Respira fundo, se
concentra na sua respiração e não deixa a cabeça perder o controle... ou, não
deixa você mesmo perder a cabeça. O mundo não é fácil mesmo, mas não tem que
ser tão difícil. A dor e o sofrimento estão aí, não tem pra onde fugir, mas é
preciso encarar de frente como você sempre fez, não deixar que as coisas fujam
do controle. Você sempre enfrentou tudo muito bem, da melhor forma que pôde. É
que os últimos anos têm sido realmente pesados e às vezes você perde a
respiração, e isso é normal. Não é preciso se preocupar. O peito dói, mas você
precisa respirar fundo e entender que você está vivo e que nenhum tipo de medo,
pânico ou pavor podem te controlar. Você é bem mais forte que isso, você é fighter e como tal não pode desistir de
lutar, embora seja necessário que você baixe a guarda às vezes, baixe a guarda
para que os outros possam entrar na sua vida. Respira fundo, se concentra na
sua respiração. Toma um chá de camomila bem quentinho, porque nesse frio é
disso que a gente precisa: chá, um par de meias, cobertas, seu cachorro com a
cabecinha apoiada nas suas pernas, um filme ou um livro e amor. Amor das
pessoas que você sabe que te amam. Antes, quando você perdia o controle tinha
alguém em quem você descontava, hoje você desconta em si mesmo. Ainda bem,
ninguém merece apanhar pelos seus sentimentos, e ter consciência disso não é
algo ruim, é só você saber que tem sempre que melhorar. Então melhora. Respira
fundo, se concentra na sua respiração. Tem muita gente que precisa de você
sóbrio, sem medo, corajoso como sempre foi. Lembra quando sua mãe te perguntou
e você, chorando, disse que era. E o que veio depois, embora você fosse muito
novo para saber, foi uma sensação de liberdade quase que divina. Lembra que não
importa o que os filósofos te digam, você é livre sim, tão livre que pode fazer
tudo aquilo que quiser. Vê se consegue se lembrar de tudo que você tem de bom.
Coloca na sua mente os sorrisos dos seus amigos naqueles dias, e que o sorriso
fixo que eles vão repetir pra sempre naquelas fotografias são reais. E das tuas
crianças que você mudou de alguma forma, elas vão pro mundo e lá vão descobrir esses
medos e esses pânicos que você sentiu. E sua avó que já foi, sua tia que tá
sofrendo, você não precisa ser igual a elas, você pode ser muito mais feliz por
elas. Segura essa ansiedade, porque como uma personagem da sua infância dizia:
vai dar tudo certo.
"[Sócrates] - Ah, como desejaria ver-te preservar! Tenho, porém, um grande medo. Não que desconfie de tua natureza, mas, constatando a potência de nossa cidade, temo que ela nos vença, tanto a ti quanto a mim" (Platão, Alcíbiades, 135e)
terça-feira, 23 de agosto de 2016
domingo, 12 de junho de 2016
Desabafo
Tem dias que respirar
fica difícil. Acordar num dia frio e descobrir que cinquenta pessoas inocentes
foram assassinadas enquanto viviam suas vidas, foram assassinadas porque eram
diferentes.
Até que ponto eu não
estou sujeito a isso? Eu sempre soube dentro de mim tudo o que eu desejei, tudo
o que eu sou. Não houve um momento de dúvida real para mim, tudo sempre foi
muito claro. Eu tenho um orgulho imenso de quem sou, do que sou e de tudo o que
represento, tenho um orgulho imenso de lutar todos os dias por mim e pelos
outros. Enquanto eles dizem que homofobia não existe, pessoas são mortas por
serem homossexuais. Enquanto eles dizem que cultura do estupro não existe,
mulheres são estupradas diariamente. Enquanto isso nós somos meros ativistas
virtuais? O que acontece com o real depois disso? O real continua negando o seu
redor e aquilo que o constitui?
Caralho. Como dói. Eu
sinto uma dor no peito de tanta angústia, de não estar na rua agora, com todos
aqueles LGBTs que saem de casa na Parada, gritando, chorando, abraçando e
beijando. Respeitando. Orando. Rezando. Rindo. Brilhando, como sempre fizemos.
Nós sempre brilhamos. Brilhamos na hora de dançar, na hora de cantar. Diziam
que eu era um sol, tanta luz, tanta cor. E de repente, tudo fica preto e branco
e não sobra lugar pra correr, não sobra lugar nenhum onde você se sinta seguro.
O Brasil hoje vem
enfrentando uma crise terrível, uma crise sem precedentes. Uma crise onde tudo
o que é parte do passado parece ser melhor do que aquilo que é parte do futuro,
mas o passado posto no presente, causa morte, dor, sofrimento. Ele mata o filho
de dez anos da mulher que não teve nenhuma condição de cria-lo. Ele estupra uma
mesma menina trinta vezes. Ele mata cinquenta pessoas por ódio. Como dói. Dói
em mim porque sou parte dessas pessoas que morreram, sou luz, brilho e cor como
eles. E tenho MUITO orgulho de ser assim. Tem dias que respirar fica difícil,
hoje é um deles.
terça-feira, 31 de maio de 2016
Alice/Leonardo
À
todos aqueles que são anormais, a luta é o que torna sangue em espírito.
-E se eu quiser ser
diferente?
Ela estava completamente
nua diante do espelho grande que ficava no quarto de seus pais. Aquele corpo
moreno e magro, sem curvas a incomodava. Ali, entre as pernas, algo que não
deveria estar. Ela estava sozinha, a música que vinha do seu quarto era uma das
mais melancólicas de todas. Não existe
amor em SP do Criolo. Ela sabia a letra de cor. E ficava repetindo
mentalmente o tempo inteiro. Aquele corpo não era dela. Seu nome de nascença
era Leonardo, mas ela nunca tinha sido aquele menino que seu pai queria que
gostasse de futebol, ela nunca tinha sido aquele garoto que as crianças na
escola diziam que ela tinha que ser, porque ela era um menino, não importava o
que ela sentia de forma nenhuma. Ela tentava esconder seu órgão enquanto se
olhava no espelho, sem muito sucesso. Nos braços e nas pernas cicatrizes que a
lembravam de momentos que nenhum ser humano gostaria de se lembrar. Aqueles
cortes tinham sido feitos para aliviar uma dor que, na verdade, não podia ser
aliviada de forma alguma.
-Qual meu nome?
Como ela poderia se
chamar em uma vida que não existia e que, provavelmente não existiria jamais.
Não, eles estavam todos lutando por terminar com toda aquela pouca vergonha que
ela sempre havia representado. Não havia absolutamente nada que a pudesse
absolver de todo aquele pecado que ela encarnara desde que conseguia se
lembrar, desde que tinha consciência de ser um ser pensante. Que pensamento?
Pensamentos impuros. Os meninos da escola e seus músculos que cresciam conforme
eles se exercitavam. Os meninos suados jogando bola, e ela tentando disfarçar o
indisfarçável com aquele medo, aquele medo que persegue todas essas pessoas que
não são pessoas perante aos normais. “Qual meu nome?”. Parecia óbvio, afinal de
contas, ela só poderia ter um nome infantil, já que a vida que queria era um
sonho infantil de verdade: Alice.
-Como eu seria?
Ela se perguntava como
seria seu corpo, como seriam seus cabelos se fossem compridos. Como seriam os
batons que usaria, de que cor? Vermelhos, quanto mais vermelhos, melhor. Seria
assim. Seria a mais bela de todas as Alices do mundo. Guardaria o sonho
infantil com ela, disso tinha certeza. Guardiã dos sonhos dos diferentes. Uma
lágrima caiu naturalmente rolando pelo rosto que não lhe pertencia. Nunca
pertenceu, não pode pertencer porque ela nunca foi Leonardo. Respirou fundo e
decidiu que não queria mais fazer qualquer pergunta a si mesma. Deu um soco no
espelho que rachou, tirou um pedaço pontiagudo que ficou sujo daquele sangue...
O sangue era dela. Ela era puro sangue. Sangue doce. Sangue amargo. Nunca
sangue com gosto de sangue, nunca sangue com gosto de sangue. As lágrimas se
misturaram com o vermelho e ela começou a cortar o pescoço. Não havia mais nada
que pudesse fazer, ninguém mais que pudesse ser. Ela queria ser espírito,
espírito porque poderia voltar – esperava isso – e ser quem queria ser. Queria
ser Alice.
Ninguém na família chorou
por Alice, a mãe chorou por Leonardo e o pai nunca derramou uma lágrima. Outros
choraram por Alice, e também por Leonardo. Outros que ela nunca conhecera, aqueles
que com ela eram parecidos e que se faziam as mesmas perguntas. Aqueles outros
que eram sangue, tornaram-se espíritos. Todos se tornaram espírito em terra e
lutaram com força, com raiva, com amor, com vontade, com sangue e suor.
Lutaram.
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