À
todos aqueles que são anormais, a luta é o que torna sangue em espírito.
-E se eu quiser ser
diferente?
Ela estava completamente
nua diante do espelho grande que ficava no quarto de seus pais. Aquele corpo
moreno e magro, sem curvas a incomodava. Ali, entre as pernas, algo que não
deveria estar. Ela estava sozinha, a música que vinha do seu quarto era uma das
mais melancólicas de todas. Não existe
amor em SP do Criolo. Ela sabia a letra de cor. E ficava repetindo
mentalmente o tempo inteiro. Aquele corpo não era dela. Seu nome de nascença
era Leonardo, mas ela nunca tinha sido aquele menino que seu pai queria que
gostasse de futebol, ela nunca tinha sido aquele garoto que as crianças na
escola diziam que ela tinha que ser, porque ela era um menino, não importava o
que ela sentia de forma nenhuma. Ela tentava esconder seu órgão enquanto se
olhava no espelho, sem muito sucesso. Nos braços e nas pernas cicatrizes que a
lembravam de momentos que nenhum ser humano gostaria de se lembrar. Aqueles
cortes tinham sido feitos para aliviar uma dor que, na verdade, não podia ser
aliviada de forma alguma.
-Qual meu nome?
Como ela poderia se
chamar em uma vida que não existia e que, provavelmente não existiria jamais.
Não, eles estavam todos lutando por terminar com toda aquela pouca vergonha que
ela sempre havia representado. Não havia absolutamente nada que a pudesse
absolver de todo aquele pecado que ela encarnara desde que conseguia se
lembrar, desde que tinha consciência de ser um ser pensante. Que pensamento?
Pensamentos impuros. Os meninos da escola e seus músculos que cresciam conforme
eles se exercitavam. Os meninos suados jogando bola, e ela tentando disfarçar o
indisfarçável com aquele medo, aquele medo que persegue todas essas pessoas que
não são pessoas perante aos normais. “Qual meu nome?”. Parecia óbvio, afinal de
contas, ela só poderia ter um nome infantil, já que a vida que queria era um
sonho infantil de verdade: Alice.
-Como eu seria?
Ela se perguntava como
seria seu corpo, como seriam seus cabelos se fossem compridos. Como seriam os
batons que usaria, de que cor? Vermelhos, quanto mais vermelhos, melhor. Seria
assim. Seria a mais bela de todas as Alices do mundo. Guardaria o sonho
infantil com ela, disso tinha certeza. Guardiã dos sonhos dos diferentes. Uma
lágrima caiu naturalmente rolando pelo rosto que não lhe pertencia. Nunca
pertenceu, não pode pertencer porque ela nunca foi Leonardo. Respirou fundo e
decidiu que não queria mais fazer qualquer pergunta a si mesma. Deu um soco no
espelho que rachou, tirou um pedaço pontiagudo que ficou sujo daquele sangue...
O sangue era dela. Ela era puro sangue. Sangue doce. Sangue amargo. Nunca
sangue com gosto de sangue, nunca sangue com gosto de sangue. As lágrimas se
misturaram com o vermelho e ela começou a cortar o pescoço. Não havia mais nada
que pudesse fazer, ninguém mais que pudesse ser. Ela queria ser espírito,
espírito porque poderia voltar – esperava isso – e ser quem queria ser. Queria
ser Alice.
Ninguém na família chorou
por Alice, a mãe chorou por Leonardo e o pai nunca derramou uma lágrima. Outros
choraram por Alice, e também por Leonardo. Outros que ela nunca conhecera, aqueles
que com ela eram parecidos e que se faziam as mesmas perguntas. Aqueles outros
que eram sangue, tornaram-se espíritos. Todos se tornaram espírito em terra e
lutaram com força, com raiva, com amor, com vontade, com sangue e suor.
Lutaram.