Nos últimos
anos diversos títulos no mundo da Literatura e Cinema infanto-juvenil têm sido
lançados com um tema em comum: distopias. O boom
se iniciou com o incrível Jogos
Vorazes da norte-americana Suzanne Collins. Na história, os Estados Unidos
agora se chamam Panem e o momento cronológico é incerto. Tudo o que sabemos é
que se passa em algum momento no futuro, um futuro pós-apocalíptico? Pós-guerra?
Que futuro é esse? Essa é uma das questões que as pessoas se esquecem de
perguntar quando da leitura desse – ou de outros – livro.
A questão é que
Jogos Vorazes nada mais é que a ponta
do iceberg, ele não é um livro
revolucionário da literatura infanto-juvenil, ele é apenas uma retomada de um
assunto que não deveria nunca ter sido abandonado (especialmente no solo do tio
Sam). A questão da destruição que o ser humano é capaz de causar por diversos
meios é uma discussão que permeia toda nossa sociedade. Vemos a opressão a cada
esquina, basta prestar atenção.
Mas, não vamos
nos apressar. Em primeiro lugar, vejo muitos adolescentes lendo essa série, ou Divergente, entre tantas outras sem
saber de fato qual o significado da palavra “distopia”. Ora, seria justamente a
utopia que deu errado. Portanto, um estado imaginário onde vive-se em condições
de extrema opressão. É esse cenário que liga todas essas obras... Na verdade,
eu disse que Jogos Vorazes não era
uma obra revolucionária, mas uma retomada. Sim, podemos destacar alguns outros
livros escritos no século XX que são as grandes obras distópicas da humanidade,
das quais, com certeza Collins tirou alguma inspiração.
A primeira
dessas obras lançadas foi a do inglês Aldous Huxley, o livro intitulado Admirável Mundo Novo (Brave New World) lançado em 1932 conta a
história de uma Inglaterra no futuro (mais ou menos pela metade do século XXI),
onde alguns conceitos básicos da humanidade foram transformados. Por exemplo: a
figura de Deus – o deus judaico-cristão, ou as divindades orientais – foi completamente
abolida. Agora, seu Deus é algo mais palpável, representável e provável a
partir da história, e tem um nome: Ford. Sim, Henry Ford que revolucionou a
Indústria ao propor a linha de montagem de forma barata, onde o burguês médio
poderia comprar um carro. O boom da
produção e da ideologia do consumo. A questão em Admirável Mundo Novo é um pouco mais complexa, a linha de montagem
não é de automóveis, mas de seres humanos. Outro conceito modificado então: não
existe mais o núcleo familiar, não existem mais as figuras de pai ou mãe. Os
seres humanos são desenvolvidos em laboratório (ou fábricas, melhor dizendo) e
são, desde sua concepção, divididos em castas e condicionados para estarem
felizes em suas próprias castas. Quando o incontrolável ocorre, ou seja, quando
se pensa na sua condição, quando se questiona seu lugar no mundo, logo o indivíduo
pode deixar essa angústia de lado tomando uma droga chamada “soma” que os
deixam em estado de êxtase quase que instantâneo, afastando toda a dor e
atraindo uma felicidade que durará enquanto houver o “soma”, no melhor estilo epicurista
da questão.
Nesse mundo
novo, existe uma pessoa que “deu errado”, algo em sua produção foi aplicada em
uma dose diferente dos outros de sua casta, essa pessoa, Bernard Marx (tal como
o filósofo Karl Marx), está sempre questionando sua condição e a organização
desse mundo em que vive, além de se recusar a tomar o soma quando está
deprimido. Ao invés disso, ele se pergunta por que está deprimido. É aí que
passa a investir na Beta Lenina (uma versão feminina de Lênin?), porém, no
mundo novo o amor não existe, é um tipo de fraqueza e a monogamia é algo
desprezível e proibido, o correto é que se tenha quantos parceiros sexuais
possíveis – essa sexualidade já é condicionada nos próprios bebês -, assim ele
convida Lenina para passar as férias numa reserva selvagem. Acontece que essa
reserva é onde estão as pessoas que não se encaixam na sociedade, ou seja, as
pessoas primitivas, aquelas que ainda tem um Deus, que ainda acreditam no amor,
na monogamia, no casamento. É nessa viagem que as coisas começam a mudar e Marx
encontra um Selvagem (John) que muda todo o rumo da história, mas de sua
própria e jamais da sociedade. Aí está a dureza da obra de Huxley, ou mesmo a
dureza da sociedade que ele prevê em sua obra.
Em 1953, o
norte-americano Ray Bradburry lança mais uma obra distópica: Fahrenheit 451. O próprio título da obra
já denuncia sua essência. É essa a temperatura na qual um livro pega fogo. Aí
está a crítica de Bradburry: seu personagem central, Montag, parte da brigada
de bombeiros que é usada não para apagar incêndios, mas para queimar livros,
passa a questionar a condição em que vive, seu trabalho, seu país – que já
passou por três Guerras Nucleares – e até mesmo seu casamento, quando conhece a
jovem Clarisse. A menina se pergunta por que os livros são proibidos e
questiona-se se a história é realmente aquela contada na escola.
A questão de 451 é a manipulação da história por meio
da proibição dos livros, além do controle social, ou de um biopoder, como diria
o filósofo francês Michel Foucault, por meio dessa proibição. A questão é que
uma pequena fagulha pode colocar fogo em toda uma sociedade. É graças a
Clarisse que Montag passa a questionar as coisas ao seu redor e acaba
percebendo que as coisas não são o que parecem. O livro é uma ode à Literatura, várias homenagens aos grandes Clássicos da Literatura (inclusive a Bíblia) são feitas. Dentre eles, destaca-se a homenagem à 1984.
Em 1949, George
Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair lança sua obra-prima 1984. Nesse futuro (que já se faz
passado) o mundo está dividido em três Superestados que foram criados a partir
das ideologias do final do século XIX e começo do século XX. Na obra, Orwell
faz uma série de citações históricas reais como ao Nazismo ou ao Socialismo
russo. E a crítica feita no livro é justamente em relação aos regimes totalitários
e ao seu horror. O livro conta a história de Winston e de seu desenvolvimento
intelectual e conhecimento daquilo que é chamado de O Partido. O Partido é
controlado por uma figura que personifica todo o poder: O Grande Irmão (Big Brother) que a tudo vê, de tudo
sabe, o controle é tanto (mais uma vez evocando Foucault) disciplinar, ou seja,
individual, quanto de bipoder e, portanto, coletivo. Vale ressaltar que a descrição física desse rosto que aparece nas telas de todas as pessoas do mundo de 1984 lembra muito a figura de Hitler.
Toda a história
se desenrola a partir dos pensamentos proibidos de Winston e de como ele se
coloca contra o todo-poderoso Partido e como despreza a figura d’O Grande
Irmão. No meio do caminho ele conhece Julia por quem se apaixona, num mundo
onde o amor também é proibido, pois distrai e leva à reflexão. Tudo,
absolutamente tudo que levar à reflexão é um crime gravíssimo, passível de
morte. Para isso, o Partido dispõe do que Orwell chama de Polícia das Ideias,
controla-se completamente até mesmo os pensamentos de cada indivíduo.
Descobrimos que o Partido chegou ao poder levantando a bandeira do Socialismo,
mas que abandonou suas ideias única e exclusivamente em nome do poder pelo
poder. A sociedade de 1984 ainda é
dividida em classes sociais – como o Capitalismo – onde temos os Membros
Internos (os governantes), os Membros Externos (a classe média) e os Proletas
(os próprios proletários). Nada mudou, pelo contrário, tudo apenas piorou.
O poder
continua situado nas mãos de alguns poucos que comandam todas as coisas a seu
bel prazer, a classe média continua sendo constituída de ovelhas, sendo o
rebanho burro, acomodado e acéfalo que permite que tudo seja feito enquanto
tudo estiver bem para eles próprios. Os proletários nunca deixaram de ser
proletários e são esquecidos nas periferias das cidades. São “animais” que
servem única e exclusivamente para trabalhar. Orwell já havia levantado a
questão de forma mais breve e menos detalhada em seu livro de 1945 A Revolução dos Bichos, numa crítica
direta ao regime Stalinista na União Soviética. Aqui a crítica abrange não só
ao regime de Stálin ou de Hitler, mas também ao Capitalismo em si. Sua
crueldade, sua perversidade perante à humanidade e como estamos completamente
fechados e presos ao Poder que está em absolutamente todos os lugares,
principalmente no discurso de condicionamento da população, em especial da
classe média. Enquanto a classe média for controlada, todo o resto estará perdido.
Já dizia Marx que, infelizmente, e essa a classe revolucionária.
Em alguns
trechos do livro, Orwell faz um resumo d’O
Capital de Marx (sem a parte da economia), e explica como as coisas
chegaram onde chegaram e é, sem dúvidas, um dos trechos mais apavorantes de
toda a obra, pois podemos facilmente fazer uma analogia com os nossos tempos.
Disse que Jogos Vorazes retomava esse assunto,
essa temática. E retoma bebendo, claramente, dessas três fontes. Tudo o que
liga essas distopias são as questões do poder pelo poder e, principalmente, da
exploração da maioria, necessária para que alguns poucos possam se mantes
confortáveis e no poder. Críticas sociais e políticas como essas vem sido
feitas há anos, mas geralmente elas ficam sempre na crítica. Surpreende como o
próprio Capitalismo absorve as críticas que são feitas a ele e as transforma em
mais dinheiro. Não precisamos pensar muito para perceber isso. Quantas
camisetas de Che Guevara você viu nos últimos anos? Quantos milhões de dólares
as adaptações cinematográficas de Jogos
Vorazes arrecadaram? A vida é tão realista quanto Admirável Mundo Novo, Fahrenheit 451, 1984 e Jogos Vorazes. A questão que fica é a mesma para todos: quando a
verdadeira revolução será feita? Ou melhor, quando os proletários farão, por
fim, essa revolução? É pra se pensar.

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