quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

De novo no "Café Insônia"

Voltei ao café todo em vermelho, com pessoas diferentes.


I
Marina não se sentia no lugar certo. Quando pensava bem, percebia que jamais havia se sentido assim, era como se absolutamente nada fosse o que ela pensou que seria. Havia feito todas as escolhas erradas. “É apenas uma crise da idade”, pensou ela no alto de seus vinte e cinco anos. A insônia que a acompanhava desde os dezoito, mas que havia dado uma trégua nos últimos tempos, voltara mais forte que nunca. No criado mudo que guardara de sua infância, branco, com um puxador dourado – completamente fora de moda – estava parado A hora da estrela, seu livro de insônia. Lembrava-se que a primeira grande crise a havia levado a ler aquele livro em uma única noite, provavelmente os efeitos da insônia, o desespero por não conseguir dormir, o torpor causado pelo sono excessivo e pela mente que não a deixava descansar, a fizeram sentir como a própria Macabéa. E desde então ela era essa Macabéa, ainda que menos subserviente, menos tomada por uma síndrome brasileira de vira-latas, um pouco mais apaixonada pela própria vida.
O som tocava um CD que ela mesmo fizera, com uma playlist apenas com baladas que ouvia quando mais nova. Marina possuía esse lado nostálgico, um tanto quanto vintage: gostava de sua coleção de CDs Pop e adolescentes. Enquanto o relógio marcava às 2 da manhã, Geri Halliwell cantava Walkaway. A voz rouca soava das caixas de som acompanhada de uma orquestra que dizia tanto quanto a letra da canção. Com um suspiro ela desistiu de pegar no sono. Sentou-se na cama e apoiou a cabeça sobre a mão, os olhos pesados deviam estar vermelhos de sono, mas ela não aguentava mais ficar ali parada esperando que algo acontecesse. O tempo urgia. O computador estava aberto em um documento meio escrito, de uma dissertação de mestrado que não lhe dizia mais absolutamente nada, seria concluída porque precisava daquilo para aumentar suas oportunidades no mercado de trabalho, mas nada mais além disso. Vestiu um par de calças jeans surradas que tinha, uma camiseta preta velha, com marcas brancas de desodorante debaixo das mangas, amarrou o tênis e desligou o som. Saiu do apartamento alugado na rua Augusta e desceu as escadas. Quanto mais se aproximava da rua, mais alguma coisa em seu estômago ia tomando conta dela. Uma espécie de bicho querendo sair, mas que ela não sabia como libertar.
Quando abriu a porta da rua, sentiu o ar fresco que soprava naquela noite de fevereiro. O carnaval se aproximava, era nítido no ar. Ela não sabia explicar, mas essas datas festivas sempre eram anunciadas pelo vento do Brasil. Em qualquer parte que for do país, ela imaginava ser possível saber qual seria a próxima comemoração: carnaval, páscoa, natal, ano novo. Ela sorriu de canto e resolveu descer a rua. O pequeno prédio antigo, completamente escondido, ficava na altura da rua Luís Coelho. Era uma quarta-feira à noite, e as ruas estavam desertas de gente. Alguns poucos boêmios adolescentes – provavelmente recém-formados no ensino médio, ainda sem faculdade, sem emprego – estavam ali bebendo uma garrafa de catuaba e falando alto sobre alguma série que assistiam. Marina percebeu que estava sem o telefone quando chegou no final da quadra, resolveu não voltar. Afinal, quem ligaria às duas da manhã de uma quarta-feira?
Os bares estavam todos fechados e o monstro em seu interior continuava a querer se libertar. Ela pensou que uma cerveja poderia ajudar, mas não havia lugar nenhum aberto à vista. Foi quando concluiu que não tinha o que fazer numa rua deserta de madrugada que percebeu uma placa de neon vermelho que piscava entre um boteco e alguma loja, o sinal dizia “Insônia Café”, ela riu daquele nome e o achou realmente apropriado. Decidiu que era o lugar no qual deveria entrar. A porta gasta era de madeira e vidro, a vitrine estava coberta por uma pequena cortina também vermelha. Ela sentiu o cheiro do café forte vindo de dentro do lugar assim que empurrou a porta e entrou. O lugar parecia uma lanchonete de beira de estrada daquelas que se vê nos filmes americanos, tinha um comprido balcão repleto de banquinhos gastos, algumas mesas sem toalhas, seis exatamente, com açúcar, sal, ketchup, mostarda e guardanapos, muito bem organizados. Duas das mesas estavam ocupadas: numa grudada à vitrine com a cortina fechada, estava um homem de pelo menos sessenta anos, um pouco calvo, com um nariz grande e as orelhas também, os cabelos que lhe restavam estavam cinzas, porém, levava poucas rugas em seu rosto. Na ponta do longo nariz, um par de óculos que o ajudava a ler um livro antigo e com as páginas amareladas. Na outra mesa, no extremo oposto do lugar, havia um rapaz com mais ou menos a mesma idade de Marina, os cabelos cacheados lhe enchiam a cabeça, fazendo com que ele lembrasse um anjo barroco. Os lábios eram carnudos e muito vermelhos, os olhos verdes estavam vidrados em um relógio acima do balcão.

II
Marina olhou aquela cena com cuidado, cuidado de não esquecer absolutamente nada daquilo que via ali. Sentiu que aquela cena poderia ser importante, mas não conseguia entender o motivo. Seus pensamentos foram interrompidos pela entrada de uma terceira pessoa, desta vez atrás do balcão surgiu uma travesti alta, fumando um cigarro e com uma volumosa peruca vermelha em sua cabeça, portava um bloquinho de notas e uma caneta que estava parada na orelha. Seus olhos fitaram Marina dos pés à cabeça, como se a analisasse e quisesse entender o que uma garota como ela estava fazendo ali. Então, depois de um momento, a travesti se dirigiu a ela com a voz que transitava entre o masculino e o feminino, mas com uma calma e docilidade invejáveis:
-Posso ajudar em alguma coisa, querida?
-Eu... – Quando disse a primeira palavra, tanto o velho quanto o rapaz a olharam imediatamente e ao mesmo tempo. Marina engoliu seco. – Vou querer só um café. Grande, por favor. – Respondeu ela se sentando no balcão.
-Puro?
-Sim, por favor.
A travesti se virou para a cafeteira cheia atrás dela, agarrou uma grande xícara branca e a colocou sobre o balão bem na frente de Marina, enchendo-a até quase o topo de um café preto e fumegante, com um cheiro delicioso. Ela agradeceu com o olhar, pegou a xícara com as duas mãos e levou, cuidadosamente, até os lábios. O gosto foi como uma enorme explosão de sabores dentro dela. Todo o seu interior foi aquecido por aquela bebida que ela considerou o melhor café do mundo.
-Está bom? – Perguntou a travesti que a observava atentamente sorrindo.
-Maravilhoso! Qual o pó? – O que se perguntava sobre um café tão bom? Essa foi a única coisa que lhe veio à cabeça.
-Segredo. – Respondeu ela sorrindo. – Mas, me diga... você nunca tinha vindo aqui, não é?
-Não. Para ser muito sincera eu nunca...
-Tinha reparado no lugar.
-Isso.
-É comum. As pessoas não reparam, mesmo. Só quem precisa pode encontrar esse lugar.
-Quando você diz assim parece até ser mágico.
-Magia é questão de ponto de vista, menina.
Marina parou alguns segundos e olhou aquela pessoa alta e sorridente, o batom vermelho estava manchando os grandes dentes brancos e aquilo a fez sorrir por dentro, como se fosse a coisa mais incrível que já havia presenciado em toda a sua vida. Ela queria conversar mais com aquela pessoa, mas não sabia o que dizer. De repente, uma pergunta lhe veio à cabeça e resolveu, sem muito deliberar, que perguntaria aquilo mesmo.
-O lugar é seu?
A travesti riu.
-De forma nenhuma, querida. Não teria dinheiro para abrir esse lugar.
-Por que é tudo vermelho?
Todo o lugar tinha toques vermelhos na decoração, foi a primeira vez que Marina reparou na música que tocava ao fundo, não conseguia reconhecer por mais que tentasse, mas era uma voz que sofria por algum motivo.
-Acho que o dono gosta assim. É a cor preferida dele.
-Quem é ele?
-Não o vejo desde que fui contratada. Eu só faço o meu trabalho. Quando dá meia-noite, abro, quando o relógio bate sete da manhã, eu fecho. Deixo tudo em ordem e tiro meu pagamento do caixa, o resto deposito em uma conta com um nome fictício. Pelo menos acho que é fictício, ele nunca me disse o nome de verdade.
-E você aceitou trabalhar assim?
-Ou era isso, ou era a prostituição, amor. Paga o aluguel e as contas.
-Você trabalha todos os dias?
-De quarta à domingo.
-Há quanto tempo?
-Nem me lembro mais.
-Qual seu nome?
-Monique. E o seu?
-Marina.
-Bem, Marina. A pilha de louça ali atrás não vai se lavar sozinha, se precisar de alguma coisa, é só me chamar.
-Obrigada, Monique.
Monique sorriu em resposta e passou por uma cortina que levava à cozinha. Marina deu mais alguns goles no café, o mais devagar que podia. A porta se abriu de novo. Uma mulher japonesa entrou parecendo um pouco exasperada. Os dois homens não a olharam, e Marina achou aquilo estranho, mas mais estranho foi quando percebeu que a mulher usava um kimono vermelho com estampas de borboletas brancas. Tentando recuperar um pouco da postura, ela se sentou ao lado de Marina que ficou paralisada.
-Oyasumimasu. – Disse ela em japonês, Marina entendeu que aquilo deveria significar “boa noite”.
-Boa noite.
A mulher não respondeu e continuou a olhar para o horizonte, ou para uma estante repleta de salgadinhos presa na parede à sua frente.
-Será que alguém pode me atender aqui? – Disse ela um pouco mais alto, parecendo impaciente. Monique saiu da cozinha parecendo mal humorada, ela não parecia ser o tipo de pessoa que gostava de ser pressionada.
-O que é? – Disse ela com a voz grossa.
-Quero um saquê morno.
-Não temos isso aqui.
A mulher parou por um instante, pareceu que perguntaria pelo cardápio, mas deve ter desistido quando continuou.
-Então uma dose de pinga com limão, ou será que não tem isso também?
Sem responder, Monique preparou uma dose caprichada de pinga e que, claramente, faltava limão e jogou o copo no balcão na frente da japonesa que pegou e tomou de um só gole.
-Está tudo bem? – Marina se arriscou a perguntar.
-Qual seu nome?
-Marina, e o...
-Michiru. Me chamo Michiru.
-É um prazer, Michiru.
-Que música deprimente. – Declarou ela depois de alguns segundos em silêncio. – O que é isso?
-Eu não sei, não consigo reconhecer...
-Será que aquela criatura pode mudar? Eu acabei de ser largada no altar. Queria algo menos deprimente.
-Monique? – Chamou Marina sem hesitar. Mas Monique não respondeu. – Eu posso ajudar em alguma coisa?
-Você teria um marido no seu bolso?
-Ah, não...
-Me desculpe. – Disse ela fazendo uma meia reverência, meio confusa entre costumes brasileiros e nipônicos. – Eu não devia trata-la assim, Marina-chan.
-Não tem problema, eu entendo.
Michiru sorriu e seus olhos encheram de lágrimas, e as lágrimas não aguentaram permanecer guardadas e rolaram pelo rosto da mulher que não fazia nenhum som, mas permanecia olhando para Marina. Ela não sabia o que fazer, e quase que instintivamente, passou um dedo sobre a face de Michiru secando uma de suas lágrimas. Aparentemente o gesto apenas piorou a situação, porque a mulher começou a chorar mais e mais desesperadamente. Quando perdeu novamente toda a sua compostura japonesa, abraçou Marina e soluçou enquanto chorava. Quando as lágrimas provavelmente se acabaram, Michiru disse:
-Se você não está apaixonada, não se apaixone. Amar é uma dor indizível, às vezes você perde completamente o controle dela e acaba sufocando e machucando a outra pessoa. Você obriga essa pessoa a fazer tudo aquilo que ela não quer fazer com você. É um estupro dos sentimentos de alguém. O amor é muito cruel, ele é mais cruel quanto mais tempo você leva para perceber que é só uma ilusão. E quando você percebe, está no altar, com toda a sua família olhando, esperando que algo aconteça, e absolutamente nada acontece. Porque ele nunca chega, ele nunca vai chegar.
Michiru disse tudo com quase um fôlego apenas, no tom de sua voz havia um misto estranho entre ódio, amor, desespero, ou talvez não fosse tão estranho assim. Provavelmente era mais comum do que Marina poderia pensar. Isso a remeteu à sua infância. Ela era uma menina de uns quatro ou cinco anos, muito tímida e com um complexo enorme de inferioridade. O parquinho da pré-escola estava cheio de crianças brincando, no gira-gira, brincando de esconde-esconde e de fazer castelinhos na areia. Marina olhava assustada o escorregador. Ele parecia tão grande, tão alto. Como ela poderia ter coragem de subir todas aquelas escadas e descer de lá de cima? O escorregador era o brinquedo preferido de seus amigos e todos insistiam para que ela brincasse nele, tímida, com a cabeça baixa, ela sempre dizia que não queria. Inventava alguma desculpa e continuava no chão, ia ao balanço e empurrava a si mesma. Um dia, aquela outra menina veio falar com ela. Ela era loira, com os cabelos cortados até a altura do queixo e com uma franja, ela sorriu banguela para Marina que ficou muito envergonhada.
-Vamos no escorregador, Marina? – Perguntou a menina com um sorriso na voz.
-Não, obrigada, Andréia. – Respondeu ela com a cabeça baixa.
-Por que você nunca vai brincar com a gente no escorregador?
Marina se surpreendeu com aquela pergunta, ficou vermelha e olhou para Andréia com os olhos confusos de uma criança que tem medo de responder o que um adulto lhe pergunta. Ela se lembrou daquela imagem como se fosse naquele mesmo momento. Até aquele momento, Andréia era a pessoa mais linda que Marina já vira em todos os seus quatro ou cinco anos de idade. Com a voz para dentro, ela respondeu:
-Eu tenho medo.
Andréia riu e disse erguendo a mão:
-Vem! Eu vou junto, não precisa ter medo!
Aquele provavelmente havia sido o amor mais inocente que Marina sentira em toda a sua vida, o primeiro de todos. Fechou os olhos com uma lágrima no canto do olho e um sorriso nos lábios. Ela não vira Andréia desde a sexta série quando a menina se mudou da vizinhança, desde então, toda a sua vida era completamente diferente. Da criança tímida já não sobrava muita coisa, do medo do escorregador, nada havia restado. Aquela lembrança lhe veio por algum motivo, havia algo que precisava dizer a Michiru que ainda ressonava ao seu lado.
-Às vezes... às vezes, o amor pode ser puro e inocente. Às vezes ele te amou, ou ama. Só que é mais companheirismo do que esse amor que você esperava, Michiru. Pode ser que ele seja seu amigo pelo resto da vida, mesmo que vocês nunca mais se encontrem. Pode ser que você se lembre dele como alguém que lhe fez muito bem. E talvez, daqui há uns anos, você consiga ver isso melhor. Não chore. Tudo vai melhorar.
Michiru olhou confusa por um instante, mas em seguida sorriu. Marina desejou saber o que estava passando dentro daquela mente. A mulher japonesa se levantou, imponente em seu kimono vermelho estampado com borboletas brancas, fez uma reverência diante de Marina e disse: “Arigatô gozaimasu”, antes de deixar uma nota de dois reais no balcão, pagando pela dose de pinga com limão e se dirigir até a porta. Ali, com ela entreaberta, virou-se para Marina e disse:
-É Billie Holiday. – E saiu sorrindo.