domingo, 20 de setembro de 2015

"O Tempo e o Vento - O Continente, vol. 1"



"Noite de vento, noite de mortos..."

 

Quando pequeno, por volta dos dez ou onze anos, minha época preferida da História do Brasil era uma que pouco nos era ensinada nas escolas de São Paulo, tratava-se da maior Guerra em território brasileiro: a Guerra dos Farrapos. Não sabia muito bem os motivos de gostar de ouvir falar naquilo, talvez fosse a Indústria Cultural tomando conta de mim quando era transmitida pela primeira vez A Casa das Sete Mulheres. Cresci e outras coisas tornaram-se mais importantes de serem estudadas, veio a Filosofia e sua abstração, veio o marxismo dando-me socos no estômago. Saí do arroz e feijão que Harry Potter representava para mim e alcei voos mais altos nos campos da Literatura.

Foi só recentemente que o peso na consciência de conhecer alguns clássicos da Literatura Britânica ou Americana sem conhecer alguns dos nossos mais importantes, tomou conta de mim e resolvi, aos poucos, resolver esse problema. Eis que se apresenta a mim um projeto: o Lendo o Tempo e o Vento do canal da querida Tatiana Feltrin no YouTube. Sete volumes de uma trilogia escrita por Erico Veríssimo sobre a formação do Sul do país. Me perguntei: por que não? A pergunta foi retórica, eu sabia a resposta: porque eu tenho vinte aulas por semana, porque estou começando um Mestrado, porque preciso ter uma vida. Mas sou teimoso o bastante para ir em frente com esses desafios, foi o que fiz. Em pouco mais de uma semana, devorei o primeiro volume de O Tempo e o Vento, chamado de O Continente, volume 1.

Cléo Pires como Ana Terra na adaptação cinematográfica de 2013.


Nesse primeiro tomo, Veríssimo nos apresenta às origens do clã Terra-Cambará. Vemos crescer o mestiço de índio e castelhano Pedro Missioneiro, vemos sua chegada à estância de Maneco Terra, onde Pedro, ferido, é acolhido pela família de estancieiros. A filha, Ana Terra, logo se apaixona pelo índio. O amor é recíproco e gera um filho, uma desonra, e uma morte. Aqui o que me chamou a atenção foi a representação dos costumes e da moral da época – que infelizmente ainda está presente nos dias de hoje. O velho Maneco Terra perde a cabeça ao ver sua única filha desonrada, manda que seus dois filhos matem Pedro. Diante disso, Ana Terra suporta a amargura do pai, tem o filho a quem chama de Pedro. Vê a mãe morrer, vê a estância destruída, o pai e o irmão sendo mortos, passa por um estupro coletivo e ainda tem condições de levantar-se, criar o filho, sumir dali e recomeçar sua vida. Meu amor pela personagem foi quase que imediato. Um amor meio agridoce, mas um amor. Ana muda-se para um recém fundado povoado chamado Santa Fé sob o domínio do Coronel Ricardo Amaral, e ali vê sua família se desdobrar. Pedro se casa e tem mais dois filhos: Juvenal e Bibiana. Ana Terra se transforma na parteira do povoado e tem uma vida feliz, apesar de ver seu filho ir para a guerra por duas vezes, mas sempre voltar vivo. 

                                      Marjorie Estiano como Bibiana na adaptação cinematográfica de 2013.

Bibiana cresce à sombra de sua avó, aprende com ela diversas coisas, mas principalmente que a sina das mulheres é de esperar, esperar, esperar. Sempre esperando pelo marido, pelo filho. Esperando por algo que volta, mas que parece não ser o bastante. Ana morre já anciã. Bibiana é sua continuação (duas vezes Ana), cresce e torna-se uma bela mulher. Até que um dia, no pacato e pacífico povoado de Santa Fé, o Vento traz um certo Capitão Rodrigo Cambará. E aqui, senhoras e senhores, é que a história começa de verdade.
Rodrigo é o típico homem do início do século XIX, sim, tem um discurso machista, é um mulherengo de marca maior, mas é aquilo que todo ser humano gostaria de ser: um espírito livre. E por ser esse espírito livre, não é hipócrita. Peço licença para expressar minha mais humilde opinião sobre o personagem: ele é o melhor personagem masculino que já esbarrei por aí. Meu amor por Ana Terra foi agridoce, mas meu amor instantâneo pelo querido Capitão Rodrigo foi simplesmente doce.

Como disse, há discursos extremamente machistas que saem da boca do Capitão, vocês podem alegar minha hipocrisia. Não, de forma alguma. Entende-se o contexto, o rapaz não estava assim tão livre dos discursos sociais impostos. A virilidade e a masculinidade são até hoje elementos essenciais da construção da sociedade, como não seria em meados do século XIX? Considerado isso, não peço desculpas por amar Rodrigo. Logo em sua primeira fala ele já conquista o leitor, porque é despojado e espontâneo, tem aquele tipo de sorriso que simplesmente te derruba (tanto que foi interpretado por Tracísio Meira e Thiago Lacerda em suas adaptações). Claro, nosso bonvivan apaixona-se à primeira vista por Bibiana quando a encontra no cemitério, no dia de Finados quando está levando flores ao túmulo de sua avó. Nada nessa cena parece por acaso. Depois de algumas idas e vindas, de um duelo aqui e outro ali, um pulmão perfurado, os dois acabam por casar-se. Bibiana tem três filhos: Bolívar (exatamente isso que você leu), Anita e Leonor. 

                                Thiago Lacerda como Capitão Rodrigo na adaptação cinematográfica de 2013.

Em certo momento, eclode a Revolução Farroupilha e nosso querido Capitão parte para se unir às forças de Bento Gonçalves que quer separar o Rio Grande do Brasil e declara a Independência Rio-grandensse. E Bibiana espera... Espera, espera. Tal como sua vó. Ela espera. Não reclama, não diz, apenas espera. Mas é forte, muito forte. Duas vezes mais forte que Ana Terra, e é a outra personagem pela qual me apaixonei, mas com ela, o amor vai se desenvolvendo ao passar das palavras.

Em suma, o primeiro volume de O Tempo e o Vento é um início digno de uma obra completa, se tudo acabasse por ali, eu não teria problemas com isso. O clássico estava feito, estava tudo pronto. Mas vamos seguir... descobrir o que acontece no Sobrado que visitamos paralelamente às vidas de Ana Terra e sua família, onde Bibiana já muito velha espera mais uma guerra terminar em 1895, a guerra que levou à consolidação da República no Brasil. Espero que a cada volume possa escrever algo sobre. Não me coloquei nenhum limite para ler esses livros, mas estou sempre um livro atrasado em relação ao TinyLittle Things. Mas, vamos que vamos! Aproveitar essa falta de vento e esse calor que está perdido aqui por São Paulo em meio ao inverno para sentir o Vento de outros lugares e esperar o Tempo passar.

domingo, 6 de setembro de 2015

Coração Rebelde


Ao Alex e ao Balão, por serem corações rebeldes.

Mário se sentou em frente à escrivaninha, ali havia apenas papel e caneta, nada mais. Era preciso colocar muita coisa para fora, era preciso fazer isso como se não houvesse amanhã, como se aquela fosse sua última chance e como se fosse morrer amanhã. Pois na verdade, ele morreria amanhã. Ao primeiro raio de sol, seria seu fim. Como um vampiro, se transformaria em pó, seu coração pararia, seu cérebro não mais funcionaria, seus olhos não mais veriam, nem seus ouvidos escutariam, sua voz jamais seria ouvida outra vez. Ele coçou os olhos, suspirou, empunhou a caneta Bic como se fosse uma espada e aquela fosse sua última batalha. Foi como se tudo saísse muito naturalmente.


Me chamo Mário, tenho vinte e cinco anos e minha vida termina amanhã. Não preciso explicar sobre minha morte, mas sobre minha vida. Fico pensando se posso considerar essa uma memória póstuma, assim como foi a de Brás Cubas, se sou um defunto-autor ou se simplesmente sou uma pessoa que em breve será defunto. Deixo nessa carta – nenhum grande livro, pois minha vida não se estende tanto assim – tudo o que quero deixar. Tudo o que preciso colocar para fora mais que qualquer outra coisa.

Há quem diga que fui sempre uma pessoa horrível, eu entendo quem diz isso. Pois, afinal de contas, sempre fui avesso às leis e à moralidade. Sempre gostei de fazer as coisas do meu jeito, como me parecia certo e de nenhuma outra forma. Desde pequeno imagino ter infernizado meus pais, era uma criança complicada e teimosa, não obedecia aos adultos, se me mandassem não colocar o dedo na tomada era isso mesmo que eu faria, colocaria meu pobre e pequeno dedo ali, só para desafiar os adultos. Meus professores diziam que eu tinha um desrespeito crônico às hierarquias, que não tinha respeito nenhum com a ordem. Eles estavam certos, nunca tive essa preocupação.


Quando era adolescente, disse a meus pais que queria ser escritor. Meu pai me dizia que eu era louco, que deveria ser mais parecido com os outros garotos da minha idade, que deveria estar interessado em perder a virgindade e não em estudar ou ler livros que ele considerava inúteis. Meu pai não me conhecia, mal sabia que naquela época minha inspiração maior era a Geração Beat, Jack Kerouac e Allan Ginsberg, portanto, seria quase uma enorme contradição se ainda fosse virgem. Provei tudo o que me deu vontade, meninos e meninas... Dizia Renato Russo que gostava de meninos e meninas e eu também. Aliás, sempre gostei muito de Renato Russo, ele sempre foi uma daquelas imagens difusas e perturbadas em minha imaginação. Eu o fiz como um personagem de um romance russo, provavelmente por causa de Pais e Filhos de Turgunièv, eu poderia colocá-lo em qualquer história de Dostoiévski ou Sartre sem problemas. Eu tinha nele uma obsessão, uma vontade de ser igual.

Meus melhores amigos são Tiago e Rafael, desde o jardim de infância fomos inseparáveis. Eu sempre tentei estar por cima deles, ser uma espécie de líder de uma matilha de lobos arruaceiros que éramos. Crescemos fazendo as piores façanhas juntos, mas eu sempre levei a culpa, mesmo quando ela não era minha. Certa vez, Rafael perdeu a cabeça com uma menina que havia xingado sua mãe – devíamos ter por volta dos quatorze anos -  e acabou torcendo tanto o braço da dita cuja que o quebrou, eu assumi a culpa sem pestanejar. Talvez, isso fosse uma questão de manter a hierarquia... A mesma que eu não respeitava de forma nenhuma, mas queria que respeitassem quando se tratava de mim mesmo. Não me incomodo em revelar toda a minha hipocrisia, afinal de contas, sou humano, exatamente como você que lê essa carta que escrevo já com um pé na cova.

Nunca cometi nenhum tipo de crime, não sou um assassino ou um ladrão, só um mero violador das regras, principalmente das regras morais. Já na faculdade aprendi uma palavra que acho que se encaixa perfeitamente a mim: subversivo. Adoro a subversão. Penso que se tivesse nascido em momentos de conservadorismo puro na sociedade, não teria passado da adolescência. Na Idade Média teria sido queimado pela Inquisição, sem dúvidas. Se fosse na Ditadura Militar, tenho certeza que os coxinhas teriam tido um prazer imenso em me torturar, matar e depois me jogar no Tietê ou na Guarapiranga. Sorte minha que vivi em tempos de FHC e Lula, embora tenham um tal Bolsonaro por aí que, certamente, adoraria me ver num caixão, completamente inanimado. Em breve, amigo Anticristo, em breve.

Quando escolhi ser escritor, sabia que estava escolhendo um caminho difícil, complicado, e, confesso, mal saí vivo dele. Mas você não tem a menor ideia de como valeu a pena seguir esse caminho, meu amigo. Eu passei por coisas que apenas um espírito livre, tal como sou, teria passado. Participei de orgias incontáveis, tomei os pileques mais homéricos que se pode imaginar, andei sozinho, bêbado, pelas madrugadas frias de São Paulo mais vezes do que gostaria de admitir. Conheci as mais belas mulheres e os mais fortes homens, descobri, sem surpresa, que heróis também choram. E que, na verdade, eles não gostariam de ser heróis. Conheci assassinos, ladrões, pobres coitados do mundo que andam pelas margens e quando você os vê na rua, atravessa para não passar ao lado. Todos eles sabem disso, não adianta disfarçar. Eles sabem que você atravessou porque são pretos, porque acham que pretos roubam e matam, como se nós brancos não fizéssemos isso. O que podemos dizer sobre o Holocausto? Sobre a Ditadura? O que podemos dizer, meus amigos caucasianos? Somos uns verdadeiros hipócritas, todos uns sem-vergonhas arrombados. É isso que somos.

“Quanta raiva”, você deve estar pensando. Disse que colocaria tudo para fora, a raiva vem junto, ou você pode afirmar que não sente raiva? Aposto que sente, muito mais que eu, mas se preocupa tanto em ser perfeito e praticar esse tal “deboísmo” que não consegue colocar isso para fora. Azar o seu. De qualquer forma, vou morrer em algumas horas. Outro dia estava lendo um livro de Clarice Lispector, chama-se A Paixão Segundo G.H e em certo ponto a tal G.H tem uma enorme epifania por causa de uma barata. As pessoas acham isso muito estranho, eu não. Acho isso muito normal, muito mesmo. A tal das iniciais pensava muito mais que a média das pessoas. Sei que ela era a própria Clarice de alguma forma. Sempre somos aquilo que escrevemos de alguma maneira. Não há nenhum texto ou obra de arte que não seja pelo menos 1% autobiográfico. Seu post no Facebook é autobiográfico, é a autobiografia da merda de vida que leva. Mas, voltando à barata: a tal da G.H ficou muito triste por ter acabado com a vida daquele ser, se eu bem me lembro era isso. Incrível, porque nós não temos a menor compaixão com os outros seres humanos. Rousseau estava realmente delirando quando escreveu que naturalmente o homem possuía compaixão...talvez o filho da puta do Hobbes estivesse mais certo falando do egoísmo do ser humano. Uma merda de egoísmo.  O que? Não entendi... você está dizendo que não é egoísta? Faz esse moribundo rir, meu amigo. Você é um merda egoísta.
Entenda isso: todos somos, e eu não me excluo disso.

Vou contar pra vocês, finalmente, porque vou morrer. Faz algum tempo resolvi ir à uma festa no meio da semana, cheguei no apartamento e a coisa já estava pegando fogo, uma verdadeira suruba. Não tinha o que fazer senão me jogar ali e aproveitar os prazeres da carne. Transei com não sei quantas pessoas naquela noite, tudo sem capa. Aconteceu o que aconteceria com qualquer desgraçado: contraí o HIV e é por isso que estou morrendo. Me recusei terminantemente a tomar o tal do coquetel. Sou livre, então não me julgue. Talvez se não tivesse ido fazer um exame de sangue de rotina, não teria descoberto minha condição e poderia ter vivido mais algum tempo, porque essas coisas nos matam só depois que as descobrimos. Mas como eu sei que vou morrer? Nós sabemos quando vamos morrer. Vocês já assistiram Peixe Grande de Tim Burton? Nesse filme tem uma velha bruxa caolha, acontece que se você olha no olho que está “faltando”, consegue ver como vai morrer. Em algum sonho, há muito tempo atrás, eu vi como ia morrer. Sei que é assim que o primeiro raio de sol socar minha cara. Falta pouco.

No final das contas, não me arrependo de nada. Gostei da minha vida. Tive a sorte de ter bons pais, bons amigos, bons professores. Tudo chega ao final, a morte não me assusta... Para mim ela é o “último inimigo que há de ser aniquilado”, isso quem escreveu foi J.K Rowling, e eu roubei mesmo. Roubei pra mim, porque algumas coisas nós roubamos... às vezes é assim que vivemos, roubando ideias. Roubando pensamentos e sonhos. Vou morrer, ninguém vai roubar meus sonhos. Sei que Tiago e Rafael estão completamente arrasados com minha morte iminente. Por isso resolvi escrever isso, para deixar de presente para eles. Gostaria que os dois soubessem que minha vida valeu a pena pelas risadas que compartilhamos e pelas brigas que tivemos. Vida nenhuma teria sido tão boa sem os dois ao meu lado e


Os dedos pararam. Um último fôlego veio e nesse meio tempo Mário soube que o sonho estava certo, ele morreria daquela forma. O vírus tinha abaixado sua imunidade violentamente nos últimos dias. Ele sentia o hálito gelado da morte que se aproximava, nos últimos dias relembrou os melhores momentos de sua vida, ouviu suas músicas preferidas, releu os livros que mais gostou, comeu as comidas que mais apreciava, mas só deixou para deixar-se no mundo nos últimos instantes, não foram suficientes. Não seriam de qualquer forma. Palavras nunca são suficientes para falar de uma pessoa, de um ser vivo, de alguém que respira, pensa e está no mundo pertence a ele, mesmo que ache que não. Mário pertenceu. O velório foi quieto, discreto, como ele gostaria que fosse. Tiago e Rafael comentaram que estava tudo bem pois sua mãe já havia morrido e era a única coisa que ele realmente queria, que fosse antes de sua própria mãe. Na lápide, o epitáfio escolhido foi: “Bem no fundo de seu coração rebelde”. 

sexta-feira, 4 de setembro de 2015

"Naked"


"This angel's dirty face is sore holding on to what she had before, not sharing secrets with any old fool, she's gonna keep her cool, she wants to get naked..."

Fazia muito calor e as pessoas preferiam ficar nas estreitas calçadas da Rua Augusta ao invés de dentro dos bares, elas deixavam as garrafas de cerveja no chão, aos seus pés, e seguravam seus copos enquanto bebiam e conversavam animadamente graças ao efeito do álcool. Diversos tipos de música se misturavam e diversos tipos de pessoas também. Quanto mais se descia a rua, mais as placas neon iam aparecendo, o “Casarão”, o “Caribe”, o “Castelo”, todos conheciam aqueles lugares por sua fama. Na frente, moças com corpos curvados, mas mal tratadas pela vida, ficavam tentando atrair clientes. Ali, entre essas casas de entretenimento masculino, encostada numa parede, um pouco esquecida, mas muito mais chamativa do que todas as outras, estava Ester. Tinha os cabelos mais bem tratado do que de suas colegas, grandes olhos azuis e uma pele branca, sem nenhuma marca. Constantemente era alvo de fofocas e intrigas entre as mais velhas, afinal, ela tinha apenas dezoito anos e chegara à São Paulo procurando uma vida nova, ela como tantas outras haviam descoberto que a vida que lhes esperava era muito mais sofrida do que se poderia imaginar.

-Quantos anos você tem, meu bem? – Perguntou Cassandra, a velha cafetina daquela zona específica.

-Dezoito anos, senhora. – Respondeu a jovem Ester com um sotaque arretado vindo da Bahia.

-E veio de onde, pequena?

-Salvador, senhora.

-E o que fazia lá?

-Nada não... morava com maínha, mas ela faleceu.

-Pobrezinha. – Não havia nem sina de pena em sua voz. – E seu pai?

-Não sei dele não, senhora.

-Certo... – Cassandra fez Ester dar uma voltinha, ela chegara mirrada e sem carnes ali, algumas boas refeições resolveriam aquilo rapidinho. A menina provavelmente era virgem, assim que tivesse seu primeiro cliente, seu corpo se desenvolveria mais rápido. – Vai servir, minha filha. Vai ficar com a Sheila, quarto cinco. Pode subir.

Ester subiu as escadas assustada, segurava em uma das mãos uma pequena mala velha que tinha em casa, dentro dela, num fundo falso, o pouco dinheiro que sua mãe lhe deixara no banco. Toda vez que pensava em sua mãe morrendo em casa, sem ninguém para ajudar, seu coração parecia quebrar em um milhão de pedacinhos, a dor era muita. Quando entrou no pequeno quarto olhou em volta e viu um único guarda-roupa, um beliche, uma janela sem cortinas, a parede descascada e deitada na cama de cima uma mulher chegando nos seus trinta anos, com a maquiagem borrada, fumava um cigarro e soltava a fumaça no teto como se fosse a Lagarta de Alice no País das Maravilhas, mas sem fazer as formas em círculo.

-Quem é você? – Perguntou ela olhando fixamente para Ester que notou que a mulher tinha olhos azuis muito tristes e profundos, pensou ela.

-Sou Ester... vou ficar aqui. – Ester respondeu muito tímida com a cabeça baixa, olhando fixamente para um taco solto no chão.

-Aquela velha filha da puta não tem vergonha na cara mesmo. – A mulher desceu do beliche e se aproximou lentamente de Ester dando mais um trago no cigarro. – Quantos anos você tem, pequena?

-Dezessete...

-E ela te deixou entrar aqui com essa idade? – Ela parecia realmente furiosa.

-Não dona... eu disse pra senhorinha lá de baixo que tinha dezoito completos já... não é culpa dela não, visse?

A mulher com a sombra verde toda borrada que combinava com os olhos, olhou fixamente para Ester. A menina pensou que ela tinha os olhos mais tristes que já vira em toda a sua vida, mal sabia que também aprenderia a olhar daquele jeito em breve.

-Me chamo Sheila. – Ela disse por fim. – Seja bem-vinda. A cama de cima é minha... to vendo que você não tem lá muita coisa nessa malinha aí, né? Pode dobrar suas roupas e deixar numa gaveta do guarda-roupas, provavelmente não vão servir por muito tempo, mesmo.

-Obrigado senhora.

-Senhora tá no céu, minha filha e isso aqui é inferno.

Ester descobriria que Sheila estava certa, descobriria que aquilo era uma representação muito próxima do que ela ouvira o Padre dizer muitas vezes na Bahia. A única coisa diferente é que ali era muito frio, o inferno devia ser quente. Devia ser muito quente, como a Bahia no alto verão.

Quando o sol se pôs, Cassandra entrou no quarto sem bater e acordou Ester que dormia profundamente enquanto Sheila lia alguma revista.

-Vamos lá, menina. Tem que se arrumar. – Disse Cassandra chacoalhando a pequena e mirrada menina na cama. – Tempo é dinheiro. Sheila, dá um jeito nessa pobre coitada que se sair assim pra zona, ninguém vai querer nem um boquete.

-Vai se foder, Cassandra. Sai fora. – Sheila parecia muito mais forte que a velha Cassandra, mas a cafetina tinha um olhar esmagador.

-Se não conseguir uns trocados hoje, te corto a cabeça, vadia. – Disse ela sem se dirigir a nenhuma das duas especificamente e batendo a porta atrás de si.

-Essa bruxa velha...

-Ela é muito má. – Ester disse isso como se fosse algo novo, como se tivesse descoberto o Brasil.

-Ela é uma mal-comida do caralho. Vem aqui pequena... tenho que passar uma maquiagem nessa sua cara.

Quando se olhou no espelho, a menina não se reconheceu, parecia ter pelo menos cinco anos a mais com a cara toda pintada daquela forma. O batom vermelho lembrava-a daquelas rosas que via nos filmes da televisão, mas que nunca tinha visto ao vivo. Usava um vestido que já não cabia mais em Sheila, era de um tecido brilhante e gelado, e todo verde, muito curto. Usava uns saltos da mesma cor (por sorte, calçava o mesmo número que a companheira de quarto). Ela cambaleava naquele salto e andava feito uma pequena palhacinha, disse Sheila. Mas ela se acostumaria... ela se acostumaria com tudo aquilo.

O primeiro cliente não tardou a aparecer, elas estavam paradas um pouco afastadas uma da outra quando um carro muito luxuoso e brilhante parou bem na frente das duas, Sheila foi conversar com o motorista e lançou um olhar preocupado para Ester depois que o homem ainda sem rosto disse.

-Ester... ele quer você.

O coração da pequena batia três vezes mais rápido, mas ela tirou forças de algum lugar e sorriu. Sorriu como se fosse a coisa mais natural do mundo, como se aquele sorriso fizesse parte dela desde sempre, sorriu como se absolutamente nada tivesse dado errado em sua vida. Ela entrou no carro sem cambalear no salto, viu que o homem devia ter quase sessenta anos, mas não se abalou. Ele a olhou com malicia e colocou a mão nas pernas de Ester, a menina sentiu nojo, muito nojo, mas não demonstrou. Continuou sorrindo e deixou que o homem a levasse. Entraram num Motel barato que cheirava a água sanitária, ou foi o que a menina pensou. Ela não conseguiu nem pensar, quando viu o homem já estava encima dela na cama, beijando seu pescoço, passando uma mão em seus seios e a outra entre suas pernas, quando tocou um pouco mais fundo, parou tudo que estava fazendo, olhou para ela sorrindo e disse:

-É virgem, putinha?

-Tava esperando você. – Ester nunca entendeu de onde tirou forças para dizer aquilo, mas disse. E disse como se realmente tivesse esperado. Aquilo excitou o homem muito mais. Quando ele entrou nela, foi como se algo a estivesse rasgando violentamente, ele colocava e tirava rápido e forte, Ester sentia muita dor, mas fingiu um prazer que mulher nenhuma sentiria.

Quando voltou para o pequeno quarto na rua Augusta, Sheila já dormia na cama de cima, ela tomou um banho longo e deixou que as lágrimas escorressem com a água do chuveiro. Olhou-se no espelho e viu o rosto de um anjo sujo que se apoiava numa vida que não mais voltaria, uma vida que não mais existiria. Jamais voltaria, morrera com sua mãe, fora embora com seu pai.

Não demorou muito para que a pequena Ester se transformasse numa mulher com carnes, todas no lugar e na medida, pelo menos ao gosto dos homens que frequentavam aquela zona. Cassandra enriquecia cada vez mais depois da chegada da menina, chamava-a de “minha pequena Alice”, esse tinha se tornado seu nome na rua. Ela o escolheu depois que uma das meninas que moravam naquela pensão caindo aos pedaços, aquela que todos chamavam de “Maria Louca” lhe deu um pequeno livro antigo e quase sem capa, ela já o conhecia, tinha visto um filme e vira o livro em algum momento na escola, chamava-se Alice no País das Maravilhas. Às vezes, Ester sentia-se meio Alice e isso a reconfortava. Todos os homens a queriam e logo ela cresceu, toda sua inocência jogada deixada para trás, sua infância parecia outra vida, a Bahia parecia um mundo completamente a parte. Aquelas luzes de neon passaram a fazer parte de sua vida, ela gostava daquelas nuvens. Gostava de Sheila, gostava da Maria Louca, gostava de seu livro, gostava de São Paulo, gostava de alguns clientes – esses se tornaram fiéis, dinheiro certo -, mas odiava Cassandra com todas as suas forças. Odiava Cassandra pois a velha com sua peruca vermelha, seu cheiro de água de colônia vencida e seu batom vermelho naquela boca enrugada e suja, toda aquela imagem representava a morte de Ester e o nascimento de Alice. E de Alice ela não gostava também, sentia saudades de Ester e, às vezes, quando estava quente e o sol estava se pondo entre os prédios cinzas, pichados e sujos, ela fechava os olhos e fingia estar ouvindo o Olodum de longe, ou vendo as oferendas para Iemanjá. Imaginava que contava toda a dor que a afligia à sua maínha. Mas logo ela tinha que retornar para a realidade e voltava, voltava àquele país das maravilhas.












quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Morte Súbita


"(...) No fundo desejava uma vida que havia vislumbrado, mas jamais experimentara. No entanto, essa mesma vida desejada o assustava. Escolher é algo perigoso: quando escolhemos, temos que abrir mão de todas as outras possibilidades". (Morte Súbita, página 436).




Às vezes demoramos tempo demais para terminarmos coisas que deveríamos ter feito assim que tivemos a oportunidade. Não é a primeira vez que tenho o sentimento de: “por que eu não li esse livro antes?”, e aí eu me lembro que provavelmente porque eu não estava pronto pra ele.

Para quem me conhece não é nenhuma novidade que só me tornei um leitor porque nasci na época exata para que isso acontecesse: faço parte – e com muito orgulho – da geração Harry Potter. J.K Rowling fez algo que ninguém mais poderia ser capaz de fazer no final dos anos 90’ e começo dos anos 00’, transformou uma geração inteira em leitores e mergulhou essas crianças em um mundo de magia que nunca tinha sido visto antes. Eu agradeço muito à Jo Rowling.

Em 2012 eu estava no meio de um crescimento intelectual quase que eterno, ainda não me interessava muito pelas questões políticas e sociais do mundo. Isso só iria me atingir um ano depois quando começasse a lecionar no Estado de São Paulo. Quando comecei a ler o primeiro livro pós-Hogwarts de Rowling, logo o abandonei. Morte Súbita (The Casual Vacancy) me pareceu um livro parado, o típico romance inglês que deve ser lido acompanhado de um chá e que, certamente, me levaria à cura da insônia. Acrescente a isso as críticas nada inspiradoras disparadas pelos críticos. Não prenderia a atenção de um jovem adulto Diego de forma nenhuma.

Precisamos passar por certas experiências para que outras coisas passem a fazer algum sentido em nossas vidas. Foi assim comigo e Morte Súbita. Resolvi que retomaria a leitura e que terminaria o livro de minha ídola dessa vez. Foi o que fiz. E foi tudo completamente diferente. Hoje eu vejo que quem leu inteiro e não gostou foi porque se sentiu profundamente criticado. Vi em alguma entrevista da autora que para criar os Dursley para Harry Potter ela teria se inspirado no tipo de pessoa que menos gosta: os conservadores. Imagine agora um vilarejo repleto de Dursleys. É aí que acaba as semelhanças com o mundo dos trouxas, apresentado anteriormente (a não ser, talvez, pela semelhança entre os nomes Barry Fairbrother e Harry Potter). Não adianta que ninguém procure algo de magia nesse livro, não vai encontrar. Pelo contrário, durante as 501 páginas, esbarramos na mais pura realidade do mundo.



Sim, senhores, a realidade é política. A realidade é sim a luta de classes e quem não vê isso é porque está muito confortável no seu mundinho de pequenos luxos e prazeres ou porque simplesmente é egoísta de mais para admitir que existem problemas maiores do que os seus próprios. A história se passa no vilarejo fictício chamado de Pagford e a narrativa começa com a morte de um dos conselheiros do vilarejo, Barry Fairbrother. Esse homem tentava defender um bairro de classe baixa que ficava sob a jurisdição de Pagford, Fields, ao passo que a classe média-alta de Pagford acreditava que esse bairro deveria ficar sob a competência da cidade vizinha: Yarvil.

No meio disso tudo, uma luta política acirrada acontece, a clara luta entre a esquerda e a direita se desenvolve entre a mesquinhez completa da classe média. Suas preocupações medíocres e egocêntricas que deixam de lado todo o resto do mundo são os principais alvos de J.K Rowling. É como se a Rua dos Alfeneiros tivesse se multiplicado e formado esse pequeno vilarejo. A maior parte dos personagens são o retrato real de tudo o que vemos hoje no Brasil e no mundo: o ódio e o desprezo por tudo aquilo que é feio e sujo, tudo aquilo que é deixado à margem. As pessoas que não se encaixam num certo padrão de vida ou que acabam caindo nas garras das drogas ou do crime fazem isso por uma escolha lúcida e certeira e, por isso, são culpadas pelos dramas de suas vidas. Quem vai salvar a pátria? Claro, o homem machista, heterossexual e branco que representa toda a moralidade de São Paulo... Digo, de Pagford.

Alguns trechos do livro me deixaram com uma vontade doentia de vomitar, outras me revoltaram ainda mais, enquanto algumas outras me pareceram muito familiares, ao ponto de me assustar tamanha a familiaridade.



Não, Morte Súbita não é um livro ruim. Muito pelo contrário, é um livro que prova que algumas pessoas não esquecem de onde vieram e dos verdadeiros problemas que passaram (para os que não sabem, Rowling comeu o pão que o diabo amassou antes de publicar A Pedra Filosofal), algumas pessoas possuem um sentimento que falta a maioria da população do nosso tempo: empatia. O livro é trágico, triste. Completamente para baixo, não tem absolutamente nada de feliz sobre essa história, a felicidade dela está na sua reflexão sobre o que fazer em seguida. Alguns personagens concentram toda a humanidade da história: a marginalizada Krystal e seu irmão Robbin, a assistente social Kay, o adolescente com a cara cheia de acne, Andrew, a orientadora educacional Tessa, a excluída Sukhvinder. Mas, a humanidade maior de todo o livro está no fato da morte de Barry Fairbrother e não necessariamente no próprio, mas no que ele criou.

Repito: se você leu Morte Súbita e não gostou, diria que você ou não está pronto – como eu não estava – ou se sentiu completamente criticado e teve seu orgulho ferido pela dura realidade jogada bem no meio da sua cara.Quanto à essa realidade: pense no bebê sírio encontrado numa praia da Turquia, está tudo em Morte Súbita. Se você, mesmo assim, ainda acha que o Capitalismo e essa onda conservador absurda são o caminho correto. Amigo, você é um babaca.


PS: A minissérie produzida pela BBC em três capítulos é bem diferente do livro, alguns personagens são excluídos e uma boa parte da história suprimida. Acredito que tenha sido excluída a parte principal de toda a trama: a crítica social. Enquanto série de entretenimento, é muito boa, enquanto adaptação, muito pobre.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Dizem... Eu digo...

Dizem por aí que o Capitalismo é o sistema das oportunidades, isso se resumiria no American Dream, dizem que é o único sistema que possibilita que o ser humano possa conquistar suas glórias, coleciona-las ao decorrer da vida, o sistema em que você será, acima de tudo, livre. Dizem, dizem, dizem... Eles não sabem o que dizem, perdoe-nos Jesus.

Escolhi ser professor e quando fiz essa escolha não sabia que amaria minha profissão como amo. Amo dar aula, quando estou dentro de uma sala de aula eu simplesmente faço aquilo que tenho que fazer: produzo pensamentos. Essa, aliás, é o único tipo de produção que o Capitalismo despreza, porque o pensamento pelo pensamento, pela crítica, não é revertido em dinheiro. Ninguém enriquece quando os jovens da periferia estão pensando, pelo contrário, eles tremem. Minha função (e isso deveria estar escrito nas minhas atribuições) é fazer os grandes tremerem.

Ninguém sabe o que é ser professor, a não ser que o seja. Ninguém sabe em quantos nós nos desdobramos. Eu pelo menos me desdobro em 50 se tenho 50 alunos na sala. Aliás, 51, porque tenho que deixar um pra mim. Já cansei de falar como meus alunos são oprimidos, mas e eu? Eu também sou. E muito. Gostaria de compartilhar com todos vocês meu salário para o mês de Setembro:



Sim, é isso mesmo. O valor é R$537, você não leu errado, não tem um número 1 faltando na frente. Isso é o que o professor ganha no Estado de São Paulo, menos que um salário mínimo. Meus alunos esperam algo de mim, da mesma forma que espero deles. Eu tenho a sorte de saber me comunicar com esses jovens e, por isso, eles esperam muito mais de mim do que de meus colegas. Eles esperam que a minha aula seja a melhor aula que eles terão naquele dia, no meio dos escombros de um prédio que chamam de escola. De onde eu tiro as forças para dar a eles o que esperam de mim? Será que o Governador sabe quanto custa uma passagem de ônibus/metrô hoje? Hoje, terça feira, tenho aula nos períodos da manhã e da noite, por isso acabo gastando quatro passagens. Aliás, se não fosse o Bilhete Único Mensal feito pelos “petralhas ladrões”, eu poderia trabalhar apenas duas semanas com esse salário, o resto do mês, não me sobraria dinheiro para ir à padaria.

Estou pensando há vinte e quatro horas se continuo me submetendo à tamanha humilhação por parte do Governo, por parte da sociedade (sim, vocês mesmos que reclamaram da nossa Greve todas as sextas-feiras porque estávamos atrapalhando sua volta para casa na Paulista), o que mais me dói é quando escuto de um aluno excelente um “a aula foi muito boa, professor”, isso é um enorme paradoxo: ao mesmo tempo que é gratificante, é dolorido. Meus alunos, às vezes, me veem como um herói e eu descobri que não quero ser visto como um herói, o que quero é ser valorizado pelo meu estudo, pelo meu esforço. Quero receber o valor que eu dou aos meus alunos. Mas não estamos no sistema mais justo de todos? Eu estudei quatro anos algo que as pessoas veem como um bicho de sete cabeças tamanha a complexidade, tenho dois diplomas (um de Bacharelado e um de Licenciatura), estou para começar um Mestrado numa Universidade Federal e recebo menos que um salário mínimo? Aliás, muitos dos meus alunos que mal conseguem ler e escrever, recebem mais que eu.


O coração parte, mas terminarei o ano e só esse ano. Não pretendo voltar a lecionar no Estado de São Paulo enquanto esse regime de escravidão sobre o professor não terminar. Me recuso enquanto o Governador desse Estado for um mau caráter de marca maior que nos deixa sem água, sem educação, sem dignidade. Me recuso enquanto o povo desse Estado continuar preferindo o carro (ou seja, o próprio umbigo) à água (ou seja, o bem de todos). Sinto pelos que precisam de mim, mas eu não consigo mais continuar.