sexta-feira, 4 de setembro de 2015

"Naked"


"This angel's dirty face is sore holding on to what she had before, not sharing secrets with any old fool, she's gonna keep her cool, she wants to get naked..."

Fazia muito calor e as pessoas preferiam ficar nas estreitas calçadas da Rua Augusta ao invés de dentro dos bares, elas deixavam as garrafas de cerveja no chão, aos seus pés, e seguravam seus copos enquanto bebiam e conversavam animadamente graças ao efeito do álcool. Diversos tipos de música se misturavam e diversos tipos de pessoas também. Quanto mais se descia a rua, mais as placas neon iam aparecendo, o “Casarão”, o “Caribe”, o “Castelo”, todos conheciam aqueles lugares por sua fama. Na frente, moças com corpos curvados, mas mal tratadas pela vida, ficavam tentando atrair clientes. Ali, entre essas casas de entretenimento masculino, encostada numa parede, um pouco esquecida, mas muito mais chamativa do que todas as outras, estava Ester. Tinha os cabelos mais bem tratado do que de suas colegas, grandes olhos azuis e uma pele branca, sem nenhuma marca. Constantemente era alvo de fofocas e intrigas entre as mais velhas, afinal, ela tinha apenas dezoito anos e chegara à São Paulo procurando uma vida nova, ela como tantas outras haviam descoberto que a vida que lhes esperava era muito mais sofrida do que se poderia imaginar.

-Quantos anos você tem, meu bem? – Perguntou Cassandra, a velha cafetina daquela zona específica.

-Dezoito anos, senhora. – Respondeu a jovem Ester com um sotaque arretado vindo da Bahia.

-E veio de onde, pequena?

-Salvador, senhora.

-E o que fazia lá?

-Nada não... morava com maínha, mas ela faleceu.

-Pobrezinha. – Não havia nem sina de pena em sua voz. – E seu pai?

-Não sei dele não, senhora.

-Certo... – Cassandra fez Ester dar uma voltinha, ela chegara mirrada e sem carnes ali, algumas boas refeições resolveriam aquilo rapidinho. A menina provavelmente era virgem, assim que tivesse seu primeiro cliente, seu corpo se desenvolveria mais rápido. – Vai servir, minha filha. Vai ficar com a Sheila, quarto cinco. Pode subir.

Ester subiu as escadas assustada, segurava em uma das mãos uma pequena mala velha que tinha em casa, dentro dela, num fundo falso, o pouco dinheiro que sua mãe lhe deixara no banco. Toda vez que pensava em sua mãe morrendo em casa, sem ninguém para ajudar, seu coração parecia quebrar em um milhão de pedacinhos, a dor era muita. Quando entrou no pequeno quarto olhou em volta e viu um único guarda-roupa, um beliche, uma janela sem cortinas, a parede descascada e deitada na cama de cima uma mulher chegando nos seus trinta anos, com a maquiagem borrada, fumava um cigarro e soltava a fumaça no teto como se fosse a Lagarta de Alice no País das Maravilhas, mas sem fazer as formas em círculo.

-Quem é você? – Perguntou ela olhando fixamente para Ester que notou que a mulher tinha olhos azuis muito tristes e profundos, pensou ela.

-Sou Ester... vou ficar aqui. – Ester respondeu muito tímida com a cabeça baixa, olhando fixamente para um taco solto no chão.

-Aquela velha filha da puta não tem vergonha na cara mesmo. – A mulher desceu do beliche e se aproximou lentamente de Ester dando mais um trago no cigarro. – Quantos anos você tem, pequena?

-Dezessete...

-E ela te deixou entrar aqui com essa idade? – Ela parecia realmente furiosa.

-Não dona... eu disse pra senhorinha lá de baixo que tinha dezoito completos já... não é culpa dela não, visse?

A mulher com a sombra verde toda borrada que combinava com os olhos, olhou fixamente para Ester. A menina pensou que ela tinha os olhos mais tristes que já vira em toda a sua vida, mal sabia que também aprenderia a olhar daquele jeito em breve.

-Me chamo Sheila. – Ela disse por fim. – Seja bem-vinda. A cama de cima é minha... to vendo que você não tem lá muita coisa nessa malinha aí, né? Pode dobrar suas roupas e deixar numa gaveta do guarda-roupas, provavelmente não vão servir por muito tempo, mesmo.

-Obrigado senhora.

-Senhora tá no céu, minha filha e isso aqui é inferno.

Ester descobriria que Sheila estava certa, descobriria que aquilo era uma representação muito próxima do que ela ouvira o Padre dizer muitas vezes na Bahia. A única coisa diferente é que ali era muito frio, o inferno devia ser quente. Devia ser muito quente, como a Bahia no alto verão.

Quando o sol se pôs, Cassandra entrou no quarto sem bater e acordou Ester que dormia profundamente enquanto Sheila lia alguma revista.

-Vamos lá, menina. Tem que se arrumar. – Disse Cassandra chacoalhando a pequena e mirrada menina na cama. – Tempo é dinheiro. Sheila, dá um jeito nessa pobre coitada que se sair assim pra zona, ninguém vai querer nem um boquete.

-Vai se foder, Cassandra. Sai fora. – Sheila parecia muito mais forte que a velha Cassandra, mas a cafetina tinha um olhar esmagador.

-Se não conseguir uns trocados hoje, te corto a cabeça, vadia. – Disse ela sem se dirigir a nenhuma das duas especificamente e batendo a porta atrás de si.

-Essa bruxa velha...

-Ela é muito má. – Ester disse isso como se fosse algo novo, como se tivesse descoberto o Brasil.

-Ela é uma mal-comida do caralho. Vem aqui pequena... tenho que passar uma maquiagem nessa sua cara.

Quando se olhou no espelho, a menina não se reconheceu, parecia ter pelo menos cinco anos a mais com a cara toda pintada daquela forma. O batom vermelho lembrava-a daquelas rosas que via nos filmes da televisão, mas que nunca tinha visto ao vivo. Usava um vestido que já não cabia mais em Sheila, era de um tecido brilhante e gelado, e todo verde, muito curto. Usava uns saltos da mesma cor (por sorte, calçava o mesmo número que a companheira de quarto). Ela cambaleava naquele salto e andava feito uma pequena palhacinha, disse Sheila. Mas ela se acostumaria... ela se acostumaria com tudo aquilo.

O primeiro cliente não tardou a aparecer, elas estavam paradas um pouco afastadas uma da outra quando um carro muito luxuoso e brilhante parou bem na frente das duas, Sheila foi conversar com o motorista e lançou um olhar preocupado para Ester depois que o homem ainda sem rosto disse.

-Ester... ele quer você.

O coração da pequena batia três vezes mais rápido, mas ela tirou forças de algum lugar e sorriu. Sorriu como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se aquele sorriso fizesse parte dela desde sempre, sorriu como se absolutamente nada tivesse dado errado em sua vida. Ela entrou no carro sem cambalear no salto, viu que o homem devia ter quase sessenta anos, mas não se abalou. Ele a olhou com malicia e colocou a mão nas pernas de Ester, a menina sentiu nojo, muito nojo, mas não demonstrou. Continuou sorrindo e deixou que o homem a levasse. Entraram num Motel barato que cheirava a água sanitária, ou foi o que a menina pensou. Ela não conseguiu nem pensar, quando viu o homem já estava encima dela na cama, beijando seu pescoço, passando uma mão em seus seios e a outra entre suas pernas, quando tocou um pouco mais fundo, parou tudo que estava fazendo, olhou para ela sorrindo e disse:

-É virgem, putinha?

-Tava esperando você. – Ester nunca entendeu de onde tirou forças para dizer aquilo, mas disse. E disse como se realmente tivesse esperado. Aquilo excitou o homem muito mais. Quando ele entrou nela, foi como se algo a estivesse rasgando violentamente, ele colocava e tirava rápido e forte, Ester sentia muita dor, mas fingiu um prazer que mulher nenhuma sentiria.

Quando voltou para o pequeno quarto na rua Augusta, Sheila já dormia na cama de cima, ela tomou um banho longo e deixou que as lágrimas escorressem com a água do chuveiro. Olhou-se no espelho e viu o rosto de um anjo sujo que se apoiava numa vida que não mais voltaria, uma vida que não mais existiria. Jamais voltaria, morrera com sua mãe, fora embora com seu pai.

Não demorou muito para que a pequena Ester se transformasse numa mulher com carnes, todas no lugar e na medida, pelo menos ao gosto dos homens que frequentavam aquela zona. Cassandra enriquecia cada vez mais depois da chegada da menina, chamava-a de “minha pequena Alice”, esse tinha se tornado seu nome na rua. Ela o escolheu depois que uma das meninas que moravam naquela pensão caindo aos pedaços, aquela que todos chamavam de “Maria Louca” lhe deu um pequeno livro antigo e quase sem capa, ela já o conhecia, tinha visto um filme e vira o livro em algum momento na escola, chamava-se Alice no País das Maravilhas. Às vezes, Ester sentia-se meio Alice e isso a reconfortava. Todos os homens a queriam e logo ela cresceu, toda sua inocência jogada deixada para trás, sua infância parecia outra vida, a Bahia parecia um mundo completamente a parte. Aquelas luzes de neon passaram a fazer parte de sua vida, ela gostava daquelas nuvens. Gostava de Sheila, gostava da Maria Louca, gostava de seu livro, gostava de São Paulo, gostava de alguns clientes – esses se tornaram fiéis, dinheiro certo -, mas odiava Cassandra com todas as suas forças. Odiava Cassandra pois a velha com sua peruca vermelha, seu cheiro de água de colônia vencida e seu batom vermelho naquela boca enrugada e suja, toda aquela imagem representava a morte de Ester e o nascimento de Alice. E de Alice ela não gostava também, sentia saudades de Ester e, às vezes, quando estava quente e o sol estava se pondo entre os prédios cinzas, pichados e sujos, ela fechava os olhos e fingia estar ouvindo o Olodum de longe, ou vendo as oferendas para Iemanjá. Imaginava que contava toda a dor que a afligia à sua maínha. Mas logo ela tinha que retornar para a realidade e voltava, voltava àquele país das maravilhas.












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