domingo, 16 de agosto de 2015

A Prova



Ao final do ano passado, enquanto lecionava Sociologia nos três anos do Ensino Médio em uma escola no bairro da Bela Vista/Bixiga, decidi trabalhar com todos os meus alunos o sistema prisional do ponto de vista de Michel Foucault em sua análise de Vigiar e Punir. Além disso, meu objetivo era mostrar como a escola estava sucateada e defasada e por de mais parecida com as prisões que existem pelo Brasil afora. Fiz isso pensando em todos, mas confesso que pensei mais em alguns do que em outros. Na escola em que leciono já por quase três anos, existe uma incidência de criminalidade juvenil muito alta. Temos diversos alunos que são “liberdade assistida”, ou seja, que estão sob uma espécie de condicional da Fundação Casa.

Meus alunos têm diversos problemas. A grande maioria deles não tem estrutura familiar, ou moram com a avó, alguns com tios e tias, outros apenas com o pai ou a mãe e mais uma porção de irmãos. E tudo isso em espaços físicos minúsculos nos cortiços e pensões espalhadas pelo bairro de Adoniram Barbosa. Aí está uma das contradições: a Bela vista, ou o Bixiga, é um bairro tradicional de São Paulo. É lá que estão localizadas algumas das melhores cantinas da cidade (quiçá do Brasil), ali acontece a famosa festa de Nossa Senhora da Achiropita – patrocinada pela rede Globo e o Bradesco e que atrai milhares de pessoas em todos os finais de semana de Agosto, todos os anos – e também é o lar da tradicionalíssima e campeã escola de samba Vai-Vai.

Quando coloquei meus pés naquela escola, percebi que ela era completamente diferente da escola na qual eu estudei no ensino médio – que também era uma escola estadual -, essa escola tinha diversos problemas. Alguns de nossos alunos vão à escola para comer na parca merenda que é oferecida. Quase nenhum de nossos alunos vai à escola estudar, essa é a última de suas preocupações. Logo percebi. Aliás, jamais fui lecionar com a ilusão de que daria aulas como nos filmes. Nunca tive o objetivo de ensinar Filosofia a nenhum deles, a não ser quando a sala me permitisse. Meu objetivo sempre foi fazê-los perceber a violência que sofrem todos os dias, a opressão pela qual passam e tentar, de alguma forma, fazê-los refletir sobre suas próprias vidas e tentar melhorar da forma que pudessem. Tive ajudas do além-túmulo para isso, com certeza. Um Marx aqui e um Foucault ali fazem uma diferença assombrosa. Um Paulo Freire faz toda a diferença.

Escutei diversas vezes meus colegas dizendo que os alunos não estão interessados em estudar, que eles vão à escola para socializar. O que mais pode se esperar de jovens que não podem ter, pois foram privados, de uma vida de jovens? O que mais pode se esperar de jovens negros, em sua maioria, com pais vindos do nordeste, que não tem qualquer cultura (dita cultura), que são taxados com cara de “bandidos” e “marginais” – inclusive pelos próprios professores que poderiam, no mínimo, tentar entender qual a realidade de seus alunos -, de jovens que nunca tiveram onde ou com o que brincar? O que se pode esperar de jovens que, ao contrário dos filhos da democracia, dos filhos dos caras-pintadas, dos filhos das diretas-já, não podem ter um tênis, uma blusa ou um celular? 

Todos nós somos oprimidos pela máquina do Capitalismo, mas eles são muito mais. Eles são esquecidos, largados. A escola está esquecida e largada. Isolada, entre portas e vidros quebrados, salas de aula se piso, professores destruídos pela desvalorização e a humilhação de vinte anos de um governo que presa única e exclusivamente pelo individualismo da classe média, de um governo que vem colocando em prática um plano de marginalização dos jovens negros, nordestinos e pobres, para que eles sejam apenas mão de obra barata (a que se paga quase nada). O que se espera de jovens assim? Cito um dos meus alunos que, hoje vai embora desse mundo e será esquecido para sempre pelos grandes, que não terá repercussão nenhuma na mídia já que não era filho de governador:


“(...) Não estou falando que é certo cometer crimes, mas muitos não têm opção de trabalho, de estudo, e ter uma família, e sabe quem adota a maioria desses menores infratores? O crime organizado. Ele que dá chance de você ter um tênis da hora, um relógio da hora, um carro da hora, mas todo mundo sabe que a VIDA BANDIDA só tem dois caminhos: PRISÃO ou CAIXÃO. Mas a maioria das vezes, a prisão não faz efeito em ninguém, porque lá atrás das grades não tem recuperação, só alimenta o ódio que nós temos no coração.”


Esse é um trecho de uma redação que pedi que os alunos escrevessem sobre o sistema prisional brasileiro no final do ano passado. Guardei essa prova desde então, porque disse a mim mesmo que se tivesse a oportunidade, ajudaria esse menino da forma que eu pudesse. Esse semestre, trabalharia o romance Capitães da Areia com a sala dele e, mais uma vez, pensando em todos, mas mais em outros, tentaria ajudar de alguma forma. Infelizmente o tempo não permitiu. O que mais chamou minha atenção nessa prova foi a sinceridade com a qual ele relatou tudo – tudo pelo que vinha passando – e como eles possuem a consciência do que os espera. Como você se sentiria sabendo que a prisão ou o caixão são seus únicos caminhos? Ou, pelo menos, são os dois únicos que é possível ver naquele momento? São esses jovens esquecidos que o congresso quer colocar atrás dessas grades que só alimentam o ódio aos dezesseis anos.


Hoje é 16 de Agosto de 2015 e muitas pessoas vão às ruas pedindo o impeachment da Presidenta: pra quê? Porque pensam apenas em si mesmos, não é verdade que estão pensando no Brasil. Os militares também se vangloriavam do mesmo discurso quando deram o golpe em 1964. O povo brasileiro carece de empatia. O povo brasileiro carece de realidade, não a realidade manipulada e massificada que lhes é oferecida pelo Jornal Nacional todas as noites, a realidade crua daqueles que não tem pra onde correr. Não tem porque essa classe dita média, mas que de média só tem baixa, não quer o trabalho pesado, aceita, silenciosamente e de forma servil e ignorante os crimes que se cometem contra os pobres. Nenhum país é destruído apenas por um governo (seja ele do PT, do PSDB, do PMDB ou de qualquer sigla que não representa o que simboliza), o país é também destruído pela sua população. Nós destruímos o Brasil, então se você for sair pra rua hoje, peça o seu próprio impeachment, pois você deixa o pior acontecer com quem já não tem nada. Você e a sua ignorância, a sua covardia. Você e a sua estupidez, o seu egoísmo que não conseguem ver além da conta bancária e que acreditam que a culpa de uma crise econômica de proporções mundiais é de uma pessoa. Estude, classe média. Mas mais do que estudar, vá para a rua ver o que acontece.

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