quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

De novo no "Café Insônia"

Voltei ao café todo em vermelho, com pessoas diferentes.


I
Marina não se sentia no lugar certo. Quando pensava bem, percebia que jamais havia se sentido assim, era como se absolutamente nada fosse o que ela pensou que seria. Havia feito todas as escolhas erradas. “É apenas uma crise da idade”, pensou ela no alto de seus vinte e cinco anos. A insônia que a acompanhava desde os dezoito, mas que havia dado uma trégua nos últimos tempos, voltara mais forte que nunca. No criado mudo que guardara de sua infância, branco, com um puxador dourado – completamente fora de moda – estava parado A hora da estrela, seu livro de insônia. Lembrava-se que a primeira grande crise a havia levado a ler aquele livro em uma única noite, provavelmente os efeitos da insônia, o desespero por não conseguir dormir, o torpor causado pelo sono excessivo e pela mente que não a deixava descansar, a fizeram sentir como a própria Macabéa. E desde então ela era essa Macabéa, ainda que menos subserviente, menos tomada por uma síndrome brasileira de vira-latas, um pouco mais apaixonada pela própria vida.
O som tocava um CD que ela mesmo fizera, com uma playlist apenas com baladas que ouvia quando mais nova. Marina possuía esse lado nostálgico, um tanto quanto vintage: gostava de sua coleção de CDs Pop e adolescentes. Enquanto o relógio marcava às 2 da manhã, Geri Halliwell cantava Walkaway. A voz rouca soava das caixas de som acompanhada de uma orquestra que dizia tanto quanto a letra da canção. Com um suspiro ela desistiu de pegar no sono. Sentou-se na cama e apoiou a cabeça sobre a mão, os olhos pesados deviam estar vermelhos de sono, mas ela não aguentava mais ficar ali parada esperando que algo acontecesse. O tempo urgia. O computador estava aberto em um documento meio escrito, de uma dissertação de mestrado que não lhe dizia mais absolutamente nada, seria concluída porque precisava daquilo para aumentar suas oportunidades no mercado de trabalho, mas nada mais além disso. Vestiu um par de calças jeans surradas que tinha, uma camiseta preta velha, com marcas brancas de desodorante debaixo das mangas, amarrou o tênis e desligou o som. Saiu do apartamento alugado na rua Augusta e desceu as escadas. Quanto mais se aproximava da rua, mais alguma coisa em seu estômago ia tomando conta dela. Uma espécie de bicho querendo sair, mas que ela não sabia como libertar.
Quando abriu a porta da rua, sentiu o ar fresco que soprava naquela noite de fevereiro. O carnaval se aproximava, era nítido no ar. Ela não sabia explicar, mas essas datas festivas sempre eram anunciadas pelo vento do Brasil. Em qualquer parte que for do país, ela imaginava ser possível saber qual seria a próxima comemoração: carnaval, páscoa, natal, ano novo. Ela sorriu de canto e resolveu descer a rua. O pequeno prédio antigo, completamente escondido, ficava na altura da rua Luís Coelho. Era uma quarta-feira à noite, e as ruas estavam desertas de gente. Alguns poucos boêmios adolescentes – provavelmente recém-formados no ensino médio, ainda sem faculdade, sem emprego – estavam ali bebendo uma garrafa de catuaba e falando alto sobre alguma série que assistiam. Marina percebeu que estava sem o telefone quando chegou no final da quadra, resolveu não voltar. Afinal, quem ligaria às duas da manhã de uma quarta-feira?
Os bares estavam todos fechados e o monstro em seu interior continuava a querer se libertar. Ela pensou que uma cerveja poderia ajudar, mas não havia lugar nenhum aberto à vista. Foi quando concluiu que não tinha o que fazer numa rua deserta de madrugada que percebeu uma placa de neon vermelho que piscava entre um boteco e alguma loja, o sinal dizia “Insônia Café”, ela riu daquele nome e o achou realmente apropriado. Decidiu que era o lugar no qual deveria entrar. A porta gasta era de madeira e vidro, a vitrine estava coberta por uma pequena cortina também vermelha. Ela sentiu o cheiro do café forte vindo de dentro do lugar assim que empurrou a porta e entrou. O lugar parecia uma lanchonete de beira de estrada daquelas que se vê nos filmes americanos, tinha um comprido balcão repleto de banquinhos gastos, algumas mesas sem toalhas, seis exatamente, com açúcar, sal, ketchup, mostarda e guardanapos, muito bem organizados. Duas das mesas estavam ocupadas: numa grudada à vitrine com a cortina fechada, estava um homem de pelo menos sessenta anos, um pouco calvo, com um nariz grande e as orelhas também, os cabelos que lhe restavam estavam cinzas, porém, levava poucas rugas em seu rosto. Na ponta do longo nariz, um par de óculos que o ajudava a ler um livro antigo e com as páginas amareladas. Na outra mesa, no extremo oposto do lugar, havia um rapaz com mais ou menos a mesma idade de Marina, os cabelos cacheados lhe enchiam a cabeça, fazendo com que ele lembrasse um anjo barroco. Os lábios eram carnudos e muito vermelhos, os olhos verdes estavam vidrados em um relógio acima do balcão.

II
Marina olhou aquela cena com cuidado, cuidado de não esquecer absolutamente nada daquilo que via ali. Sentiu que aquela cena poderia ser importante, mas não conseguia entender o motivo. Seus pensamentos foram interrompidos pela entrada de uma terceira pessoa, desta vez atrás do balcão surgiu uma travesti alta, fumando um cigarro e com uma volumosa peruca vermelha em sua cabeça, portava um bloquinho de notas e uma caneta que estava parada na orelha. Seus olhos fitaram Marina dos pés à cabeça, como se a analisasse e quisesse entender o que uma garota como ela estava fazendo ali. Então, depois de um momento, a travesti se dirigiu a ela com a voz que transitava entre o masculino e o feminino, mas com uma calma e docilidade invejáveis:
-Posso ajudar em alguma coisa, querida?
-Eu... – Quando disse a primeira palavra, tanto o velho quanto o rapaz a olharam imediatamente e ao mesmo tempo. Marina engoliu seco. – Vou querer só um café. Grande, por favor. – Respondeu ela se sentando no balcão.
-Puro?
-Sim, por favor.
A travesti se virou para a cafeteira cheia atrás dela, agarrou uma grande xícara branca e a colocou sobre o balão bem na frente de Marina, enchendo-a até quase o topo de um café preto e fumegante, com um cheiro delicioso. Ela agradeceu com o olhar, pegou a xícara com as duas mãos e levou, cuidadosamente, até os lábios. O gosto foi como uma enorme explosão de sabores dentro dela. Todo o seu interior foi aquecido por aquela bebida que ela considerou o melhor café do mundo.
-Está bom? – Perguntou a travesti que a observava atentamente sorrindo.
-Maravilhoso! Qual o pó? – O que se perguntava sobre um café tão bom? Essa foi a única coisa que lhe veio à cabeça.
-Segredo. – Respondeu ela sorrindo. – Mas, me diga... você nunca tinha vindo aqui, não é?
-Não. Para ser muito sincera eu nunca...
-Tinha reparado no lugar.
-Isso.
-É comum. As pessoas não reparam, mesmo. Só quem precisa pode encontrar esse lugar.
-Quando você diz assim parece até ser mágico.
-Magia é questão de ponto de vista, menina.
Marina parou alguns segundos e olhou aquela pessoa alta e sorridente, o batom vermelho estava manchando os grandes dentes brancos e aquilo a fez sorrir por dentro, como se fosse a coisa mais incrível que já havia presenciado em toda a sua vida. Ela queria conversar mais com aquela pessoa, mas não sabia o que dizer. De repente, uma pergunta lhe veio à cabeça e resolveu, sem muito deliberar, que perguntaria aquilo mesmo.
-O lugar é seu?
A travesti riu.
-De forma nenhuma, querida. Não teria dinheiro para abrir esse lugar.
-Por que é tudo vermelho?
Todo o lugar tinha toques vermelhos na decoração, foi a primeira vez que Marina reparou na música que tocava ao fundo, não conseguia reconhecer por mais que tentasse, mas era uma voz que sofria por algum motivo.
-Acho que o dono gosta assim. É a cor preferida dele.
-Quem é ele?
-Não o vejo desde que fui contratada. Eu só faço o meu trabalho. Quando dá meia-noite, abro, quando o relógio bate sete da manhã, eu fecho. Deixo tudo em ordem e tiro meu pagamento do caixa, o resto deposito em uma conta com um nome fictício. Pelo menos acho que é fictício, ele nunca me disse o nome de verdade.
-E você aceitou trabalhar assim?
-Ou era isso, ou era a prostituição, amor. Paga o aluguel e as contas.
-Você trabalha todos os dias?
-De quarta à domingo.
-Há quanto tempo?
-Nem me lembro mais.
-Qual seu nome?
-Monique. E o seu?
-Marina.
-Bem, Marina. A pilha de louça ali atrás não vai se lavar sozinha, se precisar de alguma coisa, é só me chamar.
-Obrigada, Monique.
Monique sorriu em resposta e passou por uma cortina que levava à cozinha. Marina deu mais alguns goles no café, o mais devagar que podia. A porta se abriu de novo. Uma mulher japonesa entrou parecendo um pouco exasperada. Os dois homens não a olharam, e Marina achou aquilo estranho, mas mais estranho foi quando percebeu que a mulher usava um kimono vermelho com estampas de borboletas brancas. Tentando recuperar um pouco da postura, ela se sentou ao lado de Marina que ficou paralisada.
-Oyasumimasu. – Disse ela em japonês, Marina entendeu que aquilo deveria significar “boa noite”.
-Boa noite.
A mulher não respondeu e continuou a olhar para o horizonte, ou para uma estante repleta de salgadinhos presa na parede à sua frente.
-Será que alguém pode me atender aqui? – Disse ela um pouco mais alto, parecendo impaciente. Monique saiu da cozinha parecendo mal humorada, ela não parecia ser o tipo de pessoa que gostava de ser pressionada.
-O que é? – Disse ela com a voz grossa.
-Quero um saquê morno.
-Não temos isso aqui.
A mulher parou por um instante, pareceu que perguntaria pelo cardápio, mas deve ter desistido quando continuou.
-Então uma dose de pinga com limão, ou será que não tem isso também?
Sem responder, Monique preparou uma dose caprichada de pinga e que, claramente, faltava limão e jogou o copo no balcão na frente da japonesa que pegou e tomou de um só gole.
-Está tudo bem? – Marina se arriscou a perguntar.
-Qual seu nome?
-Marina, e o...
-Michiru. Me chamo Michiru.
-É um prazer, Michiru.
-Que música deprimente. – Declarou ela depois de alguns segundos em silêncio. – O que é isso?
-Eu não sei, não consigo reconhecer...
-Será que aquela criatura pode mudar? Eu acabei de ser largada no altar. Queria algo menos deprimente.
-Monique? – Chamou Marina sem hesitar. Mas Monique não respondeu. – Eu posso ajudar em alguma coisa?
-Você teria um marido no seu bolso?
-Ah, não...
-Me desculpe. – Disse ela fazendo uma meia reverência, meio confusa entre costumes brasileiros e nipônicos. – Eu não devia trata-la assim, Marina-chan.
-Não tem problema, eu entendo.
Michiru sorriu e seus olhos encheram de lágrimas, e as lágrimas não aguentaram permanecer guardadas e rolaram pelo rosto da mulher que não fazia nenhum som, mas permanecia olhando para Marina. Ela não sabia o que fazer, e quase que instintivamente, passou um dedo sobre a face de Michiru secando uma de suas lágrimas. Aparentemente o gesto apenas piorou a situação, porque a mulher começou a chorar mais e mais desesperadamente. Quando perdeu novamente toda a sua compostura japonesa, abraçou Marina e soluçou enquanto chorava. Quando as lágrimas provavelmente se acabaram, Michiru disse:
-Se você não está apaixonada, não se apaixone. Amar é uma dor indizível, às vezes você perde completamente o controle dela e acaba sufocando e machucando a outra pessoa. Você obriga essa pessoa a fazer tudo aquilo que ela não quer fazer com você. É um estupro dos sentimentos de alguém. O amor é muito cruel, ele é mais cruel quanto mais tempo você leva para perceber que é só uma ilusão. E quando você percebe, está no altar, com toda a sua família olhando, esperando que algo aconteça, e absolutamente nada acontece. Porque ele nunca chega, ele nunca vai chegar.
Michiru disse tudo com quase um fôlego apenas, no tom de sua voz havia um misto estranho entre ódio, amor, desespero, ou talvez não fosse tão estranho assim. Provavelmente era mais comum do que Marina poderia pensar. Isso a remeteu à sua infância. Ela era uma menina de uns quatro ou cinco anos, muito tímida e com um complexo enorme de inferioridade. O parquinho da pré-escola estava cheio de crianças brincando, no gira-gira, brincando de esconde-esconde e de fazer castelinhos na areia. Marina olhava assustada o escorregador. Ele parecia tão grande, tão alto. Como ela poderia ter coragem de subir todas aquelas escadas e descer de lá de cima? O escorregador era o brinquedo preferido de seus amigos e todos insistiam para que ela brincasse nele, tímida, com a cabeça baixa, ela sempre dizia que não queria. Inventava alguma desculpa e continuava no chão, ia ao balanço e empurrava a si mesma. Um dia, aquela outra menina veio falar com ela. Ela era loira, com os cabelos cortados até a altura do queixo e com uma franja, ela sorriu banguela para Marina que ficou muito envergonhada.
-Vamos no escorregador, Marina? – Perguntou a menina com um sorriso na voz.
-Não, obrigada, Andréia. – Respondeu ela com a cabeça baixa.
-Por que você nunca vai brincar com a gente no escorregador?
Marina se surpreendeu com aquela pergunta, ficou vermelha e olhou para Andréia com os olhos confusos de uma criança que tem medo de responder o que um adulto lhe pergunta. Ela se lembrou daquela imagem como se fosse naquele mesmo momento. Até aquele momento, Andréia era a pessoa mais linda que Marina já vira em todos os seus quatro ou cinco anos de idade. Com a voz para dentro, ela respondeu:
-Eu tenho medo.
Andréia riu e disse erguendo a mão:
-Vem! Eu vou junto, não precisa ter medo!
Aquele provavelmente havia sido o amor mais inocente que Marina sentira em toda a sua vida, o primeiro de todos. Fechou os olhos com uma lágrima no canto do olho e um sorriso nos lábios. Ela não vira Andréia desde a sexta série quando a menina se mudou da vizinhança, desde então, toda a sua vida era completamente diferente. Da criança tímida já não sobrava muita coisa, do medo do escorregador, nada havia restado. Aquela lembrança lhe veio por algum motivo, havia algo que precisava dizer a Michiru que ainda ressonava ao seu lado.
-Às vezes... às vezes, o amor pode ser puro e inocente. Às vezes ele te amou, ou ama. Só que é mais companheirismo do que esse amor que você esperava, Michiru. Pode ser que ele seja seu amigo pelo resto da vida, mesmo que vocês nunca mais se encontrem. Pode ser que você se lembre dele como alguém que lhe fez muito bem. E talvez, daqui há uns anos, você consiga ver isso melhor. Não chore. Tudo vai melhorar.
Michiru olhou confusa por um instante, mas em seguida sorriu. Marina desejou saber o que estava passando dentro daquela mente. A mulher japonesa se levantou, imponente em seu kimono vermelho estampado com borboletas brancas, fez uma reverência diante de Marina e disse: “Arigatô gozaimasu”, antes de deixar uma nota de dois reais no balcão, pagando pela dose de pinga com limão e se dirigir até a porta. Ali, com ela entreaberta, virou-se para Marina e disse:
-É Billie Holiday. – E saiu sorrindo.



terça-feira, 23 de agosto de 2016

Pós-Pânico


Respira fundo, se concentra na sua respiração e não deixa a cabeça perder o controle... ou, não deixa você mesmo perder a cabeça. O mundo não é fácil mesmo, mas não tem que ser tão difícil. A dor e o sofrimento estão aí, não tem pra onde fugir, mas é preciso encarar de frente como você sempre fez, não deixar que as coisas fujam do controle. Você sempre enfrentou tudo muito bem, da melhor forma que pôde. É que os últimos anos têm sido realmente pesados e às vezes você perde a respiração, e isso é normal. Não é preciso se preocupar. O peito dói, mas você precisa respirar fundo e entender que você está vivo e que nenhum tipo de medo, pânico ou pavor podem te controlar. Você é bem mais forte que isso, você é fighter e como tal não pode desistir de lutar, embora seja necessário que você baixe a guarda às vezes, baixe a guarda para que os outros possam entrar na sua vida. Respira fundo, se concentra na sua respiração. Toma um chá de camomila bem quentinho, porque nesse frio é disso que a gente precisa: chá, um par de meias, cobertas, seu cachorro com a cabecinha apoiada nas suas pernas, um filme ou um livro e amor. Amor das pessoas que você sabe que te amam. Antes, quando você perdia o controle tinha alguém em quem você descontava, hoje você desconta em si mesmo. Ainda bem, ninguém merece apanhar pelos seus sentimentos, e ter consciência disso não é algo ruim, é só você saber que tem sempre que melhorar. Então melhora. Respira fundo, se concentra na sua respiração. Tem muita gente que precisa de você sóbrio, sem medo, corajoso como sempre foi. Lembra quando sua mãe te perguntou e você, chorando, disse que era. E o que veio depois, embora você fosse muito novo para saber, foi uma sensação de liberdade quase que divina. Lembra que não importa o que os filósofos te digam, você é livre sim, tão livre que pode fazer tudo aquilo que quiser. Vê se consegue se lembrar de tudo que você tem de bom. Coloca na sua mente os sorrisos dos seus amigos naqueles dias, e que o sorriso fixo que eles vão repetir pra sempre naquelas fotografias são reais. E das tuas crianças que você mudou de alguma forma, elas vão pro mundo e lá vão descobrir esses medos e esses pânicos que você sentiu. E sua avó que já foi, sua tia que tá sofrendo, você não precisa ser igual a elas, você pode ser muito mais feliz por elas. Segura essa ansiedade, porque como uma personagem da sua infância dizia: vai dar tudo certo.

domingo, 12 de junho de 2016

Desabafo

Tem dias que respirar fica difícil. Acordar num dia frio e descobrir que cinquenta pessoas inocentes foram assassinadas enquanto viviam suas vidas, foram assassinadas porque eram diferentes.

Até que ponto eu não estou sujeito a isso? Eu sempre soube dentro de mim tudo o que eu desejei, tudo o que eu sou. Não houve um momento de dúvida real para mim, tudo sempre foi muito claro. Eu tenho um orgulho imenso de quem sou, do que sou e de tudo o que represento, tenho um orgulho imenso de lutar todos os dias por mim e pelos outros. Enquanto eles dizem que homofobia não existe, pessoas são mortas por serem homossexuais. Enquanto eles dizem que cultura do estupro não existe, mulheres são estupradas diariamente. Enquanto isso nós somos meros ativistas virtuais? O que acontece com o real depois disso? O real continua negando o seu redor e aquilo que o constitui?

Caralho. Como dói. Eu sinto uma dor no peito de tanta angústia, de não estar na rua agora, com todos aqueles LGBTs que saem de casa na Parada, gritando, chorando, abraçando e beijando. Respeitando. Orando. Rezando. Rindo. Brilhando, como sempre fizemos. Nós sempre brilhamos. Brilhamos na hora de dançar, na hora de cantar. Diziam que eu era um sol, tanta luz, tanta cor. E de repente, tudo fica preto e branco e não sobra lugar pra correr, não sobra lugar nenhum onde você se sinta seguro.


O Brasil hoje vem enfrentando uma crise terrível, uma crise sem precedentes. Uma crise onde tudo o que é parte do passado parece ser melhor do que aquilo que é parte do futuro, mas o passado posto no presente, causa morte, dor, sofrimento. Ele mata o filho de dez anos da mulher que não teve nenhuma condição de cria-lo. Ele estupra uma mesma menina trinta vezes. Ele mata cinquenta pessoas por ódio. Como dói. Dói em mim porque sou parte dessas pessoas que morreram, sou luz, brilho e cor como eles. E tenho MUITO orgulho de ser assim. Tem dias que respirar fica difícil, hoje é um deles.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Alice/Leonardo


À todos aqueles que são anormais, a luta é o que torna sangue em espírito.

-E se eu quiser ser diferente?

Ela estava completamente nua diante do espelho grande que ficava no quarto de seus pais. Aquele corpo moreno e magro, sem curvas a incomodava. Ali, entre as pernas, algo que não deveria estar. Ela estava sozinha, a música que vinha do seu quarto era uma das mais melancólicas de todas. Não existe amor em SP do Criolo. Ela sabia a letra de cor. E ficava repetindo mentalmente o tempo inteiro. Aquele corpo não era dela. Seu nome de nascença era Leonardo, mas ela nunca tinha sido aquele menino que seu pai queria que gostasse de futebol, ela nunca tinha sido aquele garoto que as crianças na escola diziam que ela tinha que ser, porque ela era um menino, não importava o que ela sentia de forma nenhuma. Ela tentava esconder seu órgão enquanto se olhava no espelho, sem muito sucesso. Nos braços e nas pernas cicatrizes que a lembravam de momentos que nenhum ser humano gostaria de se lembrar. Aqueles cortes tinham sido feitos para aliviar uma dor que, na verdade, não podia ser aliviada de forma alguma.

-Qual meu nome?

Como ela poderia se chamar em uma vida que não existia e que, provavelmente não existiria jamais. Não, eles estavam todos lutando por terminar com toda aquela pouca vergonha que ela sempre havia representado. Não havia absolutamente nada que a pudesse absolver de todo aquele pecado que ela encarnara desde que conseguia se lembrar, desde que tinha consciência de ser um ser pensante. Que pensamento? Pensamentos impuros. Os meninos da escola e seus músculos que cresciam conforme eles se exercitavam. Os meninos suados jogando bola, e ela tentando disfarçar o indisfarçável com aquele medo, aquele medo que persegue todas essas pessoas que não são pessoas perante aos normais. “Qual meu nome?”. Parecia óbvio, afinal de contas, ela só poderia ter um nome infantil, já que a vida que queria era um sonho infantil de verdade: Alice.

-Como eu seria?

Ela se perguntava como seria seu corpo, como seriam seus cabelos se fossem compridos. Como seriam os batons que usaria, de que cor? Vermelhos, quanto mais vermelhos, melhor. Seria assim. Seria a mais bela de todas as Alices do mundo. Guardaria o sonho infantil com ela, disso tinha certeza. Guardiã dos sonhos dos diferentes. Uma lágrima caiu naturalmente rolando pelo rosto que não lhe pertencia. Nunca pertenceu, não pode pertencer porque ela nunca foi Leonardo. Respirou fundo e decidiu que não queria mais fazer qualquer pergunta a si mesma. Deu um soco no espelho que rachou, tirou um pedaço pontiagudo que ficou sujo daquele sangue... O sangue era dela. Ela era puro sangue. Sangue doce. Sangue amargo. Nunca sangue com gosto de sangue, nunca sangue com gosto de sangue. As lágrimas se misturaram com o vermelho e ela começou a cortar o pescoço. Não havia mais nada que pudesse fazer, ninguém mais que pudesse ser. Ela queria ser espírito, espírito porque poderia voltar – esperava isso – e ser quem queria ser. Queria ser Alice.


Ninguém na família chorou por Alice, a mãe chorou por Leonardo e o pai nunca derramou uma lágrima. Outros choraram por Alice, e também por Leonardo. Outros que ela nunca conhecera, aqueles que com ela eram parecidos e que se faziam as mesmas perguntas. Aqueles outros que eram sangue, tornaram-se espíritos. Todos se tornaram espírito em terra e lutaram com força, com raiva, com amor, com vontade, com sangue e suor. Lutaram.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Os mehores livros de 2015

#10 Mary Poppins (P.L Travers)



Mary Poppins foi provavelmente meu filme preferido quando criança. Fazia meu pai alugar ele quase toda semana, ao ponto de ele me dar o DVD quando fiz 18 anos. Foi um presente bem simbólico para mim na época. Acontece que na minha cabeça Mary e Julie Andrews são a mesma pessoa, a personagem trabalhada por Walt Disney no filme de 1964 é a Mary original. A do livro veio depois para mim, então ela é estranha. A primeira vez que li o livro quando a finada Cosac lançou por aqui, fiquei muito incomodado com o autoritarismo da babá do livro frente ao carisma da do cinema. Quando resolvi tentar uma segunda vez, adorei o livro. Provavelmente porque acabei conhecendo pessoas dez vezes mais autoritárias que Mary Poppins na vida real e ela acabou se tornando uma colher cheia de açúcar.

#9 Os Filhos de Húrin (J.R.R Tolkien)



Como sempre, Tolkien é o mestre da Fantasia e não sobra absolutamente nada para mais ninguém quando se trata disso. Tudo o que vem depois é consequência da genialidade tolkeniana.  Esse pessoal que escreve fantasia hoje tem que se acostumar com isso. Os Filhos de Húrin não fica para trás. É um tipo de Tragédia Grega ambientada na Terra Média, o que faz disso uma coisa sensacional. Claras referências ao Édipo Rei percorrem todo o texto denso e triste. Simplesmente fantástico.

#8 O Sol é Para Todos (Harper Lee)



To Kill a Mockingbird, é um livro que aparece em praticamente todos os filmes e séries norte-americanos que existem. Exageros a parte, é um daqueles livros que os alunos são obrigados a ler nas escolas e que se tornaram um clássico. Escrito nos anos 60, era o filho único de Harper Lee, até o lançamento da "continuação" esse ano: Vá, coloque um vigia. O livro conta a história de três crianças que estão crescendo no Sul dos Estados Unidos e que se envolvem com um negro. Simples assim, mas faz da história uma coisa absurdamente comovente e realista.

#7 O Tempo e o Vento (O Continente, volumes 1 e 2) (Érico Veríssimo)



Acompanhar Ana Terra saindo da estância de seu pai, ver Pedro Terra chegando em Santa Fé, Bibiana crescendo e se apaixonado pelo personagem masculino mais encantador que já esbarrei, o Capitão Rodrigo,  ver a família se transformando em Terra-Cambará e a constituição do Rio Grande do Sul simbolizada por esse clã, foi uma das experiências literárias mais fantásticas da minha vida. A continuação fica para 2016, sem falta. Mas é sempre bom lembrar que "noite de vento, noite de mortos".

#6 Androides Sonham Com Ovelhas Elétricas? (Philip K. Dick)



Mais um da série: tinha largado, resolvi dar uma segunda chance e não me arrependi. Que livro fantástico. Ficção científica de primeira qualidade... Absolutamente nada a ver com o filme Blade Runner, a não ser os nomes dos personagens e o conceito central. Todo o resto é diferente e muito bem construído, muito bem amarrado. Tudo muito cru, sem muito vai e vem, e extremamente objetivo.

#5 1984 (George Orwell)



2015 foi o ano das distopias, li todas as clássicas. Minha segunda preferida acabou sendo o clássico 1984. Porque ele é simplesmente real. Tudo que está lá, está aqui. E eu não tenho nada mais a dizer, a não ser que em uma passagem muito breve o tordo é citado, e eu imagino que Suzanne Collins tenha escolhido o símbolo de Jogos Vorazes ali.

#4 Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley)



Como eu ia dizendo: distopias. Acho que esse livro conseguiu superar todas as minhas expectativas em relação ao mundo e a forma como nós o vemos. Nós estamos completamente presos o tempo inteiro, por uma série de coisas. Condicionados a acreditar que somos aquilo que dizem que somos... O que for mais interessante para uma espécie de poder (que chamo de capitalismo). Causa aquele desconforto existencial que as pessoas que pensam devem estar acostumadas.

#3 Morte Súbita (J.K. Rowling)



Preciso confessar: queria colocar esse livro em #1 só porque é J.K. Rowling, mas resolvi ser honesto. A maioria das pessoas que conheço não gostaram desse livro, provavelmente porque ele incomoda. É um romance político no melhor estilo inglês. Não tem Hogwarts pra deixar as coisas mais tranquilas e dar aquele ar de proteção. É muito realista e mostra muito bem quem são as pessoas que se fodem na vida: os pobres. A classe média é nojenta: essa é a mensagem principal dessa história. Palmas para dona Joanne.

#2 O Prisioneiro do Céu (Carlos Ruiz Zafón)



Parte da série de livros do Cemitério dos Livros Esquecidos, a história está no mesmo universo de A Sombra do Vento e O Jogo do Anjo e, apesar de menor, não fica para trás. Voltamos à vida de Daniel Sempere e Fermín Romero de Torres. O livro é espetacular como tudo o que Zafón escreve. Perdi o fôlego algumas vezes e acabei relendo os livros anteriores, o que me deixou com uma vontade imensa para o quarto e último que ainda não tem nem título e nem data definida. Estamos no aguardo, titio Zafón.

#1 Capitães da Areia (Jorge Amado)



Eu sei, não é um livro lá muito recente. Me julguem: eu li só esse ano e foi o primeiro que li no ano. Nenhum outro conseguiu superar as emoções que Jorge Amado causou em mim. Eu tenho meus motivos para amar esse livro e para colocá-lo dentre os meus preferidos da vida: a realidade dos meninos do Trapiche  eu conheço bem. Acompanho de perto todos os dias, e isso me toca mais que qualquer outra coisa. É por esses meninos que na minha cabeça eu apelidei de Capitães do Asfalto, que eu continuo dentro da sala de aula apesar de todos os pesares.  Eu conheço vários Pedro Bala, eles existem, são reais e passam pelos mesmos dramas, mas contextualizados, o que os torna ainda piores do que os do livro. Talvez eu nunca tenha encontrado um capítulo tão lindo quanto o do Carrossel. Talvez eu nunca tenha pagado um mico tão grande chorando no ônibus lendo isso. Talvez, só talvez.


Menções honrosas:

Laranja Mecânica (Anthony Burgess);
Fahrenheit 451 (Ray Bradburry);
A Paixão segundo G.H (Clarice Lispector);
Assim falou Zaratustra (Friederich Nietzsche);
Mal Entendido em Moscou (Simone de Beauvoir).

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Digressão na Liberdade



Fico ouvindo músicas em um loop quase eterno, sem vontade de outra coisa, sem vontade de fazer qualquer outra coisa senão o que amo mais que tudo. E estar em sala me deixa mais feliz que qualquer outra coisa. Sou uma grande exceção entre milhares de regras. O carinho enorme que recebo em troca de simplesmente estar ali, por simplesmente deixar pensar. E pensar muda, pensar tem força e que força! Uma força enorme que quase não pode ser medida, medida em sonhos de adolescentes que são sempre esquecidos por todos. Esses jovens que querem tudo agora e não podem ter metade das coisas que gostariam. E tudo se faz para que não tenham, para que jamais saiam de onde estão, querem cabeça baixa e uma humildade quase servil deles, porque são pobres, são negros. Ouvir alguém dizer “você ajudou muita gente aqui”, eles gostam tão verdadeiramente de mim que querem que eu seja livre dizem que “minha liberdade vai cantar”, quero que cante a liberdade deles. O mundo virou as costas para eles, esquecem que eles são importantes, importantes de mais. Quero que sejam, sobretudo, passarinhos que voam, voam. Mas quando é hora de voltar, voltam. Quero que sejam seres pensantes... E na medida dessa liberdade que eles buscam, que sejam felizes, tão felizes quanto puderem ser. E neles existe luz, muita luz cheia de fragmentos coloridos que procuram encontrar a unidade dessas cores todas, seja no preto, seja no branco. São jogo de cores, são jogo de histórias, são jogo de sentimentos. Fortes e resistentes, centenas de filhos que são meus filhos emprestados por algum tempo. E cuido com o coração e deixo que se transformem em seres humanos melhores. É difícil deixar ir embora, mas eles vão. Eu também vou. Vamos voar, vamos encontrar abrigo na saudade e na memória um do outro.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Digressão no Tempo



    Já faz quanto tempo? Tempo demais. Tempo, tempo. Essa coisa estranha que não volta, não dá para viver sem. Ele fica no passado, presente e futuro e todos nós, minúsculos, ficamos a sua mercê. Aos doze queremos ter dezoito e o tempo nunca passa, mas quando chegam os dezoito, ele não para. Simplesmente continua fluindo. Nosso corpo sente o fluir do tempo, ele vai ficando cansado, mais fraco, ainda que esteja forte, não é o mesmo. O tempo cinza me faz nostálgico, a semana pesada me faz saudoso. Saudoso de tantas coisas que sei que não voltam mais, ficam na memória para sempre.

   Lembro dos dias cinzas de quinze anos atrás, quando eu era uma criança e ainda não tinha muita noção do que era o mundo. Lembro de ficar enrolado nas cobertas vendo desenhos na televisão, lembro do meu pai fazendo chocolate quente para mim sempre que começava Batman. Lembro do cheiro, do gosto e da textura. Lembro de ficar empolgado com a minha vida, minha vida que já tinha começado e estava numa das melhores partes. Mas a gente nunca sabe quando é a melhor parte. Ela fica acontecendo meio escondida, meio sem dizer nada e quando vai embora, deixa como um buraco no peito que não é preenchido mais.

    As pessoas que foram como cometas em nossas vidas e aquelas que são estrelas e não cessam jamais de brilhar no nosso céu. Brilham como se fossem eternas e depois que vão embora, continuam ali brilhando, não se apagam até nós mesmos nos apagarmos. E nós, quando nos apagamos ainda brilhamos para outras pessoas e assim fica de nós um eco, um eco bonito de som brilhante. Quase como o riso de uma criança. E as crianças guardam no sonho as histórias que contamos, guardam na mente o exemplo que nos tornamos. Guardam no coração os abraços que lhes damos. Ficamos lá: muito bonitos.

    Os corações quebrados se emendam, ficam rachados até alguém chegar e massageá-los e as rachaduras somem, viram tatuagens que ficam ali nos lembrando do que fomos, mas sem nos impedir de seguir em frente e de amar outra vez. Ficam lá, tão bonitas e inesquecíveis que queremos sempre exibir. As mesas viram, o jogo vira e nós continuamos. Como numa visão do futuro, galopamos por campos muito verdes com riachos que não param, sentimos o vento frio cortando o rosto de um jeito gostoso e o cheiro das flores enquanto corremos, corremos e nos tornamos, nós mesmos, o próprio vento.

    Lembramos que as pessoas não são só aquelas que pensam e se parecem conosco, porque seguimos pegadas de um estranho e descobrimos coisas que nunca soubemos antes. Coisas novas e incríveis e muito bonitas, muito importantes. Descobrimos coisas únicas, pequenas diferenças que fazem das pessoas partes de um quebra-cabeças muito instigante de se montar, empenhamos um longo tempo decifrando esse quebra-cabeça e nunca chegamos a nos arrepender. E é impossível compreender, porque todos estão num movimento constante, numa evolução que não para.

    Mas já faz quanto tempo mesmo? Tempo demais.