terça-feira, 31 de maio de 2016

Alice/Leonardo


À todos aqueles que são anormais, a luta é o que torna sangue em espírito.

-E se eu quiser ser diferente?

Ela estava completamente nua diante do espelho grande que ficava no quarto de seus pais. Aquele corpo moreno e magro, sem curvas a incomodava. Ali, entre as pernas, algo que não deveria estar. Ela estava sozinha, a música que vinha do seu quarto era uma das mais melancólicas de todas. Não existe amor em SP do Criolo. Ela sabia a letra de cor. E ficava repetindo mentalmente o tempo inteiro. Aquele corpo não era dela. Seu nome de nascença era Leonardo, mas ela nunca tinha sido aquele menino que seu pai queria que gostasse de futebol, ela nunca tinha sido aquele garoto que as crianças na escola diziam que ela tinha que ser, porque ela era um menino, não importava o que ela sentia de forma nenhuma. Ela tentava esconder seu órgão enquanto se olhava no espelho, sem muito sucesso. Nos braços e nas pernas cicatrizes que a lembravam de momentos que nenhum ser humano gostaria de se lembrar. Aqueles cortes tinham sido feitos para aliviar uma dor que, na verdade, não podia ser aliviada de forma alguma.

-Qual meu nome?

Como ela poderia se chamar em uma vida que não existia e que, provavelmente não existiria jamais. Não, eles estavam todos lutando por terminar com toda aquela pouca vergonha que ela sempre havia representado. Não havia absolutamente nada que a pudesse absolver de todo aquele pecado que ela encarnara desde que conseguia se lembrar, desde que tinha consciência de ser um ser pensante. Que pensamento? Pensamentos impuros. Os meninos da escola e seus músculos que cresciam conforme eles se exercitavam. Os meninos suados jogando bola, e ela tentando disfarçar o indisfarçável com aquele medo, aquele medo que persegue todas essas pessoas que não são pessoas perante aos normais. “Qual meu nome?”. Parecia óbvio, afinal de contas, ela só poderia ter um nome infantil, já que a vida que queria era um sonho infantil de verdade: Alice.

-Como eu seria?

Ela se perguntava como seria seu corpo, como seriam seus cabelos se fossem compridos. Como seriam os batons que usaria, de que cor? Vermelhos, quanto mais vermelhos, melhor. Seria assim. Seria a mais bela de todas as Alices do mundo. Guardaria o sonho infantil com ela, disso tinha certeza. Guardiã dos sonhos dos diferentes. Uma lágrima caiu naturalmente rolando pelo rosto que não lhe pertencia. Nunca pertenceu, não pode pertencer porque ela nunca foi Leonardo. Respirou fundo e decidiu que não queria mais fazer qualquer pergunta a si mesma. Deu um soco no espelho que rachou, tirou um pedaço pontiagudo que ficou sujo daquele sangue... O sangue era dela. Ela era puro sangue. Sangue doce. Sangue amargo. Nunca sangue com gosto de sangue, nunca sangue com gosto de sangue. As lágrimas se misturaram com o vermelho e ela começou a cortar o pescoço. Não havia mais nada que pudesse fazer, ninguém mais que pudesse ser. Ela queria ser espírito, espírito porque poderia voltar – esperava isso – e ser quem queria ser. Queria ser Alice.


Ninguém na família chorou por Alice, a mãe chorou por Leonardo e o pai nunca derramou uma lágrima. Outros choraram por Alice, e também por Leonardo. Outros que ela nunca conhecera, aqueles que com ela eram parecidos e que se faziam as mesmas perguntas. Aqueles outros que eram sangue, tornaram-se espíritos. Todos se tornaram espírito em terra e lutaram com força, com raiva, com amor, com vontade, com sangue e suor. Lutaram.

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