Ao final do ano
passado, enquanto lecionava Sociologia nos três anos do Ensino Médio em uma
escola no bairro da Bela Vista/Bixiga, decidi trabalhar com todos os meus alunos o sistema prisional
do ponto de vista de Michel Foucault em sua análise de Vigiar e Punir. Além disso, meu objetivo era mostrar como a escola
estava sucateada e defasada e por de mais parecida com as prisões que existem
pelo Brasil afora. Fiz isso pensando em todos, mas confesso que pensei mais em
alguns do que em outros. Na escola em que leciono já por quase três anos,
existe uma incidência de criminalidade juvenil muito alta. Temos diversos
alunos que são “liberdade assistida”, ou seja, que estão sob uma espécie de
condicional da Fundação Casa.
Meus alunos têm
diversos problemas. A grande maioria deles não tem estrutura familiar, ou moram
com a avó, alguns com tios e tias, outros apenas com o pai ou a mãe e mais uma
porção de irmãos. E tudo isso em espaços físicos minúsculos nos cortiços e
pensões espalhadas pelo bairro de Adoniram Barbosa. Aí está uma das
contradições: a Bela vista, ou o Bixiga, é um bairro tradicional de São Paulo.
É lá que estão localizadas algumas das melhores cantinas da cidade (quiçá do
Brasil), ali acontece a famosa festa de Nossa Senhora da Achiropita –
patrocinada pela rede Globo e o Bradesco e que atrai milhares de pessoas em
todos os finais de semana de Agosto, todos os anos – e também é o lar da
tradicionalíssima e campeã escola de samba Vai-Vai.
Quando coloquei
meus pés naquela escola, percebi que ela era completamente diferente da escola
na qual eu estudei no ensino médio – que também era uma escola estadual -, essa
escola tinha diversos problemas. Alguns de nossos alunos vão à escola para comer
na parca merenda que é oferecida. Quase nenhum de nossos alunos vai à escola
estudar, essa é a última de suas preocupações. Logo percebi. Aliás, jamais fui
lecionar com a ilusão de que daria aulas como nos filmes. Nunca tive o objetivo
de ensinar Filosofia a nenhum deles, a não ser quando a sala me permitisse. Meu
objetivo sempre foi fazê-los perceber a violência que sofrem todos os dias, a
opressão pela qual passam e tentar, de alguma forma, fazê-los refletir sobre
suas próprias vidas e tentar melhorar da forma que pudessem. Tive ajudas do
além-túmulo para isso, com certeza. Um Marx aqui e um Foucault ali fazem uma
diferença assombrosa. Um Paulo Freire faz toda a diferença.
Escutei
diversas vezes meus colegas dizendo que os alunos não estão interessados em
estudar, que eles vão à escola para socializar. O que mais pode se esperar de
jovens que não podem ter, pois foram privados, de uma vida de jovens? O que
mais pode se esperar de jovens negros, em sua maioria, com pais vindos do
nordeste, que não tem qualquer cultura (dita cultura), que são taxados com cara
de “bandidos” e “marginais” – inclusive pelos próprios professores que
poderiam, no mínimo, tentar entender qual a realidade de seus alunos -, de
jovens que nunca tiveram onde ou com o que brincar? O que se pode esperar de
jovens que, ao contrário dos filhos da democracia, dos filhos dos
caras-pintadas, dos filhos das diretas-já, não podem ter um tênis, uma blusa ou
um celular?
Todos nós somos oprimidos pela máquina do Capitalismo, mas eles são
muito mais. Eles são esquecidos, largados. A escola está esquecida e largada.
Isolada, entre portas e vidros quebrados, salas de aula se piso, professores
destruídos pela desvalorização e a humilhação de vinte anos de um governo que
presa única e exclusivamente pelo individualismo da classe média, de um governo
que vem colocando em prática um plano de marginalização dos jovens negros,
nordestinos e pobres, para que eles sejam apenas mão de obra barata (a que se
paga quase nada). O que se espera de jovens assim? Cito um dos meus alunos que,
hoje vai embora desse mundo e será esquecido para sempre pelos grandes, que não
terá repercussão nenhuma na mídia já que não era filho de governador:
“(...) Não estou falando que é certo
cometer crimes, mas muitos não têm opção de trabalho, de estudo, e ter uma
família, e sabe quem adota a maioria desses menores infratores? O crime
organizado. Ele que dá chance de você ter um tênis da hora, um relógio da hora,
um carro da hora, mas todo mundo sabe que a VIDA BANDIDA só tem dois caminhos:
PRISÃO ou CAIXÃO. Mas a maioria das vezes, a prisão não faz efeito em ninguém,
porque lá atrás das grades não tem recuperação, só alimenta o ódio que nós
temos no coração.”
Esse é um trecho
de uma redação que pedi que os alunos escrevessem sobre o sistema prisional
brasileiro no final do ano passado. Guardei essa prova desde então, porque
disse a mim mesmo que se tivesse a oportunidade, ajudaria esse menino da forma
que eu pudesse. Esse semestre, trabalharia o romance Capitães da Areia com a sala dele e, mais uma vez, pensando em
todos, mas mais em outros, tentaria ajudar de alguma forma. Infelizmente o
tempo não permitiu. O que mais chamou minha atenção nessa prova foi a
sinceridade com a qual ele relatou tudo – tudo pelo que vinha passando – e como
eles possuem a consciência do que os espera. Como você se sentiria sabendo que a prisão ou o caixão são seus únicos
caminhos? Ou, pelo menos, são os dois únicos que é possível ver naquele
momento? São esses jovens esquecidos que o congresso quer colocar atrás dessas
grades que só alimentam o ódio aos dezesseis anos.
Hoje é 16 de
Agosto de 2015 e muitas pessoas vão às ruas pedindo o impeachment da Presidenta:
pra quê? Porque pensam apenas em si mesmos, não é verdade que estão pensando no
Brasil. Os militares também se vangloriavam do mesmo discurso quando deram o golpe
em 1964. O povo brasileiro carece de empatia. O povo brasileiro carece de
realidade, não a realidade manipulada e massificada que lhes é oferecida pelo
Jornal Nacional todas as noites, a realidade crua daqueles que não tem pra onde
correr. Não tem porque essa classe dita média, mas que de média só tem baixa,
não quer o trabalho pesado, aceita, silenciosamente e de forma servil e
ignorante os crimes que se cometem contra os pobres. Nenhum país é destruído
apenas por um governo (seja ele do PT, do PSDB, do PMDB ou de qualquer sigla
que não representa o que simboliza), o país é também destruído pela sua
população. Nós destruímos o Brasil,
então se você for sair pra rua hoje, peça o seu próprio impeachment, pois você
deixa o pior acontecer com quem já não tem nada. Você e a sua ignorância, a sua
covardia. Você e a sua estupidez, o seu egoísmo que não conseguem ver além da
conta bancária e que acreditam que a culpa de uma crise econômica de proporções
mundiais é de uma pessoa. Estude, classe média. Mas mais do que estudar, vá
para a rua ver o que acontece.

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