quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Morte Súbita


"(...) No fundo desejava uma vida que havia vislumbrado, mas jamais experimentara. No entanto, essa mesma vida desejada o assustava. Escolher é algo perigoso: quando escolhemos, temos que abrir mão de todas as outras possibilidades". (Morte Súbita, página 436).




Às vezes demoramos tempo demais para terminarmos coisas que deveríamos ter feito assim que tivemos a oportunidade. Não é a primeira vez que tenho o sentimento de: “por que eu não li esse livro antes?”, e aí eu me lembro que provavelmente porque eu não estava pronto pra ele.

Para quem me conhece não é nenhuma novidade que só me tornei um leitor porque nasci na época exata para que isso acontecesse: faço parte – e com muito orgulho – da geração Harry Potter. J.K Rowling fez algo que ninguém mais poderia ser capaz de fazer no final dos anos 90’ e começo dos anos 00’, transformou uma geração inteira em leitores e mergulhou essas crianças em um mundo de magia que nunca tinha sido visto antes. Eu agradeço muito à Jo Rowling.

Em 2012 eu estava no meio de um crescimento intelectual quase que eterno, ainda não me interessava muito pelas questões políticas e sociais do mundo. Isso só iria me atingir um ano depois quando começasse a lecionar no Estado de São Paulo. Quando comecei a ler o primeiro livro pós-Hogwarts de Rowling, logo o abandonei. Morte Súbita (The Casual Vacancy) me pareceu um livro parado, o típico romance inglês que deve ser lido acompanhado de um chá e que, certamente, me levaria à cura da insônia. Acrescente a isso as críticas nada inspiradoras disparadas pelos críticos. Não prenderia a atenção de um jovem adulto Diego de forma nenhuma.

Precisamos passar por certas experiências para que outras coisas passem a fazer algum sentido em nossas vidas. Foi assim comigo e Morte Súbita. Resolvi que retomaria a leitura e que terminaria o livro de minha ídola dessa vez. Foi o que fiz. E foi tudo completamente diferente. Hoje eu vejo que quem leu inteiro e não gostou foi porque se sentiu profundamente criticado. Vi em alguma entrevista da autora que para criar os Dursley para Harry Potter ela teria se inspirado no tipo de pessoa que menos gosta: os conservadores. Imagine agora um vilarejo repleto de Dursleys. É aí que acaba as semelhanças com o mundo dos trouxas, apresentado anteriormente (a não ser, talvez, pela semelhança entre os nomes Barry Fairbrother e Harry Potter). Não adianta que ninguém procure algo de magia nesse livro, não vai encontrar. Pelo contrário, durante as 501 páginas, esbarramos na mais pura realidade do mundo.



Sim, senhores, a realidade é política. A realidade é sim a luta de classes e quem não vê isso é porque está muito confortável no seu mundinho de pequenos luxos e prazeres ou porque simplesmente é egoísta de mais para admitir que existem problemas maiores do que os seus próprios. A história se passa no vilarejo fictício chamado de Pagford e a narrativa começa com a morte de um dos conselheiros do vilarejo, Barry Fairbrother. Esse homem tentava defender um bairro de classe baixa que ficava sob a jurisdição de Pagford, Fields, ao passo que a classe média-alta de Pagford acreditava que esse bairro deveria ficar sob a competência da cidade vizinha: Yarvil.

No meio disso tudo, uma luta política acirrada acontece, a clara luta entre a esquerda e a direita se desenvolve entre a mesquinhez completa da classe média. Suas preocupações medíocres e egocêntricas que deixam de lado todo o resto do mundo são os principais alvos de J.K Rowling. É como se a Rua dos Alfeneiros tivesse se multiplicado e formado esse pequeno vilarejo. A maior parte dos personagens são o retrato real de tudo o que vemos hoje no Brasil e no mundo: o ódio e o desprezo por tudo aquilo que é feio e sujo, tudo aquilo que é deixado à margem. As pessoas que não se encaixam num certo padrão de vida ou que acabam caindo nas garras das drogas ou do crime fazem isso por uma escolha lúcida e certeira e, por isso, são culpadas pelos dramas de suas vidas. Quem vai salvar a pátria? Claro, o homem machista, heterossexual e branco que representa toda a moralidade de São Paulo... Digo, de Pagford.

Alguns trechos do livro me deixaram com uma vontade doentia de vomitar, outras me revoltaram ainda mais, enquanto algumas outras me pareceram muito familiares, ao ponto de me assustar tamanha a familiaridade.



Não, Morte Súbita não é um livro ruim. Muito pelo contrário, é um livro que prova que algumas pessoas não esquecem de onde vieram e dos verdadeiros problemas que passaram (para os que não sabem, Rowling comeu o pão que o diabo amassou antes de publicar A Pedra Filosofal), algumas pessoas possuem um sentimento que falta a maioria da população do nosso tempo: empatia. O livro é trágico, triste. Completamente para baixo, não tem absolutamente nada de feliz sobre essa história, a felicidade dela está na sua reflexão sobre o que fazer em seguida. Alguns personagens concentram toda a humanidade da história: a marginalizada Krystal e seu irmão Robbin, a assistente social Kay, o adolescente com a cara cheia de acne, Andrew, a orientadora educacional Tessa, a excluída Sukhvinder. Mas, a humanidade maior de todo o livro está no fato da morte de Barry Fairbrother e não necessariamente no próprio, mas no que ele criou.

Repito: se você leu Morte Súbita e não gostou, diria que você ou não está pronto – como eu não estava – ou se sentiu completamente criticado e teve seu orgulho ferido pela dura realidade jogada bem no meio da sua cara.Quanto à essa realidade: pense no bebê sírio encontrado numa praia da Turquia, está tudo em Morte Súbita. Se você, mesmo assim, ainda acha que o Capitalismo e essa onda conservador absurda são o caminho correto. Amigo, você é um babaca.


PS: A minissérie produzida pela BBC em três capítulos é bem diferente do livro, alguns personagens são excluídos e uma boa parte da história suprimida. Acredito que tenha sido excluída a parte principal de toda a trama: a crítica social. Enquanto série de entretenimento, é muito boa, enquanto adaptação, muito pobre.

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