quinta-feira, 20 de agosto de 2015

Distopias Reais



Nos últimos anos diversos títulos no mundo da Literatura e Cinema infanto-juvenil têm sido lançados com um tema em comum: distopias. O boom se iniciou com o incrível Jogos Vorazes da norte-americana Suzanne Collins. Na história, os Estados Unidos agora se chamam Panem e o momento cronológico é incerto. Tudo o que sabemos é que se passa em algum momento no futuro, um futuro pós-apocalíptico? Pós-guerra? Que futuro é esse? Essa é uma das questões que as pessoas se esquecem de perguntar quando da leitura desse – ou de outros – livro.

A questão é que Jogos Vorazes nada mais é que a ponta do iceberg, ele não é um livro revolucionário da literatura infanto-juvenil, ele é apenas uma retomada de um assunto que não deveria nunca ter sido abandonado (especialmente no solo do tio Sam). A questão da destruição que o ser humano é capaz de causar por diversos meios é uma discussão que permeia toda nossa sociedade. Vemos a opressão a cada esquina, basta prestar atenção.
Mas, não vamos nos apressar. Em primeiro lugar, vejo muitos adolescentes lendo essa série, ou Divergente, entre tantas outras sem saber de fato qual o significado da palavra “distopia”. Ora, seria justamente a utopia que deu errado. Portanto, um estado imaginário onde vive-se em condições de extrema opressão. É esse cenário que liga todas essas obras... Na verdade, eu disse que Jogos Vorazes não era uma obra revolucionária, mas uma retomada. Sim, podemos destacar alguns outros livros escritos no século XX que são as grandes obras distópicas da humanidade, das quais, com certeza Collins tirou alguma inspiração.



A primeira dessas obras lançadas foi a do inglês Aldous Huxley, o livro intitulado Admirável Mundo Novo (Brave New World) lançado em 1932 conta a história de uma Inglaterra no futuro (mais ou menos pela metade do século XXI), onde alguns conceitos básicos da humanidade foram transformados. Por exemplo: a figura de Deus – o deus judaico-cristão, ou as divindades orientais – foi completamente abolida. Agora, seu Deus é algo mais palpável, representável e provável a partir da história, e tem um nome: Ford. Sim, Henry Ford que revolucionou a Indústria ao propor a linha de montagem de forma barata, onde o burguês médio poderia comprar um carro. O boom da produção e da ideologia do consumo. A questão em Admirável Mundo Novo é um pouco mais complexa, a linha de montagem não é de automóveis, mas de seres humanos. Outro conceito modificado então: não existe mais o núcleo familiar, não existem mais as figuras de pai ou mãe. Os seres humanos são desenvolvidos em laboratório (ou fábricas, melhor dizendo) e são, desde sua concepção, divididos em castas e condicionados para estarem felizes em suas próprias castas. Quando o incontrolável ocorre, ou seja, quando se pensa na sua condição, quando se questiona seu lugar no mundo, logo o indivíduo pode deixar essa angústia de lado tomando uma droga chamada “soma” que os deixam em estado de êxtase quase que instantâneo, afastando toda a dor e atraindo uma felicidade que durará enquanto houver o “soma”, no melhor estilo epicurista da questão.

Nesse mundo novo, existe uma pessoa que “deu errado”, algo em sua produção foi aplicada em uma dose diferente dos outros de sua casta, essa pessoa, Bernard Marx (tal como o filósofo Karl Marx), está sempre questionando sua condição e a organização desse mundo em que vive, além de se recusar a tomar o soma quando está deprimido. Ao invés disso, ele se pergunta por que está deprimido. É aí que passa a investir na Beta Lenina (uma versão feminina de Lênin?), porém, no mundo novo o amor não existe, é um tipo de fraqueza e a monogamia é algo desprezível e proibido, o correto é que se tenha quantos parceiros sexuais possíveis – essa sexualidade já é condicionada nos próprios bebês -, assim ele convida Lenina para passar as férias numa reserva selvagem. Acontece que essa reserva é onde estão as pessoas que não se encaixam na sociedade, ou seja, as pessoas primitivas, aquelas que ainda tem um Deus, que ainda acreditam no amor, na monogamia, no casamento. É nessa viagem que as coisas começam a mudar e Marx encontra um Selvagem (John) que muda todo o rumo da história, mas de sua própria e jamais da sociedade. Aí está a dureza da obra de Huxley, ou mesmo a dureza da sociedade que ele prevê em sua obra.



Em 1953, o norte-americano Ray Bradburry lança mais uma obra distópica: Fahrenheit 451. O próprio título da obra já denuncia sua essência. É essa a temperatura na qual um livro pega fogo. Aí está a crítica de Bradburry: seu personagem central, Montag, parte da brigada de bombeiros que é usada não para apagar incêndios, mas para queimar livros, passa a questionar a condição em que vive, seu trabalho, seu país – que já passou por três Guerras Nucleares – e até mesmo seu casamento, quando conhece a jovem Clarisse. A menina se pergunta por que os livros são proibidos e questiona-se se a história é realmente aquela contada na escola.


A questão de 451 é a manipulação da história por meio da proibição dos livros, além do controle social, ou de um biopoder, como diria o filósofo francês Michel Foucault, por meio dessa proibição. A questão é que uma pequena fagulha pode colocar fogo em toda uma sociedade. É graças a Clarisse que Montag passa a questionar as coisas ao seu redor e acaba percebendo que as coisas não são o que parecem. O livro é uma ode à Literatura, várias homenagens aos grandes Clássicos da Literatura (inclusive a Bíblia) são feitas. Dentre eles, destaca-se a homenagem à 1984.



Em 1949, George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair lança sua obra-prima 1984. Nesse futuro (que já se faz passado) o mundo está dividido em três Superestados que foram criados a partir das ideologias do final do século XIX e começo do século XX. Na obra, Orwell faz uma série de citações históricas reais como ao Nazismo ou ao Socialismo russo. E a crítica feita no livro é justamente em relação aos regimes totalitários e ao seu horror. O livro conta a história de Winston e de seu desenvolvimento intelectual e conhecimento daquilo que é chamado de O Partido. O Partido é controlado por uma figura que personifica todo o poder: O Grande Irmão (Big Brother) que a tudo vê, de tudo sabe, o controle é tanto (mais uma vez evocando Foucault) disciplinar, ou seja, individual, quanto de bipoder e, portanto, coletivo. Vale ressaltar que a descrição física desse rosto que aparece nas telas de todas as pessoas do mundo de 1984 lembra muito a figura de Hitler.

Toda a história se desenrola a partir dos pensamentos proibidos de Winston e de como ele se coloca contra o todo-poderoso Partido e como despreza a figura d’O Grande Irmão. No meio do caminho ele conhece Julia por quem se apaixona, num mundo onde o amor também é proibido, pois distrai e leva à reflexão. Tudo, absolutamente tudo que levar à reflexão é um crime gravíssimo, passível de morte. Para isso, o Partido dispõe do que Orwell chama de Polícia das Ideias, controla-se completamente até mesmo os pensamentos de cada indivíduo. Descobrimos que o Partido chegou ao poder levantando a bandeira do Socialismo, mas que abandonou suas ideias única e exclusivamente em nome do poder pelo poder. A sociedade de 1984 ainda é dividida em classes sociais – como o Capitalismo – onde temos os Membros Internos (os governantes), os Membros Externos (a classe média) e os Proletas (os próprios proletários). Nada mudou, pelo contrário, tudo apenas piorou.



O poder continua situado nas mãos de alguns poucos que comandam todas as coisas a seu bel prazer, a classe média continua sendo constituída de ovelhas, sendo o rebanho burro, acomodado e acéfalo que permite que tudo seja feito enquanto tudo estiver bem para eles próprios. Os proletários nunca deixaram de ser proletários e são esquecidos nas periferias das cidades. São “animais” que servem única e exclusivamente para trabalhar. Orwell já havia levantado a questão de forma mais breve e menos detalhada em seu livro de 1945 A Revolução dos Bichos, numa crítica direta ao regime Stalinista na União Soviética. Aqui a crítica abrange não só ao regime de Stálin ou de Hitler, mas também ao Capitalismo em si. Sua crueldade, sua perversidade perante à humanidade e como estamos completamente fechados e presos ao Poder que está em absolutamente todos os lugares, principalmente no discurso de condicionamento da população, em especial da classe média. Enquanto a classe média for controlada, todo o resto estará perdido. Já dizia Marx que, infelizmente, e essa a classe revolucionária.



Em alguns trechos do livro, Orwell faz um resumo d’O Capital de Marx (sem a parte da economia), e explica como as coisas chegaram onde chegaram e é, sem dúvidas, um dos trechos mais apavorantes de toda a obra, pois podemos facilmente fazer uma analogia com os nossos tempos.




Disse que Jogos Vorazes retomava esse assunto, essa temática. E retoma bebendo, claramente, dessas três fontes. Tudo o que liga essas distopias são as questões do poder pelo poder e, principalmente, da exploração da maioria, necessária para que alguns poucos possam se mantes confortáveis e no poder. Críticas sociais e políticas como essas vem sido feitas há anos, mas geralmente elas ficam sempre na crítica. Surpreende como o próprio Capitalismo absorve as críticas que são feitas a ele e as transforma em mais dinheiro. Não precisamos pensar muito para perceber isso. Quantas camisetas de Che Guevara você viu nos últimos anos? Quantos milhões de dólares as adaptações cinematográficas de Jogos Vorazes arrecadaram? A vida é tão realista quanto Admirável Mundo Novo, Fahrenheit 451, 1984 e Jogos Vorazes. A questão que fica é a mesma para todos: quando a verdadeira revolução será feita? Ou melhor, quando os proletários farão, por fim, essa revolução? É pra se pensar.

domingo, 16 de agosto de 2015

A Prova



Ao final do ano passado, enquanto lecionava Sociologia nos três anos do Ensino Médio em uma escola no bairro da Bela Vista/Bixiga, decidi trabalhar com todos os meus alunos o sistema prisional do ponto de vista de Michel Foucault em sua análise de Vigiar e Punir. Além disso, meu objetivo era mostrar como a escola estava sucateada e defasada e por de mais parecida com as prisões que existem pelo Brasil afora. Fiz isso pensando em todos, mas confesso que pensei mais em alguns do que em outros. Na escola em que leciono já por quase três anos, existe uma incidência de criminalidade juvenil muito alta. Temos diversos alunos que são “liberdade assistida”, ou seja, que estão sob uma espécie de condicional da Fundação Casa.

Meus alunos têm diversos problemas. A grande maioria deles não tem estrutura familiar, ou moram com a avó, alguns com tios e tias, outros apenas com o pai ou a mãe e mais uma porção de irmãos. E tudo isso em espaços físicos minúsculos nos cortiços e pensões espalhadas pelo bairro de Adoniram Barbosa. Aí está uma das contradições: a Bela vista, ou o Bixiga, é um bairro tradicional de São Paulo. É lá que estão localizadas algumas das melhores cantinas da cidade (quiçá do Brasil), ali acontece a famosa festa de Nossa Senhora da Achiropita – patrocinada pela rede Globo e o Bradesco e que atrai milhares de pessoas em todos os finais de semana de Agosto, todos os anos – e também é o lar da tradicionalíssima e campeã escola de samba Vai-Vai.

Quando coloquei meus pés naquela escola, percebi que ela era completamente diferente da escola na qual eu estudei no ensino médio – que também era uma escola estadual -, essa escola tinha diversos problemas. Alguns de nossos alunos vão à escola para comer na parca merenda que é oferecida. Quase nenhum de nossos alunos vai à escola estudar, essa é a última de suas preocupações. Logo percebi. Aliás, jamais fui lecionar com a ilusão de que daria aulas como nos filmes. Nunca tive o objetivo de ensinar Filosofia a nenhum deles, a não ser quando a sala me permitisse. Meu objetivo sempre foi fazê-los perceber a violência que sofrem todos os dias, a opressão pela qual passam e tentar, de alguma forma, fazê-los refletir sobre suas próprias vidas e tentar melhorar da forma que pudessem. Tive ajudas do além-túmulo para isso, com certeza. Um Marx aqui e um Foucault ali fazem uma diferença assombrosa. Um Paulo Freire faz toda a diferença.

Escutei diversas vezes meus colegas dizendo que os alunos não estão interessados em estudar, que eles vão à escola para socializar. O que mais pode se esperar de jovens que não podem ter, pois foram privados, de uma vida de jovens? O que mais pode se esperar de jovens negros, em sua maioria, com pais vindos do nordeste, que não tem qualquer cultura (dita cultura), que são taxados com cara de “bandidos” e “marginais” – inclusive pelos próprios professores que poderiam, no mínimo, tentar entender qual a realidade de seus alunos -, de jovens que nunca tiveram onde ou com o que brincar? O que se pode esperar de jovens que, ao contrário dos filhos da democracia, dos filhos dos caras-pintadas, dos filhos das diretas-já, não podem ter um tênis, uma blusa ou um celular? 

Todos nós somos oprimidos pela máquina do Capitalismo, mas eles são muito mais. Eles são esquecidos, largados. A escola está esquecida e largada. Isolada, entre portas e vidros quebrados, salas de aula se piso, professores destruídos pela desvalorização e a humilhação de vinte anos de um governo que presa única e exclusivamente pelo individualismo da classe média, de um governo que vem colocando em prática um plano de marginalização dos jovens negros, nordestinos e pobres, para que eles sejam apenas mão de obra barata (a que se paga quase nada). O que se espera de jovens assim? Cito um dos meus alunos que, hoje vai embora desse mundo e será esquecido para sempre pelos grandes, que não terá repercussão nenhuma na mídia já que não era filho de governador:


“(...) Não estou falando que é certo cometer crimes, mas muitos não têm opção de trabalho, de estudo, e ter uma família, e sabe quem adota a maioria desses menores infratores? O crime organizado. Ele que dá chance de você ter um tênis da hora, um relógio da hora, um carro da hora, mas todo mundo sabe que a VIDA BANDIDA só tem dois caminhos: PRISÃO ou CAIXÃO. Mas a maioria das vezes, a prisão não faz efeito em ninguém, porque lá atrás das grades não tem recuperação, só alimenta o ódio que nós temos no coração.”


Esse é um trecho de uma redação que pedi que os alunos escrevessem sobre o sistema prisional brasileiro no final do ano passado. Guardei essa prova desde então, porque disse a mim mesmo que se tivesse a oportunidade, ajudaria esse menino da forma que eu pudesse. Esse semestre, trabalharia o romance Capitães da Areia com a sala dele e, mais uma vez, pensando em todos, mas mais em outros, tentaria ajudar de alguma forma. Infelizmente o tempo não permitiu. O que mais chamou minha atenção nessa prova foi a sinceridade com a qual ele relatou tudo – tudo pelo que vinha passando – e como eles possuem a consciência do que os espera. Como você se sentiria sabendo que a prisão ou o caixão são seus únicos caminhos? Ou, pelo menos, são os dois únicos que é possível ver naquele momento? São esses jovens esquecidos que o congresso quer colocar atrás dessas grades que só alimentam o ódio aos dezesseis anos.


Hoje é 16 de Agosto de 2015 e muitas pessoas vão às ruas pedindo o impeachment da Presidenta: pra quê? Porque pensam apenas em si mesmos, não é verdade que estão pensando no Brasil. Os militares também se vangloriavam do mesmo discurso quando deram o golpe em 1964. O povo brasileiro carece de empatia. O povo brasileiro carece de realidade, não a realidade manipulada e massificada que lhes é oferecida pelo Jornal Nacional todas as noites, a realidade crua daqueles que não tem pra onde correr. Não tem porque essa classe dita média, mas que de média só tem baixa, não quer o trabalho pesado, aceita, silenciosamente e de forma servil e ignorante os crimes que se cometem contra os pobres. Nenhum país é destruído apenas por um governo (seja ele do PT, do PSDB, do PMDB ou de qualquer sigla que não representa o que simboliza), o país é também destruído pela sua população. Nós destruímos o Brasil, então se você for sair pra rua hoje, peça o seu próprio impeachment, pois você deixa o pior acontecer com quem já não tem nada. Você e a sua ignorância, a sua covardia. Você e a sua estupidez, o seu egoísmo que não conseguem ver além da conta bancária e que acreditam que a culpa de uma crise econômica de proporções mundiais é de uma pessoa. Estude, classe média. Mas mais do que estudar, vá para a rua ver o que acontece.