terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

O Sinal



À Dayse, exemplo e inspiração para todas as aulas que eu der em vida,

À Mara, por dar um gás pedagógico toda vez que eu perco o meu,

Ao Emiliano, por ser a resistência em pessoa que é,

Ao Carlos, por ser companheiro, amigo, historiador e professor pra mim,

Ao Alan, porque acima de toda a dificuldade, permanece sorrindo,


Aos professores do Brasil, os que se importam, resistamos e não deixemos que o sinal continue a tocar.

-Quarenta e cinco anos na sala de aula ensinando gerações e gerações, formando médicos, advogados, artistas... Todo tipo de gente. O senhor não acha que o professor deveria ser melhor reconhecido e valorizado, como no caso dessa senhora que saiu nos jornais, Governador?

O apresentador parecia sério ao fazer aquela pergunta, parecia se importar realmente com aquilo. Talvez ele tenha tido um professor que transformou algo em sua vida. o Governador sorriu, deu uma leve risada e disse:

-Professor tem que dar aula porque ama. Já não é reconhecimento e valorização bastante saber que forma tantas outras profissões?

Dalva decidiu que não queria mais ver aquela entrevista, certamente o Governador esqueceu-se dos professores que o fizeram chegar a seu cargo ou, talvez, simplesmente não se importasse. Ela desligou a televisão se perguntando por que tinha ficado acordada até uma hora da manhã, no dia seguinte tinha que estar na escola as sete, daria seis aulas de manhã mais quatro aulas à tarde em busca de seu desajustado salário de fome.

A professora fechou os olhos e as palavras daquele homem desprezível ecoavam em sua mente: “Professor tem que dar aula porque ama”. O relógio despertou, parecia que ela tinha apenas piscado e a noite passara. Enquanto se vestia rapidamente, repassava na cabeça as aulas preparadas para aquele dia, enquanto preparava o café, pensava naquele nono ano com cinquenta alunos frequentes na lista, entre eles aquele menino com metade do cérebro paralisado.

Chegou na escola ofegante com o sorriso inquebrável nos lábios, cumprimentou os colegas na sala dos professores. Sentou-se para descansar do esforço que fizera para subir a ladeira, afinal já estava na casa dos sessenta, não tinha mais os vinte e poucos anos de quando começou a lecionar.

A maior parte das conversas entre os colegas estavam centradas em suas próprias vidas pessoais, outras reclamavam de como aqueles alunos eram desleixados e como quando era sua época de estudantes, tudo era diferente, o problema da escola está centrado no aluno, o jornal jogado na grande mesa dizia que o problema estava, naquele momento, dizendo que o problema verdadeiro era outro. Um grupo de professores mais novos debatiam com animação sobre a entrevista do Governador durante a madrugada. Esse grupo de cinco professore chamou a atenção de Dalva, ela pensou em concordar quando um deles disse como o Governador deveria ser deposto e que não entendia como um ser daqueles fora reeleito em primeiro turno, mas antes que pudesse tomar fôlego para falar, o sinal tocou e quase que de forma mecânica ela pegou suas coisas e subiu para a sala. Subiu pensando em como algo ainda podia ser feito, em como realmente amava o que fazia, mas como gostaria de pagar suas contas fazendo o que ama, como seus alunos também estavam sendo prejudicados, e esperou que grupos de professores como aquele pudessem fazer algo.

Vários outros sinais tocaram, como sempre foi, mas nada mudou...

domingo, 22 de fevereiro de 2015

Palavras (Insônia Café)


Para a Ana que ama o Café Insônia,
Para a Lígia que sabe o que é ter insônia,
Para o Léo que conversou comigo na sarjeta,
Para a Cassia que atendeu meu pedido de socorro,
Para o Alex que continua o amigo que sempre foi,
E para todas as situações inusitadas que São Paulo nos proporciona de madrugada.


A Peixoto Gomide estava cheia, afinal, um sábado à noite pós-carnaval é a desculpa perfeita para estender a folia. Fazia 26 graus e os sons que se misturavam eram muitos. Choros, risos, música, sirenes, ameaças, brigas.

Logo atrás, na Rua Augusta, existia um lugar onde apenas algumas pessoas podiam entrar. Sua fachada era gasta e antiga, pintada com uma tinta de um vermelho desbotado, uma placa de neon que piscava falhando dizia: “Insônia Café”. As pessoas passavam sem perceber sua pequena existência. Alguns ensaivam um olhar tímido mas logo se esqueciam.

Enquanto o sinal de neon falhava, na Peixoto Gomide Alexandre e Daniela discutiam de uma forma que chamava a atenção de todos. Os amigos tentavam acalmá-los em vão. De repente um tapa. Uma lágrima, o arrependimento imediato e Daniela saiu andando em direção à Augusta sem pensar duas vezes. Foi naquele percurso que ela percebeu o quão era pequena, tantas pessoas, nenhuma para ajudar e ela se sentia completamente perdida entre elas.

Ao virar a esquina sentido Paulista, Daniela se deparou com o sinal em neon que piscava. Algo a atraiu, ela secou as lágrimas e entrou. Parou por um instante para entender o ambiente. Tinha uma luz fraca, o som de várias vozes juntas parecia uma música sendo cantada. E de fato, parecia algo universal, havia todo tipo de gente sentada ali, eles bebiam e comiam. À direita do balcão, um pequeno palco, um piano e um microfone que parecia estar esperando ser cantado.

-Ei, fofa! – uma voz nasal chamava. Daniela olhou para  o balcão e viu uma Drag Queen de cabelos vermelhos que a chamava. Ela se aproximou.

-Boa noite, eu...

-Estava andando e resolveu entrar aqui, blá blá blá. É o que todo mundo diz, só pra me encher mais de trabalho. Vai beber algo? O show já vai começar.

-Claro... Uma...

-Coca-cola aos indecisos. – declarou ela, lhe dando uma lata e um copo de plástico. Daniela sorriu, pegou a bolsa para pagar. – Por conta da casa, fofa. Mas não se acostuma que ninguém aqui vive de favor.

-Obrigada – disse Daniela sorrindo e achando melhor não insistir. – Qual o seu nome?

-Tânia.

-Obrigada, Tânia.

-Sente-se ali, fofa. – ela disse apontando uma mesa vazia bem em frente ao palco. – Aquela mesa estava esperando por você.

Daniela concordou e se sentou. Assim que abriu a lata de Coca e a colocou no copo, as luzes diminuíram e as vozes silenciaram. O piano começou a soar e uma belíssima mulher com cabelos louros e cheios, muito cacheados, os lábios com um batom vermelho que brilhada, os olhos azuis e um tipo de maiô com várias pedras que brilhavam combinando com o batom, tomou o palco e a frente do microfone. Daniela se arrepiou apenas com aquela imagem, o que viria a seguir seria uma experiência única. A mulher abriu a boca, sua voz era digna de uma Diva do Soul, mas sua pele era branca como a neve.

“Do you still remember how we used to be?/Feeling together, believing whatever/My love has said to me/Both of us were dreamers/Young love in the sun/Felt like my savior, my spirit I gave you/We’d only just begun”.


Aquela letra já conhecia de algum lugar feliz de sua infancia arrancou mais do que lágrimas de Daniela, era como se seu coração estivesse sendo acalmado, curado. Tal como palavras que estavam esperando para retornarem, ela fechou os olhos e viu toda sua vida, seus amigos, as pessoas que perdeu. O rosto de Alexandre e seu arrependimento, tanto tempo perdido, mas aprendido ao mesmo tempo. Tantas brigas desnecessárias e absolutamente nada que pudesse ser feito além do que já havia acontecido. Foi como se todos os rostos que passavam por sua cabeça estivessem ali ouvindo aquela mulher cantar.

“Back where I belong now/Was it just a dream?/Feelings unfold, they will never be sold/And the secret’s safe with me”.

Tudo aquilo só poderia ser um sonho. O rosto de Alexandre continuava a aparecer em sua mente, a raiva ia embora, tudo o que restava era ternura. Ternura pelos ótimos momentos que tiveram juntos.

“Viva forever, I’ll be waiting/Everlasting like the Sun/Live forever, for the moment/Ever searching for the one”.

Com uma última nota, a canção terminou, as palmas se elevaram, a luz aumentou e Daniela pôde ver um sorriso no rosto da cantora que parecia olhá-la fixamente, como se soubesse exatamente o que ela estava pensando e sentindo. Daniela sorriu, ao passo que a mulher retribuiu e se aproximou dela, sentando-se ao seu lado direito.

-Gostou da música, querida? – perguntou ela com a voz doce.

-De mais, foi uma versão incrível! Sua voz é maravilhosa!

-Obrigada! – ela sorriu. – Você é nova por aqui, não é?

-Sim, é a primeira vez que venho... Aliás, é a primeira vez que vejo esse lugar.

-Isso é porque você nunca precisou dele... Até agora.

-Talvez seja isso mesmo... – Daniela ficou pensativa com aquela afirmação.

-Assuntos do coração, querida?

-Exato... Qual seu nome?

-Marina, e o seu?

-Daniela... – ela respirou e continuou: Marina, fiquei intrigada quando você disse que eu ainda não tinha precisado desse lugar... O que isso quer dizer?

-Daniela querida, você passou por alguma coisa que te fez precisar do Insônia Café... Esse lugar está aqui para todos os que não tem para onde ir. Você não o enxergaria se não precisasse. Não é exatamente o lugar que chama atenção.

Marina sorria satisfeita, ela mesma havia precisado daquele lugar há algum tempo e nele fora acolhida, longe de sua cidade, de seus amigos.

-É por isso que você canta? – perguntou Daniela.

-Sim... Palavras, querida. Palavras curam até o mais destruído dos corações. Palavras libertam, te levam para lugares que você não se lembrava mais que existiam, a palavra é o poder, Daniela. Agora eu preciso voltar lá pra trás, tudo bem?

-Você vai cantar de novo?

-Hoje não, não há mais tempo. Quem sabe na próxima noite? – ela piscou para Daniela enquanto levantava e se afastava.

Aquilo havia sido uma das experiências mais diferentes e inusitadas pelas quais Daniela já havia passado, embora agora o local começasse a lhe parecer familiar. Era como se ela já o tivesse visitado antes. Não sabia como,, mas era possível.

-Acho que está na hora, querida. – disse Tânia se aproximando de sua mesa. Agora Daniela podia perceber como a Drag Queen era alta e bonita.

-Hora? De que? – ela soava confusa.

-Hora de ir para casa descansar. Já está amanhecendo.

-O que?! Não pode... – ela olhou para fora e viu uma pálida e tímida luz cobrindo o chão da rua. – Nossa, como o tempo passou rápido.

-O tempo aqui é o que você precisa que ele seja.

Tânia sorriu e naquele momento Daniela reparou que na parede atrás do calção havia um enorme número de fotografias penduradas em molduras das mais diversas formas e tamanhos, todos os rostos que ilustravam pareciam conhecidos, como se eles já tivessem se encontrado antes.

-Eu vou indo então, Tânia. Obrigado pela Coca! – ela disse tirando a cabeça das fotos.

-Vai pela sombra, fofa!

Daniela atravessou a porta, ao mesmo tempo Marina voltava para a frente do Café parando ao lado de Tânia.

-Será que ela volta?

-Se precisar... Você continuou voltando o tempo todo, não foi olhos verdes?

-Por tempo de mais agora. – disse Marina sorrindo enquanto o sol brilhava mais forte lá fora.



sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Dançando na Lua

Minha lua, Marina, que me guiou pelas noites mais escuras, por cinco anos.

Fazia por volta dos 30 graus na zona Leste de São Paulo naquela noite. Uma jovem professora de filosofia terminava, enfim, de corrigir a última das centenas de provas mal-escritas que tinha trazido da escola para casa. Sua escrivaninha tinha uma vista privilegiada, direto para o céu e a lua minguante que brilhava prateada lá em cima.

Jenifer descansou a caneta vermelha e, sorrindo, olhou a lua apoiando a cabeça com as duas mãos. “Parece um farol enorme, que está lá pra guiar quem está perdido pela noite. Será que...?”. O pensamento que ocorreu a elaera lindo de mais para ser pensado.

Qualquer homem ou mulher que visse a pele escura de Jenifer brilhar sob a luz da lua, acreditaria que se tratava de uma deusa, a Rainha da Serenidade. Não importava afinal, pois ela só tinha olhos para seu recém-marido. Vinicius estava dormindo no quarto ao lado. Ela foi até lá apenas para olhá-lo, contemplá-lo. “Como tenho sorte”, ela pensou sorrindo.

Voltou silenciosamente para sua escrivaninha e ficou contemplando seu astro preferido. A lua lhe trazia tanta calma, ao mesmo tempo que lhe parecia nostálgica. Ela passou a mão na sua tatuagem do pulso, uma pequena lua. No fundo, ela não sabia onde, bem baixinho, começava uma canção que era forte, linda, triste, a letra cantava: “De todo o amor que eu tenho/Metade foi tu que me deu/Salvando minha alma da vida/Sorrindo e fazendo meu eu”, Jenifer fechou os olhos conforme a música seguia.

***

Uma linda mulher, negra como ela, vestida no mais belo dos vestidos, prateado, parecia feito de cristal transformado em tecido, com a graça de uma rainha dançava com a música, no meio da lua, no meio do Mar da Serenidade. Ela jamais poderia esquecer aquele sorriso.

-Mãe? – disse Jenifer com a voz embargada.

-Filha... – respondeu ela calma e sorrindo enquanto continuava a dançar.

-Mãe, que saudade da senhora! – as lágrimas escorriam naturalmente.

-Fica bem, filha. Fica forte. – ela continuava a dançar e sorrir – Tudo se ajusta.

Agora parecia que ela estava mais longe, Jenifer tentou correr em sua direção, mas parecia pesada. A mãe sorriu, como mágica a alcançou, a pegou pela mão e começaram a dançar juntas ao que pareceu à professora alguns segundos apenas, segundos que poderiam durar uma eternidade. Ela beijou a filha no rosto e mais uma vez estava longe.

-Mãe, não vai embora!

-Te amo, filha!

“Me mostre um caminho agora/Um jeito de estar sem você/O apego não quer ir embora/Diacho, ele tem que querer”.

Sua mãe, linda e brilhante como uma deusa, se tornava um enorme astro prateado no céu entre milhares de estrelas que brilhavam, enquanto isso, Jenifer se afastava, afastava...

***

-Amor? – ela ouviu Vinicius chamar.

-Mãe? – disse ela acordando confusa em sua escrivaninha, o sol batendo em seu rosto.

-Sou eu, amor. Você deve ter dormido enquanto trabalhava.

-Acho que sim...

-Tá tudo bem? – ele parecia preocupado pelo fato da esposa ter chamado a mãe.

Ela parou um instante tentando marcar a imagem de sua mãe dançando na lua, não queria esquecer nunca mais.

-Sim, amor – ela sorriu – Eu estava dançando na lua com a minha mãe.


Vinicius não entendeu, mas mesmo assim sorriu e a beijou nos lábios. Jenifer sabia: afinal, havia vida na lua.






Todos os direitos da música reservados.

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Garotos Perdidos

Ao Alex, Breno, Cesar, Danilo e Léo, meus queridos ex-alunos que já cresceram.


A chuva caia a cântaros na rua, a Avenida Paulista estava colorida com os faróis dos carros brilhando, guarda-chuvas de todas as cores possíveis passeavam atravessando a rua, risadas sonoras e alegres infestavam toda a extensão da Avenida, do Paraíso até a Consolação. Aquela noite de sábado, apesar da chuva, parecia ser uma das mais felizes que a cidade já presenciara. Os sons das conversas animadas em frente a Casa das Rosas, um bebê nascendo no Santa Catarina, alguém contando sobre um novo livro que havia lido no Fran’s Café. Aparentemente o coração das pessoas estava cheio de alegria, de todos os tipos.

Descendo a Rua 13 de Maio, no bairro da Bela Vista, um grupo de cinco amigos adolescentes se encontravam. Eles subiam a rua conversando alto e dando risada, cada um com uma long neck na mão. Não estavam se importando com a chuva que caía. Eles eram meninos perdidos, perdidos no mundo, perdidos na vida. Todos perdidos da melhor maneira que poderiam estar. O mundo estava girando, e eles não se preocupavam. A vida estava apenas começando e tudo o que eles esperavam dela era pura diversão.

Na esquina da Paulista com a 13 de Maio havia uma praça, ali era seu Quartel General de todas as noites de fim de semana. Ali eles se sentavam, e ali aquela amizade crescia. Eles sabiam que quando a escola terminasse seria cada um por si e as coisas iriam ser mais difíceis, mas não queriam pensar nisso agora. Ainda tinham algumas semanas para serem adolescentes inconsequentes. Tinham mais duas semanas para se perderem.

-A gente precisa fazer uma coisa inesquecível essa noite. – disse Carlos já alterado.

-Vamos arrumar umas minas, e aí... – começou Daniel, mas logo foi interrompido.

-Que minas, mano! Temos que fazer alguma coisa louca. – disse Lucas parecendo mais animado que os outros.

-Alguma coisa louca tipo o que? – perguntou André parecendo interessado.

-Vocês estão querendo encrenca aqui... – alertou Bernardo, mas com um tom de brincadeira na voz.

-Vamos roubar um carro. – disse Carlos calmamente.

-Quê? – os outros quatro estavam realmente surpresos com a ideia do amigo.

-É, roubar um carro. A gente quer ou não que essa porra seja inesquecível? – Carlos estava decidido já se levantando.

-Carlos, como nós vamos roubar um carro, mano? Você enlouqueceu? – dizia André perplexo.

-Espera, espera, espera. – interrompeu Lucas mais uma vez. – Você tem algum plano?

-Lucas, você não pode estar falando sério. Você tá levando ele a sério? – Daniel ergueu um pouco a voz.

-Por que não? – disse ele calmo.

-Porque isso é crime! – rebateu Bernardo.

-Mas nós não vamos ficar com o carro pra gente... É só dar uma volta e devolver onde encontramos. – disse Carlos.

-E quem aqui sabe dirigir nessa porra? – disse André já nervoso.

-A gente consegue enganar... – respondeu Daniel rindo.

-E aí, vamos? – disse Lucas também se levantando.

-Vamos nessa... – disse Carlos.

Os outros três se olharam desconfiados imaginando a loucura que estavam para cometer, mas mesmo assim aceitaram.

Trinta minutos depois os cinco estavam de volta à Bela Vista, andavam pela 13 de Maio até avistarem um rapaz guardando uma chave de carro.

-Acho que é mais fácil roubar a chave do que o carro, não? – perguntou Carlos.

-Talvez... Mas quem vai roubar o cara? – perguntou Lucas nervoso. Eles se olharam ainda mais nervosos.

-Ah, foda-se! Eu vou. – disse Carlos por fim. Ele saiu atrás do rapaz sem dizer mais nada, virou a próxima rua e sumiu dos olhos dos outros. Cerca de quatro minutos depois ele voltou segurando a chave.

-Eu não acredito. – disse Bernardo atônito.

-Você roubou a chave, mas e o carro? – perguntou Danilo.

-Ele me disse onde está, eu ameacei matar. – disse Carlos.

-Mano, vocês são doidos. – disse André.

-Você também está aqui, André. Fica suave. – disse Lucas.

-Vamos? – perguntou Carlos sorrindo.

-Antes que eu perca a coragem... – disse Bernardo.

Eles foram até a Rui Barbosa, ali estava estacionado um Prisma, eles pararam em volta e Carlos anunciou:

-É esse.

-Quem dirige? – perguntou Daniel.

-Eu vou. – disse Carlos.

-Você realmente é doido, mano. – disse André rindo.

Os cinco entraram no carro, Carlos deu a partida meio desengonçado e saiu em direção a Avenida Paulista deixando o carro morrer uma ou duas vezes no caminho, o que foi motivo de riso entre os outros. Eles iam a toda velocidade que podiam pela Avenida, viam as luzes do prédio da FIESP se aproximando, a música muito alta, tocava Charlie Brown do Coldplay enquanto os cinco riam de toda a situação sem se preocupar com o que aconteceria em seguida. Ao fazerem o retorno, e Carlos aprender a trocar a marcha um pouco melhor, eles decidiram que o certo a se fazer era estacionar o carro de volta onde encontraram e deixar a chave escondida na roda. Foi o que fizeram, eles escreveram um bilhete numa nota fiscal que estava no bolso de Bernardo, com a caneta na mochila de Carlos e ele dizia: “Obrigado!”. Eles deixaram no para-brisas e saíram andando enquanto riam e o relógio marcava três da madrugada.

Carlos foi o último a chegar em casa, mas antes passou no Estadão, tinha mais uma coisa a fazer naquela noite. Ali sentado no balcão com uma cerveja ao lado, estava Douglas, o rapaz de quem ele havia emprestado a chave. Carlos ergueu a mão e devolveu a Douglas sorrindo. Ele havia fingido colocar a chave na roda.

-Obrigado, cara. Foi muito legal. – disse Carlos sorrindo.

-O carro está inteiro? – perguntou ele preocupado.

-Completamente.

-E vocês se divertiram? – Douglas sorria.

-De mais, como nunca.

-Então valeu a pena. Boa noite, Carlos.

-Boa noite, professor.


A chuva continuava a cair lá fora, o centro da cidade parecia ainda mais bonito com aquele tempo, pensou Douglas enquanto parava um táxi na rua deserta. Ao chegar em seu próprio carro, ele sorriu com o bilhete, o pegou e dobrou com carinho guardando-o no bolso. Era ele que jamais se esqueceria o que aqueles meninos representaram em sua vida.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

Pânico Paulista


À Raissa, minha pequena lutadora.

Cada dia que se passava, a ansiedade de Daniela crescia de uma forma assustadora. Todas as coisas a inquietavam. Desde a política do país até as idas e vindas de sua própria vida. o fim de seu namoro de cinco anos havia acontecido há pouquíssimo tempo e ela ainda não sabia muito bem como lidar com isso. Por duas semanas, todos os dias, ela acordou e olhou no espelho dizendo a si mesma “Seja forte. Acredite”. Talvez, se repetisse isso todos os dias, acabaria sendo verdade, ela pensava.

Certa noite, ela decidiu sair, voltar ao mundo, lembrar o que era se divertir com os amigos, sem ter que prestar contas a ninguém... Já não sabia o que era isso por tempo demais. A Rua Augusta era o melhor lugar para se lembrar, parecia que um novo mundo de possibilidades se abria diante dela, repleto de possibilidades, não de amor, mas apenas possibilidades.

-Amiga, fica tranquila! Divirta-se! Você merece muito! – dizia Claudia, sua amiga de longa data abraçando-a, já meio alta com a vodka que elas bebiam.

-Eu to tranquila, amiga! Vou me divertir! – Daniela garantiu sem pensar duas vezes antes de beber mais um gole de vodka.

Seja lá quem foi que inventou o álcool fez a coisa bem de mais. Ele liberta, alegra, por um período de tempo curto. É passageiro, efêmero, como a maioria das coisas são na vida, mas sempre ajuda. Mas depois ele acaba sendo como o amor: você fica no fundo, largado, derrotado e perdido naquela ressaca que pede água o tempo todo, água pra desafogar o que for possível.

Já devia ser por volta das quatro da manhã, numa noite quente de Janeiro, quando Daniela decidiu que era hora de parar. Estava tentando manter uma conversa com um dos amigos que ali estavam, Marcos.

-Vou te falara, Dani... Só tem dois tipos de pessoas no mundo: as que entretém e as que observam... Qual delas nós queremos ser? – dizia o rapaz com a voz arrastada também do álcool.

-Quero ser a que entretém, Marcos! – respondeu Daniela rindo enquanto abraçava o amigo. Sua cabeça girava e as luzes em neon da Augusta pareciam muito mais brilhantes que antes, ela olhou para o outro lado da rua e pensou ter lido num neon vermelho Insônia Café e uma menina loura com uma camiseta vermelha entrando, quando voltou a olhar, o lugar não estava mais lá.

-Você tá legal, Dani? – perguntou Marcos ainda abraçando a amiga que havia ficado quieta.

-Eu to bem. Só meio zonza.

Era mentira. Dentro dela parecia que tudo estava se tornando gelo sólido e quebrava a cada fôlego que era tomado.  Era um pânico indescritível. Ninguém poderia entender aquilo, cada um sabe de sua própria dor e não há o que se possa dizer para os outros conseguirem entender isso. Ela repetia para si mesma: “Você tem que perder para saber como se ganha. Seja Forte. Acredite. Tudo vai acabar dando certo, não importa o que aconteça. Não é o fim do mundo, Daniela! Eu posso viver sem ele, eu posso viver sozinha se eu quiser! Sei que posso”.

Parecia que ela estava dormindo agora, havia cores por todos os lados e elas brilhavam de todas as formas possíveis. Ela se viu com Claudia e Marcos sentados na escadaria da Gazeta, Claudia dizia:

-A vida é uma cachoeira, amiga! – e ela estava iluminada.

-Você é forte, é guerreira, lutadora! – os olhos verdes de Marcos brilhavam como dois faróis coloridos que iluminavam a distância.

O sol nasceu e ela estava em sua casa, em sua cama, e como num passe de mágica, o pânico havia desaparecido de seu peito. Talvez ele voltasse, mas tudo estaria bem. Tudo iria terminar bem.


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Frio & Sol

Julho de 2014.
À Christina, a voz da minha vida. Please, never stop.

O dia estava frio, mas o céu muito azul, algumas nuvens recortando aquela imensidão toda. Cristina estava deitada, olhando para tudo aquilo, seus olhos se mesclavam com a cor do titã que permanecia onipresente lá em cima. Beleza pura... Tudo seria tão lindo, tão mágico, se ao menos... Não, não havia ao menos. Cristina sabia que ela deveria se manter feliz, forte. Era sortuda, cantava nos musicais que queria, tinha amigos insubstituíveis, tudo que ela sempre quis. Com exceção dele. Ah, aquele rapaz que quebrou seu coração. Mais um, aliás. Mas aquele – como qualquer último ex-caso -, havia sido o pior de todos. Despedaçara aquele leve e sorridente coração, como se fosse um pedaço de vidro. Forte, mas tão frágil. Talvez a fortaleza seja mesmo muito mais frágil do que se pode imaginar.

Ela fechou os olhos, Cazuza cantava com sua voz rasgada em seus ouvidos: “Que só eu que podia/Dentro da tua orelha fria/Dizer segredos de liquidificador/Você sonhava acordada/Um jeito de não sentir dor/Prendia o choro e aguava o bom do amor”. Ela se lembrou da primeira vez que ouvira – ou que prestara atenção – na voz de Cazuza. Devia ter uns doze anos, estava passando por várias mudanças, e tudo parecia fora de lugar. Uma menina da escola em que acabara de entrar resolveu cantar aquela música pra ela, provavelmente pra puxar assunto, para que ela se sentisse mais confortável. Cantou “Exagerado”, de forma exagerada e infantil, provavelmente sem perceber os duplos sentidos que a letra levava. Daí Cristina procurou, e conheceu. E se identificou, afinal, não havia exagero maior que o dela.

E as lembranças foram fluindo com a música, ela se lembrou da primeira vez que o conheceu, no meio daquele mesmo parque onde estava agora, sentada num banco. Tudo muito clichê. Ele olhou pra ela e sorriu, ela retribuiu porque achou seu sorriso bonito.

-Boa tarde. – ele disse ainda com aquele maldito sorriso no rosto.
-Boa tarde. – ela respondeu, completamente sem graça.

Quem diria? Um simples “bom tarde” correspondido pode mudar uma vida inteira. Isso é injusto, concluiu ela. Deveríamos ter uma espécie de poder pra pressentir que não ia dar certo, porque não deu. Depois de quase um ano de relacionamento, entre choros e brigas, uma boa dose de ciúmes (dela) e de obsessão (também dela), ele fez o que qualquer outro homem provavelmente faria a traiu. Pelo menos não foi com nenhuma melhor amiga. Mas amor é uma coisa engraçada, diferente. Chega a ser muito estranha. Mesmo depois que ele é destruído – por ambos os lados, porque ele nunca se autodestrói de um lado só -, parece que não acaba. Permanece. Fica feito lembrança. “Fica feito tatuagem sobre a pele”, como diria Gil via Elis. E tudo parece louco.


Chega um dia que parece que faz tanto tempo, você dá risada. Mas ainda está lá. Protegido em um codinome. Não sai mais dali, só vai embora e desaparece quando ambos tiverem sumido do mundo. Aí, ainda sobra um resquício, naqueles que viram tudo acontecer e que, porventura, sobraram vagando pelas andanças desse mundo. É, Cristina ainda é exagerada. Ainda se emociona mais do que deveria e deixa os sentimentos fluírem de mais. Mas, São Paulo ajuda. Enfim, a música terminou. Ela levantou e saiu... Afinal, o tempo ia passar aquilo não ia sumir e ela aprenderia a viver com tudo aquilo.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Memória

Fevereiro de 2015.

Ao Edison que largou tudo tantas vezes por amor.

O despertador talvez seja um dos barulhos mais irritantes de toda a história. Ele toca quando você menos quer que isso aconteça, quando seu sono está finalmente se estabelecendo. Mesmo assim, ele toca. Isso significa que mais um dia começa e você não tem controle nenhum sobre sua vida, não que isso seja algo horrível. Talvez não seja. Mas quando se está sonhando as coisas acontecem do jeito que você quer que elas sejam, e isso é melhor do que não estar no controle. Gabriel tentava desligar o barulho infernal que seu telefone fazia. Mas parecia não conseguir deslizar o dedo para o lado certo da tela e aquele barulho infernal não parava. Isso o obrigou a sentar na cama. Olhou bem para a tela e deslizou, finalmente, o dedo para o lugar certo. Ele esfregou os olhos, se espreguiçou e saiu da cama. Precisava logo de um café.

Só o cheiro do café já mudava toda a sua perspectiva do que estava para acontecer durante o dia todo. A pura rotina a que era obrigado seguir todos os dias. São Paulo pode ser uma cidade verdadeiramente sufocante... Tudo acontece o tempo todo e às vezes você não tem tempo nenhum de pensar. Quando você menos espera está completamente afogado por todas as formas de pressão e de repressão também. Seja quem for. O café estava pronto, ele tomou uma xícara com mais açúcar do que café, na verdade.

O banho era essencial, mas como qualquer paulista ele tinha que ser quente, por mais calor que estivesse fazendo naquela manhã. Quando o relógio marcou oito horas em ponto, Gabriel deu partida no carro e saiu de casa. Mesmo caminho de sempre, mesmos prédios de sempre, mesmas árvores de sempre. Tudo igual, às vezes ele pensava que via as mesmas pessoas andando, com os mesmos rostos, alguns tristes e outros felizes. Os mesmos adolescentes cabulando aula para fumar ou andar de skate. Tudo na maior normalidade. Tudo estaria se não fosse por uma única coisa diferente que aconteceu. Ele mudou de ideia. Quando tinha que virar a direita, ele seguiu reto. Que se dane o trabalho, ele pensou. Preciso de outra coisa agora, e ele sabia do que precisava: o farol.

Pegou a Anchieta e desceu, no rádio as músicas mais animadas que poderia imaginar, o radialista estava sintonizado com Gabriel. Ou talvez fosse o contrário. A via estava livre e ele mal podia esperar para chegar onde queria. No rádio Giz da Legião Urbana era a música que tocava: “Desenho toda a calçada/Acaba o giz, tem tijolo de construção/Eu rabisco o sol que a chuva apagou”. Ele sorriu enquanto dirigia, como se aquele fosse o momento mais libertador de toda a sua vida. A música, Gabriel pensava, era uma das coisas que mais tinham o poder de libertar as pessoas. Elas falam com as almas, com os corações, talvez. Parecia que o sol estava sorrindo, e ele sorria junto.

Gabriel entrou em Santos, estacionou o carro na praia que havia estado tantas e tantas vezes em sua infância, tirou os sapatos e os deixou no carro. Foi descalço pisando na areia fofa, havia algumas pessoas correndo no calçadão, olhou para a esquerda e viu uma família, os pais deviam estar de férias e levaram os filhos pequenos para a praia, as crianças brincavam com a areia fazendo seus castelos e fortes que adulto nenhum tinha o direito de derrubar. Aliás, adulto nenhum tem o direito de interferir nos sonhos de uma criança. Ele sorriu e deixou as ondas chegarem à margem e tocarem seus pés, o vento bater em seu rosto. Ele se sentou e ficou ali por um bom tempo, um tempo que voou, que ele não viu passar. Que ele não podia agarrar com as mãos e pedir que parasse... Ele simplesmente deixou passar. Não se lembrou que havia deixado seu telefone no carro, não se lembrou que as pessoas do trabalho possivelmente estivessem atrás dele. Não se lembrou ou escolheu não se lembrar.


Quando todos os seus pensamentos já estavam em ordem, Gabriel decidiu que era hora de voltar. Mas não queria voltar para o que tinha, queria voltar para algo novo, diferente, inusitado. Ao chegar em São Paulo iria ao trabalho e pediria as contas, procuraria fazer aquilo que mais gostava: ele iria prender memórias. Tirar fotos, guardar lembranças. E isso ele faria com o coração e jamais com a cabeça.