos já estavam em ordem, Gabriel decidiu que era hora de voltar. Mas não queria voltar para o que tinha, queria voltar para algo novo, diferente, inusitado. Ao chegar em São Paulo iria ao trabalho e pediria as contas, procuraria fazer aquilo que mais gostava: ele iria prender memórias. Tirar fotos, guardar lembranças. E isso ele faria com o coração e jamais com a cabeça.

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