Ao
Alex e ao Balão, por serem corações rebeldes.
Mário se sentou em frente à escrivaninha, ali havia apenas
papel e caneta, nada mais. Era preciso colocar muita coisa para fora, era
preciso fazer isso como se não houvesse amanhã, como se aquela fosse sua última
chance e como se fosse morrer amanhã. Pois na verdade, ele morreria amanhã. Ao
primeiro raio de sol, seria seu fim. Como um vampiro, se transformaria em pó,
seu coração pararia, seu cérebro não mais funcionaria, seus olhos não mais
veriam, nem seus ouvidos escutariam, sua voz jamais seria ouvida outra vez. Ele
coçou os olhos, suspirou, empunhou a caneta Bic como se fosse uma espada e
aquela fosse sua última batalha. Foi como se tudo saísse muito naturalmente.
Me
chamo Mário, tenho vinte e cinco anos e minha vida termina amanhã. Não preciso
explicar sobre minha morte, mas sobre minha vida. Fico pensando se posso
considerar essa uma memória póstuma, assim como foi a de Brás Cubas, se sou um
defunto-autor ou se simplesmente sou uma pessoa que em breve será defunto.
Deixo nessa carta – nenhum grande livro, pois minha vida não se estende tanto
assim – tudo o que quero deixar. Tudo o que preciso colocar para fora mais que
qualquer outra coisa.
Há quem
diga que fui sempre uma pessoa horrível, eu entendo quem diz isso. Pois, afinal
de contas, sempre fui avesso às leis e à moralidade. Sempre gostei de fazer as
coisas do meu jeito, como me parecia certo e de nenhuma outra forma. Desde pequeno
imagino ter infernizado meus pais, era uma criança complicada e teimosa, não
obedecia aos adultos, se me mandassem não colocar o dedo na tomada era isso
mesmo que eu faria, colocaria meu pobre e pequeno dedo ali, só para desafiar os
adultos. Meus professores diziam que eu tinha um desrespeito crônico às
hierarquias, que não tinha respeito nenhum com a ordem. Eles estavam certos,
nunca tive essa preocupação.
Quando
era adolescente, disse a meus pais que queria ser escritor. Meu pai me dizia
que eu era louco, que deveria ser mais parecido com os outros garotos da minha
idade, que deveria estar interessado em perder a virgindade e não em estudar ou
ler livros que ele considerava inúteis. Meu pai não me conhecia, mal sabia que naquela
época minha inspiração maior era a Geração Beat, Jack Kerouac e Allan Ginsberg,
portanto, seria quase uma enorme contradição se ainda fosse virgem. Provei tudo
o que me deu vontade, meninos e meninas... Dizia Renato Russo que gostava de
meninos e meninas e eu também. Aliás, sempre gostei muito de Renato Russo, ele
sempre foi uma daquelas imagens difusas e perturbadas em minha imaginação. Eu o
fiz como um personagem de um romance russo, provavelmente por causa de Pais e
Filhos de Turgunièv, eu poderia colocá-lo
em qualquer história de Dostoiévski ou Sartre sem problemas. Eu tinha nele uma
obsessão, uma vontade de ser igual.
Meus
melhores amigos são Tiago e Rafael, desde o jardim de infância fomos
inseparáveis. Eu sempre tentei estar por cima deles, ser uma espécie de líder
de uma matilha de lobos arruaceiros que éramos. Crescemos fazendo as piores
façanhas juntos, mas eu sempre levei a culpa, mesmo quando ela não era minha.
Certa vez, Rafael perdeu a cabeça com uma menina que havia xingado sua mãe –
devíamos ter por volta dos quatorze anos -
e acabou torcendo tanto o braço da dita cuja que o quebrou, eu assumi a
culpa sem pestanejar. Talvez, isso fosse uma questão de manter a hierarquia...
A mesma que eu não respeitava de forma nenhuma, mas queria que respeitassem
quando se tratava de mim mesmo. Não me incomodo em revelar toda a minha
hipocrisia, afinal de contas, sou humano, exatamente como você que lê essa
carta que escrevo já com um pé na cova.
Nunca cometi nenhum tipo de crime, não sou um assassino ou um ladrão, só um mero violador das regras, principalmente das regras morais. Já na faculdade aprendi uma palavra que acho que se encaixa perfeitamente a mim: subversivo. Adoro a subversão. Penso que se tivesse nascido em momentos de conservadorismo puro na sociedade, não teria passado da adolescência. Na Idade Média teria sido queimado pela Inquisição, sem dúvidas. Se fosse na Ditadura Militar, tenho certeza que os coxinhas teriam tido um prazer imenso em me torturar, matar e depois me jogar no Tietê ou na Guarapiranga. Sorte minha que vivi em tempos de FHC e Lula, embora tenham um tal Bolsonaro por aí que, certamente, adoraria me ver num caixão, completamente inanimado. Em breve, amigo Anticristo, em breve.
Quando
escolhi ser escritor, sabia que estava escolhendo um caminho difícil,
complicado, e, confesso, mal saí vivo dele. Mas você não tem a menor ideia de
como valeu a pena seguir esse caminho, meu amigo. Eu passei por coisas que apenas
um espírito livre, tal como sou, teria passado. Participei de orgias incontáveis,
tomei os pileques mais homéricos que se pode imaginar, andei sozinho, bêbado,
pelas madrugadas frias de São Paulo mais vezes do que gostaria de admitir.
Conheci as mais belas mulheres e os mais fortes homens, descobri, sem surpresa,
que heróis também choram. E que, na verdade, eles não gostariam de ser heróis.
Conheci assassinos, ladrões, pobres coitados do mundo que andam pelas margens e
quando você os vê na rua, atravessa para não passar ao lado. Todos eles sabem
disso, não adianta disfarçar. Eles sabem que você atravessou porque são pretos,
porque acham que pretos roubam e matam, como se nós brancos não fizéssemos
isso. O que podemos dizer sobre o Holocausto? Sobre a Ditadura? O que podemos
dizer, meus amigos caucasianos? Somos uns verdadeiros hipócritas, todos uns
sem-vergonhas arrombados. É isso que somos.
“Quanta
raiva”, você deve estar pensando. Disse que colocaria tudo para fora, a raiva
vem junto, ou você pode afirmar que não sente raiva? Aposto que sente, muito
mais que eu, mas se preocupa tanto em ser perfeito e praticar esse tal “deboísmo”
que não consegue colocar isso para fora. Azar o seu. De qualquer forma, vou
morrer em algumas horas. Outro dia estava lendo um livro de Clarice Lispector,
chama-se A Paixão Segundo G.H
e em certo ponto a tal G.H tem uma enorme epifania por causa de uma barata. As pessoas
acham isso muito estranho, eu não. Acho isso muito normal, muito mesmo. A tal
das iniciais pensava muito mais que a média das pessoas. Sei que ela era a
própria Clarice de alguma forma. Sempre somos aquilo que escrevemos de alguma
maneira. Não há nenhum texto ou obra de arte que não seja pelo menos 1%
autobiográfico. Seu post no Facebook é autobiográfico, é a autobiografia da
merda de vida que leva. Mas, voltando à barata: a tal da G.H ficou muito triste
por ter acabado com a vida daquele ser, se eu bem me lembro era isso. Incrível,
porque nós não temos a menor compaixão com os outros seres humanos. Rousseau
estava realmente delirando quando escreveu que naturalmente o homem possuía
compaixão...talvez o filho da puta do Hobbes estivesse mais certo falando do
egoísmo do ser humano. Uma merda de egoísmo. O que? Não entendi... você está dizendo que
não é egoísta? Faz esse moribundo rir, meu amigo. Você é um merda egoísta.
Entenda isso: todos somos, e eu não me excluo disso.
Vou
contar pra vocês, finalmente, porque vou morrer. Faz algum tempo resolvi ir à
uma festa no meio da semana, cheguei no apartamento e a coisa já estava pegando
fogo, uma verdadeira suruba. Não tinha o que fazer senão me jogar ali e
aproveitar os prazeres da carne. Transei com não sei quantas pessoas naquela
noite, tudo sem capa. Aconteceu o que aconteceria com qualquer desgraçado:
contraí o HIV e é por isso que estou morrendo. Me recusei terminantemente a
tomar o tal do coquetel. Sou livre, então não me julgue. Talvez se não tivesse
ido fazer um exame de sangue de rotina, não teria descoberto minha condição e
poderia ter vivido mais algum tempo, porque essas coisas nos matam só depois
que as descobrimos. Mas como eu sei que vou morrer? Nós sabemos quando vamos
morrer. Vocês já assistiram Peixe Grande de Tim Burton? Nesse filme tem uma velha
bruxa caolha, acontece que se você olha no olho que está “faltando”, consegue
ver como vai morrer. Em algum sonho, há muito tempo atrás, eu vi como ia
morrer. Sei que é assim que o primeiro raio de sol socar minha cara. Falta
pouco.
No
final das contas, não me arrependo de nada. Gostei da minha vida. Tive a sorte
de ter bons pais, bons amigos, bons professores. Tudo chega ao final, a morte
não me assusta... Para mim ela é o “último inimigo que há de ser aniquilado”,
isso quem escreveu foi J.K Rowling, e eu roubei mesmo. Roubei pra mim, porque
algumas coisas nós roubamos... às vezes é assim que vivemos, roubando ideias.
Roubando pensamentos e sonhos. Vou morrer, ninguém vai roubar meus sonhos. Sei
que Tiago e Rafael estão completamente arrasados com minha morte iminente. Por
isso resolvi escrever isso, para deixar de presente para eles. Gostaria que os
dois soubessem que minha vida valeu a pena pelas risadas que compartilhamos e pelas
brigas que tivemos. Vida nenhuma teria sido tão boa sem os dois ao meu lado e
Os dedos pararam. Um último fôlego veio e nesse meio tempo
Mário soube que o sonho estava certo, ele morreria daquela forma. O vírus tinha
abaixado sua imunidade violentamente nos últimos dias. Ele sentia o hálito
gelado da morte que se aproximava, nos últimos dias relembrou os melhores
momentos de sua vida, ouviu suas músicas preferidas, releu os livros que mais
gostou, comeu as comidas que mais apreciava, mas só deixou para deixar-se no
mundo nos últimos instantes, não foram suficientes. Não seriam de qualquer
forma. Palavras nunca são suficientes para falar de uma pessoa, de um ser vivo,
de alguém que respira, pensa e está no mundo pertence a ele, mesmo que ache que
não. Mário pertenceu. O velório foi quieto, discreto, como ele gostaria que
fosse. Tiago e Rafael comentaram que estava tudo bem pois sua mãe já havia
morrido e era a única coisa que ele realmente queria, que fosse antes de sua
própria mãe. Na lápide, o epitáfio escolhido foi: “Bem no fundo de seu coração
rebelde”.

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